quinta-feira, 1 de novembro de 2007

DOIS CAVALEIROS E UM DRAGÃO

DOIS CAVALEIROS E UM DRAGÃO*

Uri Avnery


HÁ LIVROS que mudam a consciência das pessoas e mudam a história. Alguns, como “A Cabana do Pai Tomás”, de Harriet Beech Stowe, de 1851, deram ímpeto à campanha pelo fim da escravidão. Outros são tratados políticos, como “O Estado Judeu”, 1896, de Theodor Herzl, que deu origem ao movimento sionista. Ou são livros científicos, como “A origem das espécies”, de Charles Darwin, que mudou o modo como vemos a humanidade. E há até sátiras políticas, como "1984", de George Orwell, que também sacudiram o mundo.

O impacto desses livros foi ampliado pelo momento em que surgiram. Surgiram na hora certa, quando grandes públicos estavam prontos para absorver-lhes a mensagem.

É bem possível que "The Israel Lobby and US Foreign Policy" ["O lobby de Israel e a política externa dos EUA”, março de 2006], dos professores John Mearsheimer e Stephen Walt, seja mais um desses livros. São 355 páginas de um frio relatório científico de pesquisa, mais 106 páginas de bibliografia e fontes.

Não é livro de combate. Ao contrário, o estilo é contido e factual. Os autores evitam cuidadosamente qualquer comentário negativo sobre a legitimidade do lobby e, de fato, voltam ao passado para acentuar o apoio que o mesmo lobby deu à criação e à segurança de Israel. Os fatos são apresentados e falam por eles mesmos. Como pedreiros experientes, os autores vão assentando tijolo sobre tijolo, sistematicamente, passo a passo, sem deixar brechas na argumentação.

A parede assim construída não pode ser demolida por argumentos. Ninguém tentou demoli-la e ninguém tentará. Em vez disso, os autores estão sendo atacados, acusados de se deixarem levar por motivos sinistros. Se fosse possível ignorar o livro, ele teria sido ignorado – como tantos outros livros que foram enterrados vivos.

(Há alguns anos, surgiu na Rússia um livro enorme, de Aleksandr Solzhenitsyn, autor mundialmente conhecido, Prêmio Nobel de literatura, sobre a Rússia e os judeus russos. Esse livro – "200 Years Together" [200 anos juntos] – foi completamente ignorado. Que eu saiba, jamais foi traduzido para língua alguma e com certeza não foi traduzido para o hebraico. Consultei vários intelectuais israelenses e nenhum jamais ouvira falar desse livro; não está à venda pela Amazon.com, que oferece todos os demais trabalhos do mesmo autor.)

OS DOIS professores, John Mearsheimer e Stephen Walt, pegaram o touro pelos chifres. Tratam de um tema que é tabu absoluto nos EUA, que ninguém em seu perfeito juízo jamais mencionará: a enorme influência do lobby pró-Israel na política externa norte-americana.

Sistematicamente, sem culpas ou remorsos, o livro disseca o lobby, mostra como opera, expõe as fontes financeiras e desnuda as relações que o ligam à Casa Branca, às duas casas do Congresso, aos líderes dos dois principais partidos e aos capitães da mídia.

Os autores não questionam a legitimidade do lobby. Ao contrário, mostram que centenas de outros lobbies desempenham papel essencial na democracia norte-americana. O lobby da indústria de armas ou da indústria farmacêutica, por exemplo, são forças políticas poderosíssimas. Mas o lobby pró-Israel cresceu desproporcionalmente, e hoje tem incomparável poder político. É suficientemente poderoso para silenciar qualquer crítica a Israel no Congresso e na imprensa, o que implica 'demissão' política de quem se atreva a quebrar o tabu, e impede que prospere qualquer ação que não coincida com o desejo do governo de Israel.

Na segunda parte, o livro mostra como o lobby usa todo esse imenso poder: como tem evitado qualquer pressão sobre Israel para que faça a paz com os palestinos, como empurrou os EUA para invadir o Iraque, como está empurrando os EUA, agora, para a guerra contra o Irã e a Síria, como apoiou os líderes israelenses na recente guerra no Líbano e fez calar todas as vozes que pediam o cessar-fogo, quando o cessar-fogo não interessava ao lobby.

Cada afirmativa aparece comprovada por evidências indiscutíveis, provas escritas (a maioria delas de fontes israelenses) que ninguém pode ignorar.

A MAIOR PARTE dessas informações nada têm de novidade para quem lida com esses temas em Israel.

Eu mesmo poderia acrescentar ao livro um capítulo inteiro, só com minha experiência pessoal.

No final dos anos 50, visitei os EUA pela primeira vez. Viajei a convite de uma grande estação de rádio, para ser entrevistado. Avisaram-me: “Você pode criticar o presidente (Dwight D. Eisenhower) e o secretário de Estado (John Foster Dulles) o quanto quiser, mas, por favor, não critique os líderes de Israel!" No último momento, a entrevista foi cancelada, e convidaram, em meu lugar, o embaixador do Iraque. Pelo visto, tolerariam críticas vindas de um árabe, mas nunca, de modo algum, vindas de um israelense.

Em 1970, o respeitado "Fellowship of Reconciliation" convidou-me para palestras em 30 universidades, patrocinadas pelos rabinos Hillel. Ao chegar a Nova Iorque, fui informado de que 29 palestras haviam sido canceladas. O único rabino que não cancelou o convite, Balfour Brickner, mostrou-me um comunicado secreto da “Liga anti-difamação” ["Anti-Defamation League"] que proibia minhas palestras. Dizia: "Embora Avnery, membro do Knesset, não possa ser considerado traidor, sua fala, nesse momento, dividiria gravemente as opiniões…" Afinal, fiz as 30 palestras, patrocinadas por bispos cristãos.

Lembro especialmente uma experiência triste em Baltimore. Um bom judeu, que se oferecera para me hospedar, ficou furioso por a palestra ter sido cancelada em sua cidade e insistia em mantê-la. Percorremos uma a uma as ruas dos bairros judeus – visitamos todos os estabelecimentos com placas com nomes judeus – e não encontramos uma única sala cujo gerente aceitasse oferecer o espaço para uma palestra de um membro do Knesset israelense. No final, a palestra aconteceu no subsolo do prédio onde eu estava hospedado – e apareceram funcionários da comunidade judaica, para protestar.

Naquele ano, durante o Setembro Negro, dei uma entrevista coletiva à imprensa, em Washington, sob os auspícios dos Quakers. Pareceu um sucesso. Os jornalistas saiam, naquele instante, de uma coletiva com a primeira ministra Golda Meir, e houve muitas perguntas. Estavam representados todos os principais jornais, redes de televisão e de rádio. A coletiva estava prevista para durar uma hora, mas as perguntam não paravam, e foi-se uma hora e meia. No dia seguinte, não publicaram coisa alguma, nem uma linha. 31 anos depois, em outubro de 2001, outra coletiva no Capitólio, em Washington, e a coisa repetiu-se: toda a mídia compareceu, encheram-me de perguntas por mais uma hora – e não publicaram coisa alguma.

Em 1968, uma muito respeitada empresa editora norte-americana (Macmillan) lançou um dos meus livros, "Israel Without Zionists", depois traduzido para oito línguas. O livro mostrava o conflito árabe-israelense de outro ângulo muito diferente e propunha que se estabelecesse um Estado palestino junto a Israel – idéia revolucionária àquela época. Nenhuma resenha apareceu na mídia norte-americana. Numa das principais livrarias de Nova Iorque, não vi o livro. Perguntei a um vendedor e ele encontrou-o soterrado sob uma pilha de outros títulos e o pôs à vista. Meia hora mais tarde, o livro fora novamente escondido.

Nesse livro, discutia-se a solução “Dois Estados para Dois Povos” muito antes de ela ser consensual em todo o mundo, e apresentava-se minha proposta de integrar-se Israel na “Região Semita”. É verdade, sou patriota israelense e fui eleito para o Knesset por eleitores israelenses. Mas critiquei o governo de Israel – e foi o suficiente.

O LIVRO dos dois professores, que critica o governo de Israel de outro ponto de vista, não pode continuar soterrado. Só o soterramento do livro, nesse caso, equivale a vários volumes de informação e argumentos.

O livro nasceu de um ensaio assinado pelos professores Mearsheimer e Walt, publicado ano passado num jornal britânico, depois de rejeitado por vários periódicos norte-americanos que não se atreveram a tocar no assunto. Agora, uma respeitada editora norte-americana põe o livro à venda – sinal de que alguma coisa está mudando. A situação está inalterada, mas parece que, afinal, se começa a poder falar sobre ela.

Tudo depende da oportunidade, do timing; parece que os tempos estão maduros para esse livro, que chocará muitos bons norte-americanos. No momento, o livro provoca muito alarido.

Claro que os dois professores têm sido acusados de anti-semitismo, racismo e ódio a Israel. Que Israel? Quem odeia grande parte de Israel é o lobby. Em tempos recentes, o lobby caminha cada vez mais para a direita. Alguns dos grupos que o compõem – como os neoconservadores que arrastaram os EUA para a guerra do Iraque – estão abertamente associados à direita do Likud e especialmente a Binyamin Netanyahu. Os bilionários que financiam o lobby são os mesmos que financiam a extrema direita em Israel e quase todos os colonos.

Os grupos de judeus nos EUA que apóiam os movimentos israelenses pela paz, grupos pequenos e determinados, são incansavelmente perseguidos. Poucos mantêm-se ativos por muito tempo. Militantes dos grupos israelenses pela paz que visitam os EUA são boicotados e estigmatizados como “judeus que se auto-odeiam”.

As idéias políticas dos dois professores, brevemente explicitadas no final do livro, são idênticas às idéias das forças que lutam pela paz em Israel: pela solução dos Dois Estados; pelo fim da ocupação; pela volta das fronteiras à Linha Verde; e busca de apoio internacional para que se faça a paz.

Se isso é anti-semitismo, então somos todos anti-semitas. E só os Cristãos Sionistas – que abertamente pregam a volta dos judeus ao seu país, mas secretamente profetizam que todos os não convertidos serão aniquilados na Segunda Vinda do Messias – são os verdadeiros Amantes de Sião.

AINDA que não se possa publicar nos EUA sequer uma linha contra o lobby pró-Israel, o lobby não é uma sociedade secreta, sempre conspirando, como nos “Protocolos dos Sábios de Sião”. Ao contrário: o Comitê de Assuntos Públicos Norte-americanos-Israelenses” (American Israel Public Affairs Committee, AIPAC), a Liga Anti-difamação, a Federação Sionista e outras organizações semelhantes vociferam muito e muito autopropagandeiam seus inacreditáveis sucessos.

Como é normal, os vários grupos que formam o lobby pró-Israel competem uns contra os outros – quem tem mais influência na Casa Branca?, quem intimida mais senadores?, quem controla maior número de jornalistas e colunistas?. Essa competição provoca escalada constante no tom da discussão e nos atos, porque cada sucesso de um grupo obriga os demais a redobrarem os próprios esforços.

Tudo isso pode ser muito perigoso. Um balão que está sendo inflado, que atinge proporções assustadoras e que pode, a qualquer momento, explodir no rosto dos judeus norte-americanos (os quais, aliás, conforme pesquisas recentes, discordam de muitas das idéias disseminadas pelo lobby que diz falar em nome deles).

A maioria do público norte-americano opõe-se à guerra no Iraque a qual, para muitos, é um desastre. Essa maioria ainda não associou essa guerra e a ação do lobby pró-Israel. Nenhum jornal e nenhum político atreve-se a falar sobre essa conexão – pelo menos, até o presente. Mas, se se quebrar esse tabu, o resultado pode ser muito perigoso para os judeus e para Israel.

Sob a superfície, acumula-se muito ódio ao lobby. Os candidatos à presidência, forçados a ajoelhar-se aos pés do AIPAC, os senadores e deputados que o lobby já escravizou, a imprensa impedida de escrever sobre o que ela conhece bem – todos esses grupos detestam secretamente o lobby pró-Israel. Se esse ódio explodir, poderá também nos ferir.

O lobby tornou-se um Golem. Como o Golem da lenda, trará desastre, ao final, para quem o criou.

PERMITAM-ME apresentar também a minha crítica:

Quando da publicação do artigo original dos professores John Mearsheimer e Stephen Walt, comentei que “a cauda está balançando o cachorro e o cachorro está balançando a cauda”. A cauda, é claro, é Israel.

Os dois professores confirmam a primeira parte da equação, mas negam enfaticamente a segunda. A tese central do livro é que, por pressão do lobby, os EUA agem contra seus próprios interesses (e, no longo prazo, também contra os verdadeiros interesses de Israel.) Os autores não aceitam meu argumento, citado no livro, de que Israel atua no Líbano como "Rottweiler dos EUA" (contra o Hizbullah, que é o "Doberman do Irã").

Concordo que os EUA estejam agindo contra seus reais interesses (e contra os reais interesses de Israel) – mas os líderes norte-americanos não pensam assim. Bush e seu pessoal crêem – mesmo sem o reforço do lobby – que é vantajoso para os EUA estabelecer presença militar constante no centro dessa região de imensas reservas de petróleo. Em minha opinião, esse ato contra-produtivo foi um dos principais objetivos da guerra, além do desejo de eliminar um dos mais ameaçadores inimigos de Israel. Infelizmente, o livro discute apenas superficialmente essa questão.

Essa observação em nada diminui minha profunda admiração pelas qualidades intelectuais, pela integridade e pela coragem de Mearsheimer e Walt, dois cavaleiros que, como São Jorge, avançam para enfrentar um dragão assustador.

* COPYLEFT. Original em inglês em http://zope.gush-shalom.org/index_en.html

Tradução de Caia Fittipaldi.
Publicação autorizada pelo autor e pela tradutora. posted by bourdoukan at 05:40:00
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