quarta-feira, 2 de julho de 2008

O Haiti não é aqui


por Manuela Azenha

Depois de quatro anos de ocupação estrangeira da ONU no Haiti, as tropas internacionais, sob o comando do exército brasileiro, continuam sendo renovadas. A missão de paz é uma intervenção militar, cujos objetivos no país se resumem a estabilidade política.

No entanto, o problema no Haiti, antes de ser militar, é econômico e social. A terra devastada é quase toda incultivável, a estrutura do Estado está desmoronada e quase 80% da população vive abaixo da linha de pobreza, com dois dólares por dia.

A missão de paz da ONU, chamada Minustah (sigla em francês de Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti), chegou ao Haiti em 2004, depois de o presidente eleito Jean-Bertrand Aristide ser deposto pela segunda vez.

Nesse momento, sob o pretexto de defender a democracia no Haiti, soldados americanos com o apoio da ONU e da França instauraram o governo transitório, que foi substituído por René Préval, eleito presidente em 2006 com 51.21% dos votos de seus compatriotas, segundo dados oficiais.

Aloísio Milani, jornalista brasileiro que esteve quatro vezes no Haiti para escrever sobre a ação dos países latino-americanos na Minustah e o papel do Brasil na condução da estabilização do país caribenho, falou com CartaCapital sobre o assunto. A entrevista está dividida em duas partes: nesta primeira, Milani fala sobre a liderança militar brasileira e da forte intervenção norte-americana no País. Na segunda, explica a atual estrutura política, as perspectivas da disputa eleitoral e o plano de retorno das tropas.

CartaCapital: Como e porque o Brasil virou liderança militar das tropas no Haiti?
Aloísio Milani:
A questão foi uma proposição política, porque o cargo ali não é especificamente militar. Por mais que o presidente da República e o ministro (das Relações Exteriores) Celso Amorim neguem, o Brasil estava em momento de campanha para pleitear a cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. O Brasil precisava apontar que era capaz de fazer a liderança de uma missão de paz. A proposta surgiu no Conselho de Segurança, em acordo com o então presidente francês Jacques Chirac. O resultado foi o maior contingente militar brasileiro fora do país depois da Segunda Guerra.

CC: Qual é o grau de intervenção dos Estados Unidos no Haiti?
AM:
O Haiti era uma república negra, se tornaria o segundo país independente do continente e a primeira república negra do mundo, não tinha uma forte relação diplomática com os EUA. Isso piorou quando invadiram o Haiti em 1915. Depois, apoiaram Papa Doc no início de sua ditadura, mas não foi algo constante. Em 1980, surgiu no cenário político Jean-Bertrand Aristide, representante de um movimento popular, o Lavalas, oriundo da teologia da libertação e dos movimentos de esquerda e que acaba eleito em 1991, mas logo é deposto por uma junta militar.
Os EUA, então, intervêm novamente, sob a administração Clinton, para recolocar Aristide no poder em 94, com a promessa de realizar novas eleições e a adotar uma política neoliberal.

CC: Como foi esse processo?
AM:
A política de abertura econômica foi o que acabou com a agricultura campesina haitiana. O país deixou de ser exportador para ser importador de arroz. Deixou de produzir açúcar em grandes quantidades e passou a importar até mesmo gêneros básicos. A esta altura, em 2004, os EUA já estavam de olho nas manifestações que aconteciam contra Aristide por conta do descontentamento com sua política neoliberal.

CC: Quais eram essas manifestações?
AM:
Há denúncias dos movimentos sociais haitianos de que o grupo armado que marchou a partir de São Pedro, na República Dominicana até a capital haitiana, para questionar a presidência do Aristide foi financiado pela CIA. Hoje, a embaixada norte-americana no Haiti é muito forte, talvez a que mais injete dinheiro na economia haitiana. Toda a cúpula de missão de paz da ONU lá tem uma relação direta com as decisões que os Estados Unidos querem. Há áreas da missão de paz que os EUA continuam controlando. Uma delas é a área da inteligência.

CC: Então na verdade os EUA é que são a liderança das tropas?
AM:
A minha visão é de que a situação do Haiti é uma resultante de várias forças diplomáticas e vários interesses. E que eles nem sempre vão de encontro aos interesses do povo haitiano. Os EUA têm interesse no Haiti pela mão-de-obra barata e também por ser um país muito próximo de sua fronteira na costa, o que provoca o ingresso de imigrantes ilegais nos EUA.
O Brasil tem interesse no Conselho de Segurança da ONU e para mostrar para a ONU que consegue liderar uma missão de paz de grande porte. A França tem um histórico de política muito intervencionista com suas ex-colônias.

CC: Qual seria a explicação para governos ditos progressistas como da Bolívia e do Equador mandarem tropas para o Haiti?
AM:
Todos têm interesses diplomáticos. E precisamos lembrar que é uma força de paz composta por soldados. Nenhum país da América do Sul vai querer deixar de participar disso como forma de participar da discussão diplomática. Os dois únicos países da América Latina que se colocaram publicamente, frontalmente, contra isso foram o Hugo Chávez na Venezuela e o Fidel Castro em Cuba. Os cubanos mandaram médicos e os venezuelanos também deram apoio em atendimentos básicos, mas num outro modelo. Eu vejo essa questão da Bolívia e do Equador também no sentido de não perder o bonde da diplomacia na região. Também existe uma disputa hegemônica na América do Sul e o Haiti nesse ponto é o único ponto de convergência.

(Crédito da foto: Ana Nascimento/Agência Brasil)





Fonte: Carta Capital
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