quarta-feira, 30 de julho de 2008

"Se me esquecer de ti, ó Umm Touba…"*

____________________________________________________________________

A verdade é que Jerusalém jamais foi unida. “A cidade una, a capital de Israel por toda a eternidade” foi e continua a ser apenas um mantra sem qualquer fundamento na realidade. Para todos os objetivos práticos, Jerusalém Leste continua a ser território ocupado.

Num dos cantos mais belos da Bíblia, o poeta diz: “Se me esquecer de ti, ó Jerusalém, que se paralise minha mão direita. Grude minha língua ao céu da boca, se me esquecer de ti, se não puser Jerusalém no auge de minhas alegrias!” (Salmos 137:5-6).

Por alguma razão, o poeta não escreveu “Se me esquecer de ti, ó Umm Touba [1]!” Nem escreveu “se me esquecer de ti, ó Sur Baher!” nem “se me esquecer de ti, ó Jabal Mukaber!” nem tampouco escreveu “Se me esquecer de ti, ó Ein Karem!

Fato que se deve sempre lembrar, em qualquer discussão sobre Jerusalém, é que não há qualquer semelhança entre a Jerusalém da Bíblia e a ‘Jerusalém’ do mapa atual de Israel. A cidade pela qual clamaram os exilados que choraram às margens dos rios de Babilônia foi a Jerusalém real – mais ou menos correspondente aos limites da Cidade Velha, cujo centro é o Monte do Templo. No máximo, um quilômetro quadrado, não mais.

O perímetro redefinido como ‘Jerusalém’ depois da anexação de 1967 é uma vasta área, de cerca de 126 quilômetros quadrados, de Belém, no sul, até Ramállah, no norte. Esta área recebeu o nome de ‘Jerusalém’, para acrescentar ao território uma aura religiosa-nacional-histórica que nada tem a ver com roubar propriedades para ocupar e colonizar.

Os que traçaram este mapa, inclusive o falecido General Rehavam Ze'evi, apelidado “Gandhi”, o mais direitista dos generais da direita do exército de Israel, tinham um único objetivo: anexar Jerusalém e a maior quantidade possível de terra onde não vivessem árabes, para ali construir colônias de judeus. Aqueles generais eram atormentados pelo fantasma demográfico que ainda aterroriza Israel, até hoje: queriam expandir a população de judeus, ao mesmo tempo em que dizimavam populações árabes – em Jerusalém, como em todo o país.

Com vistas a este objetivo, os urbanistas foram forçados a anexar várias vilas árabes que ali havia. Não só as vilas árabes próximas da cidade velha, como o Monte da Oliveiras, Silwan e Ras-al-Amud, mas também vilas já a alguma distância dali – como Umm Touba, Sur Baher e Jabal Mukaber para o leste; Beit Hanina e Kafr Aka para o norte; Sharafat e Beit Safafa ao sul.

O fantasma demográfico que apavorava “Gandhi”, ainda nos persegue pelas ruas de Jerusalém. Hoje, a bordo de um tanque blindado.

ATÉ a guerra de 1949, Jerusalém foi de fato uma cidade mista. Bairros árabes e judeus misturavam-se, como em teia.

O mapa demográfico de Jerusalém gravou-se para sempre em minha lembrança, durante uma experiência pessoal. Um ano e pouco antes da guerra, alguns de nós, rapazes e moças do grupo Bama'avak em Telavive, decidimos viajar até Hebron. Naquela época poucos judeus visitavam a cidade do sul, conhecida como reduto muçulmano, nacionalista e religioso.

Tomamos o ônibus árabe em Jerusalém e fomos para Hebron, andamos pela ruas, compramos o vidro azul pelo qual Hebron é famosa, visitamos Gush Etzion kibbutzim e voltamos para Jerusalém. Mas enquanto isto algo acontecera: uma das organizações clandestinas “dissidentes” executara um ataque especialmente sério (se bem me lembro, atacaram um clube de oficiais, em Jerusalém); e os britânicos impuseram um toque de recolher geral, em todas as áreas onde viviam judeus em todo o país.

Na entrada de Jerusalém, deixamos o ônibus e cruzamos a cidade a pé, de um extremo a outro, cuidando para não entrar nos bairros árabes. E em Jerusalém tomamos um ônibus árabe até Ramle, outro até Jaffa, e de lá pudemos chegar em casa, em Telavive, andando pelos quintais e ruas menores. Nenhum de nós foi preso.

Assim conheci os bairros e a vizinhança árabe, dentre os quais quarteirões elegantes como Talbieh e Bakaa, que passaram a ser o centro da Jerusalém dos judeus, depois da guerra de 1948. Naquela guerra, os habitantes que fugiram/foram expulsos de Jerusalém Leste foram instalados ali – até que aqueles bairros também foram ocupados pelo exército e anexados a Israel.

A ANEXAÇÃO de Jerusalém Leste criou um dilema. O que fazer com a população árabe? Não podiam ser expulsos. A destruição do quarteirão Mugrabi do outro lado do muro ocidental e a brutal expulsão dos árabes habitantes do quarteirão judeu da Cidade Velha já haviam gerado reações negativas em todo o mundo.

Se Israel tivesse realmente tentado “unir” a cidade, o governo teria proposto medidas imediatas, para acompanhar a anexação; dentre estas, dar cidadania automática a todos os árabes que retornassem às propriedades “abandonadas” em Jerusalém Leste (ou, pelo menos, pagar-lhes indenização por suas propriedades.)

Mas o governo de Israel nem sonhou com este tipo de medida. Os habitantes não ganharam a cidadania, que lhe teria dado direitos iguais aos dos cidadãos árabes-israelenses na Galiléia e no Triângulo. Foram reconhecidos apenas como “residentes” na cidade na qual seus ancestrais viviam há mais de mil anos. Este status é frágil demais; dá-lhes identidade israelense, mas não lhes dá direito de votar para o Parlamento. E pode ser revogado a qualquer momento.

Sim, em termos teóricos, um árabe jerusalemita pode solicitar a cidadania israelense, mas a solicitação é decidida pelo arbítrio de burocratas hostis. E o governo israelense, é claro, conta com que os árabes não requererão a cidadania israelense, uma vez que o requerimento implica reconhecer a legitimidade da ocupação.

A VERDADE é que Jerusalém jamais foi unida. “A cidade una, a capital de Israel por toda a eternidade” foi e continua a ser apenas um mantra sem qualquer fundamento na realidade. Para todos os objetivos práticos, Jerusalém Leste continua a ser território ocupado.

Os cidadãos árabes têm direito de votar nas eleições municipais. Mas só um punhado deles – funcionários municipais e os que dependam de favores do governo – exercitam este direito, porque este voto também implica reconhecer a ocupação.

Na prática, Jerusalém é cidade governada por israelenses e para israelenses. Seus líderes são escolhidos só por israelenses; e todos vêem como seu principal objetivo judeicizar a cidade. Há alguns anos, a revista Haolam Hazeh publicou um documento secreto de orientação para os funcionários municipais, no qual se recomendava que todas as providências fossem tomadas para que o número de árabes na cidade não excedesse 27,5% – exatamente a porcentagem que havia ao tempo da anexação.

Não é exagero dizer que o prefeito democraticamente eleito de Jerusalém Oeste é comandante militar também de Jerusalém Leste.

Desde 1967, todos os prefeitos viram o cargo sob esta perspectiva. Associando todos os meios e instrumentos de governo, eles cuidam para que os árabes que vivem hoje fora da cidade não voltem a viver na cidade; e para que os árabes que lá ainda vivem mudem-se de lá. São mil e um truques, grandes e pequenos, tudo vale, se se trata de alcançar aqueles objetivos: da total recusa a fornecer autorizações para construir, nem no caso de novos casais que queiram ter sua casa, ao confisco do direito de residência para quem passe algum tempo no exterior ou na Cisjordânia.

O contato entre árabes jerusalemitas e os habitantes da Cisjordânia, que era um tecido de densas relações sociais, está totalmente rompido. Jerusalém, que foi o centro econômico, político, cultural, médico e social, foi completamente isolada dentro de seu território natural. A construção do muro – que separou pais e filhos, alunos e escolas, comerciantes e clientela, médicos e pacientes, mesquitas e fiéis, e até os cadáveres, de seus cemitérios – serviu ao mesmo objetivo.

Em Israel, há quem diga que os árabes residentes “gozam dos benefícios da seguridade social”. É argumento mentiroso: para começar, a seguridade social não é almoço grátis; a seguridade é paga pelos segurados. Os árabes pagam, como judeus pagam, pela própria seguridade, todos os meses.

Os residentes árabes pagam impostos municipais, mas, em troca, recebem apenas uma pequena parte dos serviços públicos, tanto em quantidade quanto em qualidade. Faltam salas de aula nas escolas, e o padrão educacional nas escolas públicas é inferior ao das escolas islâmicas privadas. O serviço de remoção do lixo doméstico é precário. E, isto, para não falar do estado em que se encontram os jardins públicos e as unidades comunitárias para jovens. Os habitantes de Kafr Akab, que fica depois do ponto de controle de Kalandia, pagam impostos municipais e não recebem qualquer tipo de serviço público; os israelenses dizem que os funcionários públicos têm medo de ir até lá.

A OPINIÃO PÚBLICA em Israel não se interessa por nada disto. Não sabem – nem querem saber – o que acontece nas periferias árabes, a apenas poucas centenas de metros de suas casas.

Portanto, surpreendem-se – surpresa e choque – com a “ingratidão” dos habitantes árabes. Um jovem de Sur Baher, recentemente, matou a tiros alunos de um seminário religioso em Jerusalém Leste. Um jovem de Jabal Mukaber, dirigindo um caminhão, passou por cima de tudo que apareceu à sua frente. Esta semana, outro jovem de Umm Touba repetiu exatamente o mesmo ato. Os três foram abatidos a tiros, na rua.

Nos três casos, os rapazes eram rapazes comuns. Não eram sequer religiosos praticantes. Ao que se sabe, nenhum deles era membro de partido ou grupo ou organização política. Aparentemente, um jovem acorda uma bela manhã e decide que... Basta! Chega! Então, parte para uma ação individual, só sua; e usa a primeira arma que encontre à mão – uma pistola comprada com seu próprio dinheiro, no primeiro caso; ou o caminhão que dirigiam no trabalho, nos dois outros casos.

Se as coisas são exatamente como parecem ser, uma pergunta impõe-se: por que os jerusalemitas estão fazendo o que fazem? Primeiro, porque encontram a brecha para fazer. Alguém que seja motorista de caminhão, numa construção em Jerusalém Leste pode dirigir o caminhão contra um ônibus em qualquer esquina. Um motorista de escavadeira pode decidir atropelar pessoas. É relativamente fácil comprar uma arma e atirar, como o demonstrou o evento recente na Porta dos Leões; os atiradores não foram apanhados. Não há serviço de inteligência que consiga evitar ações deste tipo, em que o agressor não tem parceiros, age só e não participa de qualquer tipo de organização.

Pelo que disseram os comentaristas esta semana, vê-se que eles nem imaginam a quantidade de ódio e desespero que se acumula na cabeça de um jovem árabe em Jerusalém, ao longo de anos de humilhação, abuso, discriminação e desamparo. É fácil e mais divertido embarcar em descrições pornográficas das 72 virgens que esperam os mártires no paraíso muçulmano – o que farão com elas, como farão, quem conseguirá dar conta de todas.

Um dos fatores que mais pesa para aumentar o ódio é a demolição das casas “ilegais” de árabes residentes em Jerusalém, que não encontram meios para construí-las legalmente.

A dimensão da estupidez oficial é atestada pelo que disse esta semana um chefe da Shin-Bet [2], que sugeriu que se destruam as casas das famílias dos agressores, em nome da “contenção”. Nunca ouviu falar das dúzias de estudos e da experiência acumulada, que provam que cada casa destruída converte-se em incubadora de vingadores cada vez mais movidos por ódio cada vez mais feroz.

O ataque desta semana é especialmente instrutivo. Não se sabe exatamente o que aconteceu: Ghassan Abu-Tir teria planejado o ataque? Ou foi uma decisão de momento, num impulso de excitação? Foi mesmo um ataque, afinal de contas – ou o caminhão colidiu contra o ônibus por acidente e o motorista, em pânico, tentou escapar, atropelando os que os perseguiram e tornando-se alvo da fuzilaria de civis e soldados? Na atmosfera de suspeita e medo que Jerusalém respira hoje, cada acidente de trânsito em que um árabe esteja envolvido torna-se um atentado; e todos os motoristas árabes envolvidos em acidentes de trânsito quase com certeza serão executados na rua, sem julgamento. (Não se deve esquecer que a primeira intifada eclodiu por causa de um acidente de estrada, em que um motorista judeu atropelou alguns árabes.)

E OUTRA VEZ, eis a questão: qual a solução para este problema complexo, que brota de emoções tão violentas, alimenta-se de mitos profundamente enraizados e cria terríveis dilemas morais para tantos homens e mulheres, em todo o mundo?

Esta semana surgiram várias propostas. Uma delas, de construir um muro que divida Jerusalém ao meio, como o muro de Berlim (mais um, além do que há, à volta de Jerusalém). Ou punição para toda a família pelo crime que os filhos cometam, como a “sippenhaft[3] dos nazistas. Ou expulsar as famílias da cidade. Ou retirar-lhes a cidadania. Ou pôr abaixo as casas. Ou retirar-lhes os benefícios da seguridade social... por mais que tenham pago para ter estes benefícios.

Todas estas “soluções” têm uma coisa em comum – todas já foram tentadas, em Israel e noutros lugares, e nenhuma resolveu problema algum.

Resta tentar a única solução ainda não tentada, a mais óbvia: fazer de Jerusalém Leste a capital do Estado da Palestina; entregar aos seus habitantes o direito e o poder de administrá-la. Ao mesmo tempo em que toda a cidade é preservada como entidade urbana unida sob o governo de uma super-prefeitura, na qual árabes e judeus tenham direitos iguais.

Fico feliz de saber que, em sua recente visita a Israel, Barack Obama repetiu quase palavra a palavra este plano, que o Grupo da Paz de Israel (Gush Shalom) publicou há quase dez anos, em colaboração com Feisal Husseini, falecido líder da comunidade árabe-jerusalemita.

Os ataques são fruto do desespero, da frustração, do ódio, da sensação de que não há saída. Só uma proposta que remova estas emoções da dor podem trazer segurança às duas metades de Jerusalém.

* URI AVNERY, 26/7/2008, "If I Forget Thee, Umm Touba…", em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1217070038/, Gush Shalom [Grupo da Paz]. Tradução de Caia Fittipaldi. Reprodução por internet autorizada pelo autor e pela tradutora, desde que citada a fonte. Copyleft.

[1] Umm Touba, Sur Baher, Jabal Mukaber e Ein Karem são cidades árabes localizadas na região que hoje é chamada “Jerusalem Leste”. São cidades cortadas pelo muro que cerca Jerusalém Leste, ou em processo de desocupação forçada para construção de colônias israelenses (ver, p. ex., http://www.democraticunderground.com/discuss/duboard.php?az=view all&address=124x39380)

[2] Serviço de segurança interna de Israel.

[3] Em alemão, no original. Lei, na Alemanha nazista, que determinava a responsabilidade coletiva das famílias.

Uri Avnery é jornalista, membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelense).

Fonte: Agência Carta Maior

______________________________________________________________


Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: