segunda-feira, 28 de julho de 2008

Azenha: Eu e o Big Brother

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por Luiz Carlos Azenha

Fiz de carro a viagem Washington-Nova York-Washington pela I-95. São cerca de 700 quilômetros. Tive tempo suficiente para refletir sobre os quase 20 anos de vida nos Estados Unidos, entre idas e vindas.

Pisei pela primeira vez neste país no fim dos anos 70. Fui secundarista na Old Mill Senior High School, em Glen Burnie, Maryland. Vivi com uma família americana. A mãe era auxiliar de enfermagem. O pai, vendedor de seguros. Levavam uma vida confortável. Os filhos mais velhos estavam na universidade. Tim estudava matemática no Massachussets Institute of Technology (MIT). Robert fazia direito em Harvard. Duas escolas caras. Porém, o rendimento dos pais era suficiente para manter os filhos. Nas férias de verão ambos faziam bicos para ajudar no orçamento. Meu "pai" americano dirigia um Mercedes e navegava a baía de Chesapeake num barco à vela.

Voltei aos Estados Unidos, já como jornalista, na metade dos anos 80. Era correspondente da TV Manchete em Nova York. Ronald Reagan era o presidente. Um momento definidor do governo dele tinha acontecido logo no início do primeiro mandato. Reagan enfrentou uma greve dos controladores de vôo com demissões e "quebrou a espinha" do sindicato. Foi o período em que a economia americana foi preparada para a globalização. Fábricas foram fechadas, milhares demitidos e as normas trabalhistas foram devidamente "flexibilizadas". O governo cortou gastos sociais, aumentou o orçamento da Defesa e cortou o imposto dos mais ricos.

No final dos anos 80 fui a Cambridge, Massachussets, entrevistar o economista John Kenneth Galbraith. Ele fez menção a um fenômeno dos centros urbanos então decadentes, nos quais surgia uma sub-classe de americanos, vítimas do que ele chamou de ciclo da pobreza, que incluía desemprego, tráfico de drogas, AIDS, gravidez precoce e dependência de programas sociais do governo. Estou falando do período em que os republicanos conseguiram estigmatizar a palavra "liberal" tanto quanto a mídia corporativa brasileira conseguiu estigmatizar a palavra "petista" desde 2002. "Liberal de carteirinha" era, então, uma ofensa potente, já que se referia aos integrantes da American Civil Liberties Union, os defensores das liberdades civis odiados pela turma de Reagan. O ciclo da pobreza a que se referiu Galbraith foi descoberto pelo mundo trinta anos depois quando o furacão Katrina devastou a região de Nova Orleans, em 2005.

Na mesma entrevista Galbraith falou do risco de desencanto com o sistema político americano. Advertiu que pela primeira vez, desde a Segunda Guerra Mundial, a mobilidade social estava relativamente ameaçada nos Estados Unidos, já que - estamos falando dos anos 80 - as novas gerações já não podiam almejar uma vida melhor que a que os pais haviam tido. Galbraith estava falando especificamente da classe média "média" americana, a dos filhos de assalariados.

Os anos 90 foram relativamente prósperos nos Estados Unidos. A atividade econômica se transferiu do setor industrial para o de serviços, o que permitiu a recuperação - ainda que parcial - dos centros urbanos. Houve ganhos de produtividade com a informatização. Se a globalização deprimiu algumas regiões industriais, impulsionou outras ligadas aos serviços, especialmente no setor financeiro.

Bill Clinton tirou proveito do bom ciclo econômico. Colocou a diplomacia americana a serviço dos empresários. Ron Brown, o primeiro secretário de Comércio de Clinton, foi uma espécie de caixeiro-viajante. Mas a precarização do emprego e o enfraquecimento dos sindicatos seguiu adiante. Os americanos passaram a ganhar menos por mais horas trabalhadas. O Congresso matou como "socializante" a grande reforma que Clinton pretendia implantar, com a criação de um serviço nacional de saúde nos moldes de um SUS. Hillary Clinton denunciaria, mais tarde, que o marido tinha sido vítima de uma "grande conspiração de direita".

De fato, os Clinton foram demonizados ao longo dos oito anos em que ocuparam a Casa Branca. Bill Clinton foi acusado até mesmo de ter participação na morte de um ex-assessor, Vicent Foster, que cometeu suicídio em 1993. A guerra de rumores, boatos e suposições foi travada por uma coalizão de extremistas religiosos e ideólogos conservadores, a mesma que chegou ao poder em 2000 com George W. Bush. Os episódios de 11 de setembro de 2001 foram usados para justificar a adoção do que havia de mais extremo na plataforma dos neocons.

De um lado, Bush precarizou o estado americano. Promoveu um assalto às agências reguladoras que policiavam as grandes empresas. Enfraqueceu a Food and Drug Administration (FDA), a Federal Communications Comission (FCC) e a Environmental Protection Agency (EPA) com o objetivo de reduzir os custos e abrir caminho para os grandes monopólios que se organizam em escala mundial num processo de consolidação que começou nos anos 80.

De outra parte, Bush contribuiu como nenhum outro presidente com o que Gore Vidal definiu como "estado de segurança nacional", promovendo a criação e o inchaço do Departamento de Segurança da Pátria e contando com o beneplácito das grandes companhias telefônicas para escutar conversas de cidadãos sem obter mandado judicial. Recentemente, Barack Obama foi duramente criticado por aliados à esquerda por votar a favor, no Senado, de lei que concedeu às empresas imunidade quanto a processos de indenização que poderiam custar a elas bilhões de dólares. Os Estados Unidos nunca estiveram tão próximos de se tornar um estado policial em toda a sua história.

O "complexo-industrial-militar", sobre o qual o ex-presidente Dwight Eisenhower advertiu os norte-americanos, está mais forte do que nunca. As grandes empresas financiadoras de campanhas políticas - especialmente as dos republicanos ligados a Bush - obtiveram vantagens extraordinárias ao longo dos últimos anos. Pode se dizer, sem medo de errar, que elas dispensaram intermediários, plugando seus executivos diretamente em cargos-chave da administração. As empresas de energia definiram a política energética dos Estados Unidos em reuniões com o vice-presidente Dick Cheney cujas minutas são mantidas em sigilo pelo governo sob a alegação de "privilégio do Executivo".

Nunca a Lockheed Martin e a Exxon Mobil, a Chevron e a Boeing, a Halliburton e a General Electric mandaram tanto. Os Estados Unidos sairão do Iraque, mas os mercenários da Blackwater continuarão lá. Até a diplomacia americana foi militarizada, privatizada e terceirizada.

A caminho de Washington parei para abastecer o automóvel em um posto de gasolina. Todas as bombas, geralmente dedicadas ao self-service, eram cuidadas por atendentes. No passado esse era um emprego típico de imigrante ilegal ou de um jovem americano em férias de verão. Meu "irmão" americano, Rob, hoje advogado, havia trabalhado no ramo nos anos 70.

No entanto, desta vez todos os frentistas eram adultos americanos. O que me atendeu era um jovem negro de pouco mais de 20 anos de idade. Mas havia mulheres e mais de um homem quarentão. O posto paga o salário mínimo. Os funcionários complementam a renda com gorjetas. Dei um dólar ao rapaz que limpou o pára-brisa.

Essa decadência econômica relativa agora tocou a 90% dos americanos, já que o principal patrimônio da maior parte das famílias é a casa e o preço dos imóveis está em queda desde o início da crise das hipotecas. É a única explicação razoável para o favoritismo de um candidato a presidente que era praticamente desconhecido há 18 meses. Barack Obama agora é vendido como a cura para todos os males, mas não acredito que a sensação de ressaca seja superável apenas no exercício eleitoral.

O mal estar dos tempos de hoje, em minha opinião, deriva em parte da sensação de impotência diante dessa precarização da vida, como se no século 21 o papel do cidadão tivesse sido objeto de downsizing.

Fonte: Vi o Mundo

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