quarta-feira, 23 de julho de 2008

Juiz Fauto De Sanctis: O terror dos figurões





por Gilberto Nascimento e Sergio Lirio


Ligeiramente voltados em direção ao centro da sala, na estante à direita da mesa em que o juiz Fausto Martin De Sanctis manipula papéis, acessa e-mails e conversa ao telefone, destacam-se dois volumes de Comentários à Lei de Imprensa, obra de Luiz Manoel Gomes Júnior. Alguma relação com o momento atual? “Não”, responde De Sanctis, antes de refletir sobre a pergunta. “É um livro muito interessante, mas está ali, em destaque, por acaso.”

Talvez se trate de coincidência. Talvez não. São quase 10 horas da noite da segunda-feira 14. Há exatos sete dias, De Sanctis autorizou as prisões do banqueiro Daniel Dantas, do especulador Naji Nahas, do ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta e de duas dezenas de acusados de formação de quadrilha e crimes contra o sistema financeiro. Há seis, meteu-se em uma queda-de-braço com o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que extrapolou a linguagem empolada dos despachos e se transformou em um debate sobre a independência do Judiciário, o privilégio dado a figuras influentes e os limites de cada juiz, seja na primeira instância, seja na Corte Suprema. Há uma semana não sai dos holofotes.

Para muitos magistrados e leigos, De Sanctis virou símbolo da Justiça que não teme poderosos. Para outros, a expressão dos excessos de uma Magistratura que tem dificuldade em respeitar princípios básicos da Constituição, como o amplo direito de defesa dos acusados. Mesmo acostumado a condenar gente graúda e a lidar com casos de repercussão internacional, o titular da 6ª Vara Federal em São Paulo, especializado em crimes financeiros, revela sentimentos conflitantes ante a exposição excessiva na mídia. Ela o incomoda e o anima. “Tenho sido retratado como linha-dura, carrasco, e isso me chateia. Não sou carrasco, sou juiz, aplico a lei. E a imprensa dá espaço para que partes interessadas no processo, portanto não isentas, me ataquem”, afirma. O magistrado mexe em alguns papéis e completa: “Mas o trabalho da imprensa tem sido fenomenal. Não fossem vocês, certamente não estaria até hoje sentado nesta cadeira. Há muita pressão”.

A seguir, uma crítica à reportagem da jornalista Andrea Michael, da Folha de S.Paulo, que informou sobre a existência de uma operação em andamento contra o Grupo Opportunity. “A imprensa tem um dever público tanto quanto eu tenho. Aquele vazamento tumultuou tudo. Mas nem por isso vou sair por aí expedindo mandado de prisão e muito menos de busca”, afirma. Ele negou o pedido de prisão de Andrea Michael solicitada pela Polícia Federal.

Paulistano da Mooca, educado em escola pública, classe média na origem e no estilo, De Sanctis ingressou na 6ª Vara Federal em 1991, aos 27 anos. Desde então, coleciona condenações de peso. Já puniu banqueiros, traficantes, contrabandistas e grandes empresários. Na maioria das vezes, lidou com temas intricados, casos nos quais são comuns operações financeiras complexas, montadas para encobrir os rastros do crime e seus reais mentores.

Em Edemar Cid Ferreira, que levou o Banco Santos à bancarrota, salpicou duas condenações. Em dezembro de 2006, foram 21 anos de prisão por lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Em maio do ano passado, Ferreira pegou mais quatro anos e oito meses e recebeu multa de 3,6 milhões de reais, mesma pena aplicada ao empresário Ricardo Mansur, ex-dono do Mappin. No processo, o também ex-banqueiro Ezequiel Nasser, que havia sido controlador do Excel Econômico, pegou cinco anos e cinco meses. Os três foram acusados de realizar empréstimos entre si proibidos pela legislação brasileira.

Foi De Sanctis quem mandou confiscar os bens de Edemar Cid Ferreira e ordenou a distribuição de mais de 12 mil obras de arte da coleção particular do banqueiro a museus de São Paulo. Parte dessas obras, peças indígenas restauradas, está em exposição no Memorial da América Latina, na capital paulista.

Na 6ª Vara Federal, as pastas de processos acumulam-se pelos corredores. Apesar da natureza dos crimes, que envolvem laranjas, empresas de fachada, empréstimos fraudulentos, operações financeiras no Brasil e no exterior, triangulações diversas, são apenas 14 funcionários na equipe. O juiz tenta compensar a deficiência da estrutura com muito trabalho. E parece capaz de milagres. Entre o dia em que um delegado entrou na sua sala para explicar quem era Juan Carlos Abadía e a condenação de 30 anos, mais o confisco dos bens do megatraficante colombiano, passaram-se 12 meses, tempo recorde para o padrão da Justiça brasileira. “Trabalhava na madrugada, nos fins de semana. Todo mundo aqui se empenhou para fazer o que devia ser feito. E conseguimos”, recorda. “A população reclama muito dos funcionários públicos, mas aqui tentamos zelar pelo nosso dever com a sociedade.”

O mesmo empenho, diz, valeu e vale nos casos do doleiro Toninho da Barcelona (condenado a dez anos de cadeia), do contrabandista Roberto Eleutério da Silva, o Lobão (22 anos) e da fraude MSI-Corinthians, ainda em andamento.

De Sanctis se antecipa e diz não gostar de falar sobre a vida pessoal. Declara-se nacionalista. Em um momento deixa escapar que é separado e tem um filho. É evasivo a respeito do uso ou não de seguranças. Não havia pretensão de perguntar ao juiz sobre futebol e religião, mas ele envereda pelo assunto por conta própria. Por tratar do caso MSI, não revela para qual time torce. Por conduzir o processo contra os bispos da Renascer, não fala de religião. O último livro não técnico que leu? A biografia de São Francisco de Assis. Enfim, interferimos: “E o que achou?”

“Em diversas ocasiões, me vi admirando algo ligado a São Francisco. Em alguma viagem, uma escultura me chamava a atenção. Em algum livro, uma imagem. Então resolvi conhecer melhor a vida dele. Não foi por fé, foi por curiosidade”, explica. “Várias coisas me impressionaram na vida dele, aquela disposição de seguir um ideal, de se despir dos bens materiais, brigando até com o pai.”

“O senhor se reconheceu em algum trecho?”, emendamos. “Não. Não me considero herói, santo ou justiceiro, se é o que querem saber”, responde. Seria realmente pedestre estabelecer relações entre o abnegado de Assis e o magistrado que combate os colarinhos-brancos. Mas não deixa de haver um viés franciscano nas decisões da 6ª Vara Federal. Não raro, parte das multas aplicadas ou de valores confiscados é doada a instituições de caridade. No caso Abadía, a Ten Yad, que oferece refeições a pessoas carentes, e a Fundação Julita, de alfabetização, receberam uma parcela do dinheiro arrecadado no leilão dos bens do traficante.

Passa das 11 da noite. De Sanctis esfrega os olhos, confunde as palavras. “Estou cansado.” Não há nada nele, nessas poucas horas de conversa, que deixe transparecer o juiz “durão” e “implacável”. Há um descompasso entre a voz mansa, medida, e o constante movimento corporal, ora para atender um telefone, ora para solicitar algo à secretária ou encontrar documentos na mesa repleta de papéis. De repente, um lampejo depois de uma pergunta genérica: “Não tenho medo. Se tivesse, não seria juiz”.

É conhecida sua relação conflituosa com alguns dos advogados mais bem remunerados do País. Prospera entre sócios de escritórios famosos de São Paulo e do Rio de Janeiro a convicção de que De Sanctis tem mania de atropelar princípios básicos da Constituição, entre eles uma costumeira resistência a permitir o acesso dos réus aos autos do processo. Há quem o considere “voluntarista” e “messiânico”.

“Obviamente, a imprensa ressalta as condenações, mas já absolvi muitos réus. Analiso os casos com imparcialidade”, defende-se. Messiânico. Assim também tem sido tratado o delegado Protógenes Queiroz, afastado das investigações por clara intervenção da cúpula da Polícia Federal. Com a saída de Queiroz, De Sanctis passou a ser o alvo principal dos advogados de Daniel Dantas. Na terça-feira 15, Nélio Machado, um dos representantes do banqueiro, anunciou que pretende ingressar com uma “argüição de suspeição” contra o juiz. Segundo Machado, o magistrado prejulgou Dantas, cerceou-lhe o direito de defesa e teria pactuado com irregularidades cometidas pela Polícia Federal. É uma estratégia jurídica previsível, fortalecida pelo anúncio da saída de Queiroz do caso, algo tão óbvio que só a cúpula da PF parece não ter percebido.

A intenção de Gilmar Mendes ao libertar Dantas pela segunda vez era dar um “passa-moleque” no colega de primeira instância. Foi um tiro pela culatra. A ameaça de solicitar punição a De Sanctis no Conselho Superior da Magistratura provocou uma reação conjunta da associação de classe de juízes, procuradores e policiais federais. E deu asas a movimentos de repúdio populares, cujo maior canal de expressão tem sido a internet. Listas a favor do impeachment de Mendes, convocações de manifestações em diversas partes do Brasil e comentários em sites e blogs prosperam na rede.

Quanto ao apoio a Mendes, eles têm sido bem mais tímidos. Na segunda-feira 14, enquanto procuradores e juízes se reuniam na porta do tribunal em solidariedade a De Sanctis, um grupo de 150 advogados, Arnaldo Malheiros à frente, divulgou um manifesto em favor do presidente do Supremo. Assinaram o manifesto Arnoldo Wald, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, Marcio Kayatt e Manuel Alceu Affonso Ferreira, entre outros. O texto conclui: “Os signatários sentem-se seguros por viver num País que tem no ápice de sua estrutura judiciária um magistrado que tem a coragem e a dignidade de manter a Constituição acima da gritaria”. Os juízes federais igualmente vêem ameaças ao Estado de Direito, mas por outros motivos: “Nossa manifestação se baseia na necessidade de independência do Judiciário. Se ele não for independente, sem medo de ser cerceado ou punido, não teremos uma sociedade democrática”, afirma Dora Martins, presidente do Conselho Consultivo da Associação Juízes para a Democracia, uma das entidades que reagiram à ameaça de Mendes de solicitar punição ao magistrado. Ante à forte reação pública, o ministro do Supremo recuou da idéia. Ao que tudo indica, para uma maioria esmagadora, faz sentido a frase de Hugo Chicaroni, preso por tentar subornar um delegado que participou da Operação Satiagraha, referindo-se a Dantas: “Ele se preocupa com hoje. Lá para cima, ele resolve. STF, STJ... ele resolve. O cara tem um trânsito político ferrado”.

Abadía, Edemar Cid Ferreira, Kia Joorabchian. Nenhum desses nomes movimenta tantas forças políticas e provoca tanta paixão quanto Daniel Dantas. É um componente novo na vida do juiz que diz não ter medo. Na última década, CartaCapital relatou as disputas societárias nas quais se envolveu o Opportuniy. É uma longa história de intrigas, traições, espionagem ilegal, feitura de dossiês e manipulações diversas, na imprensa e na Justiça.

O enredo agora se repete. Paira a insinuação, não confirmada, de que Gilmar Mendes e juízes teriam sido grampeados ilegalmente. Narram-se sempre a indignação dos magistrados e sua intenção de pedir providências a respeito. Ameaças que se perderam ou foram negadas, em um disse-me-disse usual nos assuntos a envolver Dantas.

A desembargadora Suzana Camargo, vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que teria relatado a interlocutores o suposto grampo no Supremo, esquivou-se de confirmar a história. “Me esqueçam”, pediu à imprensa. Outra desembargadora do mesmo tribunal, Cecília Melo, que aparece em um diálogo com o advogado Nélio Machado, e que pediu ao Ministério Público investigação a respeito, amenizou o fato em conversa com CartaCapital. “Quando li sobre esses comentários que apareceram no relatório da Operação Satiagraha, achei que era uma coisa dúbia. Mas não pensei em grampo. Meu chefe de gabinete é que disse ter certeza disso”, afirmou.

Cecília Melo é relatora, na segunda instância, do chamado caso Kroll. No diálogo, Machado a chama de “amiga”, o que, segundo disse à revista, ela considera “uma impropriedade”. Em 2004, a Operação Chacal apreendeu documentos e o disco rígido dos computadores do Banco Opportunity, na esteira das revelações de que o banqueiro havia contratado a Kroll para espionar integrantes do governo Fernando Henrique Cardoso, futuros ministros de Lula, desafetos e concorrentes.

Na mesma época, a PF descobriu que, além da Kroll, Dantas valeu-se de Avner Shemesh, espião treinado no Mossad, o serviço secreto de Israel. Na casa de Shemesh, os federais encontraram dossiês de alvos preferenciais do Opportunity. Os federais também filmaram a entrada de um homem na residência do israelense. As imagens não são claras, mas a PF disse tratar-se de Carlos Rodenburg, ex-cunhado de Dantas, um dos presos na Satiagraha. A estrutura física e o corte de cabelo assemelham-se aos de Rodenburg.

O caso Kroll foi desmembrado em quatro processos. Em um deles, DD, Rodenburg e Shemesh são acusados de formação de quadrilha. Os advogados do Opportunity alegaram que o homem filmado na porta de Shemesh não era o ex-marido de Verônica Dantas. Apresentaram três testemunhas. Fernando Magnenti Lima, motorista da empresa Brasil Shuttle, assumiu ser ele o visitante. Mesmo sem solicitar novas perícias, a desembargadora Cecília Melo acatou os argumentos da defesa e trancou a ação contra Rodenburg. “Há a possibilidade de o Ministério Público apresentar nova denúncia, efetivamente mostrando um vínculo. Algo que faça essa ligação. Naquele momento, entendi que poderia ser qualquer pessoa daquela estatura. A apuração se é ele ou não deveria ser feita no decorrer do processo.” A decisão abriu a possibilidade para Dantas se safar da acusação. Na terça-feira 15, estava marcada a audiência na qual seria analisado o pedido de habeas corpus que livraria DD do processo. Como a suposta visita de Rodenburg a Shemesh era um forte indício da participação do banqueiro, a decisão anterior da desembargadora enfraqueceu a tese do Ministério Público e da polícia. A sessão foi adiada.

Cecília Melo afirma que em 90% dos casos decide contra os interesses do Opportunity e que nunca contestou o mérito das ações. CartaCapital não conseguiu localizar Magnenti nem as outras duas testemunhas apresentadas pelo banco carioca. A empresa Brasil Shuttle também não foi localizada.

O que se trava até aqui, na imprensa e fora dela, é um debate sobre uma ínfima parte dos quatro anos de investigação, fruto do vazamento de pedaços das 240 páginas do relatório parcial da PF, usado para alicerçar os pedidos de prisão. O trabalho completo, nesta fase preliminar do processo, tem 7 mil páginas. Imagina-se que estejam neste volume as provas que permitiram ao delegado Queiroz ser tão peremptório nas acusações a jornalistas, políticos e advogados.

Sob o comando do processo, Fausto De Sanctis será submetido a uma prova de fogo. Nenhum de seus casos até hoje envolveu tantos integrantes do poder, o transitório e o permanente. Nenhum movimentou tantos e tamanhos interesses. Para obter um novo sucesso, terá de dosar, em igual medida, coragem e temperança. Discernimento e persistência.

Fonte: Carta Capital
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