quinta-feira, 31 de julho de 2008

Amigos chineses e indianos

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Coluna (Nas entrelinhas) publicada hoje no Correio Braziliense.

Progressivamente, a política externa brasileira vai se limitando a isto: uma busca obsessiva de mercados para o álcool de cana

Por Alon Feuerwerker
alon.feuerwerker@correioweb.com.br

A Rodada Doha para liberalização do comércio mundial deu o último suspiro em meio a uma generalizada indiferença planetária. Para tanto tempo e energia consumidos, o lamento pelo triste desfecho pareceu mínimo. Talvez tenha sido melhor assim. Pelo menos para o Brasil. Nas circunstâncias da economia brasileira, o efeito prático de uma maior abertura aos mercados seria no mínimo duvidoso. Especialmente quando o acordo possível em Genebra apontava para uma menor proteção de nossa indústria.

Aliás, a diplomacia brasileira colheu na Suíça um de seus maiores fracassos. Ainda estão por ser completamente conhecidos os bastidores das horas em que o Brasil decidiu mudar repentinamente de posição e aderir ao bloco dos ricos, deixando para trás os pobres e os emergentes. Pareceu, a quem vê de fora, um típico caso de “fuga para frente”, a clássica situação em que o voluntarismo e a esperteza pretendem substituir a análise concreta da situação concreta, a avaliação fria da correlação de forças.

Esta é a hipótese mais benigna: que o Brasil tenha superestimado seu próprio peso e, portanto, a sua capacidade de catalisar uma onda favorável ao compromisso proposto pela cúpula da Organização Mundial do Comércio. Estaríamos então apenas diante de uma bela trapalhada. Difícil crer, dado o profissionalismo com que o Itamaraty costuma conduzir tais coisas.

A outra possibilidade é que o Brasil esteja a caminho de reformular as diretrizes de sua política comercial com o exterior. Para guinar rumo a um Mercosul de laços mais débeis e “dar um tempo” na relação preferencial com os emergentes. Fica, porém, uma dúvida nesse segundo cenário: para que exatamente? Que vantagens Maria leva se adotar uma aliança prioritária com os Estados Unidos e a Europa?

Não se sabe ao certo. Daí que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva venha apresentando a diversificação do portfólio externo de clientes e fornecedores como o ganho maior das ações brasileiras em política externa desde 2003, incluídas aí as muitas viagens presidenciais. De novo, a biruta brasileira em Genebra não se explica à luz das linhas estratégicas de nossa diplomacia.

Quem sabe o escorregão não tenha nascido do afã de abrir espaço, na agenda global, para o álcool combustível brasileiro proveniente da cana de açúcar? É possível que o mau passo em direção à Europa e aos Estados Unidos tenha sido motivado pela esperança de conseguir um pouco mais de oxigênio nesses dois mercados para o nosso etanol. Dada a centralidade do tema na agenda, nas ações e nos discursos presidenciais, não deixa de ser uma bela hipótese.

Depois de um início promissor, a evolução das perspectivas para o álcool brasileiro nos Estados Unidos é decepcionante. Os políticos americanos não querem comprar briga com os agricultores americanos. Mais importante: não é razoável imaginar que os Estados Unidos irão trocar uma dependência por outra. A estratégia de Washington para o álcool é tornar-se um grande produtor de etanol, não é dar ao Brasil o poder de fazer parar os carros americanos por falta de combustível. No caso da Europa a questão é outra: apesar do gigantesco lobby para vender o caráter supostamente ecológico do álcool brasileiro, o Velho Continente resiste a se dobrar.

Estimulado pelo governo, o empresariado nativo colocou os exércitos no campo de batalha para fazer do Brasil a futura superpotência mundial do etanol. Agora que as tropas estão dispostas para a guerra, é preciso guerrear. E, progressivamente, a política externa brasileira vai se convertendo a isto: uma busca obsessiva de mercados para o álcool de cana.

Enquanto isso, em Genebra, Índia e China cuidavam de brecar um acordo global que ameaçaria os pequenos agricultores e a indústria emergente de países que não se conformam com a permanência na segunda divisão da economia mundial. O Brasil é mesmo uma nação de sorte: se não sabemos zelar pelos nossos interesses, temos quem o faça por nós. Obrigado aos indianos e aos chineses.

Fonte: Blog do Alon Feuerwerker

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