sexta-feira, 25 de julho de 2008

A falta que ela já faz

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foto: Amy Winehouse

por Rosane Pavam

Assistimos cotidianamente às investidas de Amy Winehouse contra o establishment da indústria dos discos e das celebridades de cera. A cantora inglesa briga para ser o que é, contra os padrões da mídia globalizada, e deseja viver os próprios sentimentos sem que ninguém lhe cobre por eles. Mas ela jamais poderá fazer tudo isto enquanto tiver um público que lhe pague regiamente. Para ser livre, ela terá de optar pela solidão, como fez Greta Garbo em outros tempos.

Amy, contudo, ainda está aí para o que der e vier. Faz shows sempre que isto é possível. Compõe e lança discos cada surpreendentes. Viver sem a incômoda assistência do público, assemelhado aos zumbis urbanos do desenhista Sérgio Aragonés, prova-se impossível quando se tem sucesso mundial. Há sempre um repórter nas proximidades enquanto ela se desespera. As regras deste jogo são aceitas por Amy, mesmo que ela nos pareça tão trôpega às vezes.

O assédio à cantora tem o estranho efeito de santificá-la. Estamos ao lado dela, contra os jornalistas. Sentimos, em primeiro lugar, um repúdio a eles, que espreitam o futuro cadáver. E depois nos comovemos por Amy, que luta diante de todos. O drama da cantora, assim exposto, ganha o efeito de tornar menores as dores cotidianas de quem recebe suas mensagens. Ela se transforma em mártir medieval aos nossos olhos. É terrível o que fazem os jornalistas a Amy, e é terrível, e nos deixa emotivos, o que a própria Amy faz a si. Mas é preciso reconhecer sempre que estamos diante de um jogo de regras invisíveis quando falamos dela.

Ninguém vai contestar, neste espaço, a qualidade artística que é própria a esta cantora e compositora. Ela merece o respeito de todos, em primeiro lugar. Não sou crítica de música, mas posso entender que Amy está muito bem quando grava à frente de uma banda especializada em imitar o clima, a eficiência quase computadorizada da gravadora Stax, surgida quatro décadas atrás. Some-se a isto que as letras desta jovem são também bastante específicas e sinceras. Reabilitação, não, ela diz, já que uma clínica nesses moldes jamais poderia lhe ensinar alguma coisa...

Este disco de Amy me transporta a uma embarcação de bêbados felizes americanos durante um cruzeiro. Amy zomba da felicidade desses homens e mulheres, embora esta zombaria de cantar as coisas certas possa alterar a saúde da cantora. Posso imaginar as colunas do salão, o carpete vinho e as toalhas salmonadas, e a vontade, que acomete Amy, de manchá-las ao balouçar da lua caribenha.

Contudo, se ela provoca todo mundo ao dizer uma porção de coisas íntimas de maneira própria, e se ainda não desistiu de ter um público para ouvi-las, tem de suportar a barra que lhe pesa. Nós torcemos para que ela consiga ser feliz nos seu intento de dizer o que bem entender, e é por isso não a deixamos em paz.

Pode parecer incongruente, mas Amy, talentosa como é, não propõe nada novo ao cantar. E por que faria isto? O novo tem sido frequentemente a negação do que importa. Ela tem um mau humor e uma infelicidade que não caberiam naquela Ella Fitzgerald rainha-de-todas. Amy não canta sorrindo, ao contrário das grandes. Uma Ella adoentada mas feliz certa vez intimidou Michael Jackson durante um megashow beneficente nos anos 80, enquanto em décadas anteriores a intérprete ganhara duelos elegantes diante da majestosa Billie Holliday ou de uma Sarah Vaughan plena de malícia. Por trás dos óculos de avó, havia vontade de viver em Ella, excitamento, a glória de atravessar gerações.

Bem diferente de madame Fitzgerald, Amy não está aqui para distribuir prazeres. No quesito das infelicidades, é como o Kurt Cobain do Nirvana, todo o tempo mostrando na MTV o quanto desejaria estar morto. Descobrir a novidade que Amy traz é sempre desafiador. Alguma coisa nova ela nos mostra, ou não nos aproximaríamos dela como quem dirige uma prece ou um sentimento de compaixão.

A novidade em torno dela seguramente não está na exposição de sua decadência física, coisa que Elvis antecipou. Nem no uso que faz das drogas, que era visível também no rei do rock, entre outros reis. Tampouco na sua infelicidade social ou no prenúncio de morte que ela sempre agita.

Parece-me que a novidade em Amy, além de cantar como se deve, é que ela anseie por um amanhã, ainda que este amanhã tenha a duração de um dia. Ela implora que o marido seja liberado da cadeia para visitá-la em casa, no Natal. Ninguém em seu estado talvez planejasse as coisas com tanta antecedência. Mas seu futuro, ao contrário de todas as expectativas, pode esperar cinco minutos. Ela sai da temporada na clínica de reabilitação já pensando em comprar o primeiro maço de cigarros, diante de fotógrafos óbvios e cansativos. Amy parece ver a destruição por um ângulo novo.

A sensação de que se consumia morava em uma cantora antiga, Janis Joplin, que morreu aos 27 anos, nos anos 60. Em tudo ela diferia da estrela de agora. Engordava, por exemplo, em lugar de emagrecer, conforme mais se mostrava dependente das drogas. Não tinha pais que a vigiassem, nem mídia que entendesse o quanto ela se aproximava do fim. Isto porque um sonho inteiro morria de bom grado junto com Janis. Ela gritava, durante um festival de música, que “o amanhã nunca acontece”.

As drogas, dizia Janis, eram coisas boas se a faziam feliz. Importante para ela, em primeiro lugar, era existir neste mundo, ainda que brevemente. Tinha a crença no seu toque particular de felicidade. Janis também imitava as cantoras do passado. Mas seu padrão era o blues sofrido, ao qual ela acrescentava energia e ação positiva. Amy vai no caminho inverso. Ela problematiza os tempos com a voz clara e elegante das crooners de big bands. Quando canta tão seguramente, daquela forma limpa, nem parece estar falando de seu sofrimento por um homem só. Não há política ou filosofia que a motivem tanto como seu pequeno mundo.

É preciso que Amy sobreviva mais um dia, cantando lindamente, já que, em alguma medida, ela
representa o que nós nos tornamos nestes tempos. Somos pessoas auto-referentes, aburguesadas, mais preocupadas em viver a densidade, ou falta dela, que há em cada rompimento de nossos namoros, do que em aperfeiçoar a vida social, comum a todos.

Rosane Pavam


Fonte: Carta Capital
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