quarta-feira, 30 de julho de 2008

A alma do negócio

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A publicidade não pode espelhar a realidade – e este talvez seja seu grande malefício sócio-cultural. Toda propaganda é enganosa e, quanto mais enganosa, melhor. Não importa que a harmonia doméstica nada tenha a ver com o uso de um creme dental ou com a margarina Qualy

por Guilherme Scalzilli


O pior efeito colateral da onipresença publicitária é a passividade da opinião pública diante dela. A sociedade de consumo impregnou-se tanto de propaganda que ela parece indissociável da própria experiência humana. “Tudo é publicidade”, máxima disseminada pela própria mídia, garante a perpétua reciclagem da indulgência. Tudo é história, tudo é física, tudo é moda: o estatuto universal da atividade depende da predisposição corporativa do observador. Tal simplificação, de evidente teor totalitário, pressupõe condicionantes publicitárias nos ambientes mais íntimos, como se fôssemos irresistivelmente dominados por forças exógenas, talvez imperceptíveis e alheias à nossa vontade. Tudo é manipulação.

A propaganda mantém uma relação paradoxal com a coletividade. Por um lado, nega responsabilidades sobre os produtos que ajuda a vender e sobre as mensagens que corrobora – ao menos quanto a conseqüências nefastas como a violência, a obesidade, a anorexia e vícios múltiplos. Ao mesmo tempo, ela reivindica uma utilidade social imanente, necessária à plena fruição da cidadania. É a versão mercantilista do direito constitucional à informação.

O equívoco da premissa evidencia-se nas metapropagandas, peças institucionais que fazem o elogio da própria publicidade. Sem esta, dizem, o consumidor compraria um imaginário produto “Tanto Faz”, como se logotipos, embalagens e enunciados contivessem verdades imprescindíveis; como se as relações de consumo implicassem uma liberdade de escolha real, entre todas as alternativas possíveis, e não apenas entre as que possuem recursos para investir na complexa e onerosa engrenagem midiática.

Rauschenberg, Warhol, Johns e outros não faziam a apologia da propaganda, mas criticavam a manipulação do imaginário. A afirmação de que tudo é consumo de massas implica uma denúncia

Toda propaganda, auto-referente por natureza, possui um viés metalingüístico. Apresenta-se como entidade autônoma, dotada de linguagem, discurso e instrumentos próprios, aparentemente desconectados de sua função comercial. O texto engenhoso, o esmero técnico, a abordagem inusitada e outras qualidades do anúncio transformam-se em valores intrínsecos à mercadoria ainda impalpável, alienando o consumidor das decisões práticas que deveriam norteá-lo. O entretenimento antecede e canaliza a relação de consumo.

Mas o fantasma da superficialidade exige uma legitimação estética que confira certa “nobreza” ao ofício. Já que emociona, diverte e “faz pensar”, a publicidade almeja ser uma síntese das artes, absorvendo o esmero técnico das atividades criativas consagradas. Busca então identificar-se com a indústria cultural, celebrando-se em premiações no estilo do Oscar cinematográfico, glamourizando seus profissionais, compartilhando a celebridade dos artistas populares.

Enquanto isso, os publicitários apropriam-se da herança dos movimentos artísticos do pós-guerra (pop-art, kitsch), injetando um charme vanguardeiro nas campanhas mais elaboradas. Acontece que Rauschenberg, Warhol, Johns e outros não faziam a apologia da propaganda, mas criticavam a manipulação do imaginário efetuada por ela. A afirmação de que tudo é consumo de massas implica uma denúncia. O imaginário pop carrega um questionamento sobre o papel do artista na sociedade capitalista, desmistificando a iconografia do consumo, usando a mídia para se reproduzir contra ela. A publicidade jamais possuiu semelhante alcance reflexivo.

Pode-se argumentar que os comerciais realmente se parecem com passatempos hollywoodianos. Ambos compartilham a aspiração indutiva e certa estrutura de valores (ou carga ideológica) preestabelecida. Os dois também são movidos pelo consumismo autogerador: o filme vende o refrigerante e vice-versa; a propaganda vende a necessidade da mercadoria e vice-versa. No final do processo, é o consumidor quem paga tanto pelo merchandising quanto pela publicidade direta, cujos gastos são embutidos no preço final dos respectivos produtos.

A publicidade precisa derrubar qualquer obstáculo à credulidade total, impedindo o exercício do senso crítico. Para tanto, utiliza extensas metodologias pseudocientíficas de persuasão, baseadas na semiótica e na psicologia

Entretanto, anúncios bem-sucedidos envolvem uma carga de informações sub-reptícias que assombraria o leigo acostumado com o usual marketing fílmico. Na obra ficcional, por mais unidimensionais que sejam os personagens, sempre resta uma chance de questionamento, pois o espectador sabe que está diante de uma farsa. A publicidade, ao contrário, precisa derrubar qualquer obstáculo à credulidade total, impedindo o exercício do senso crítico. Para tanto, utiliza extensas metodologias pseudocientíficas de persuasão, baseadas na semiótica e na psicologia, que suplantam qualquer dissimulação inserida nos contextos narrativos tradicionais.

Os anúncios televisivos levam tal elaboração a extremos. Os personagens reproduzem estereótipos sedutores (pai de família, jovem executivo, mãe que trabalha, velhinho simpático, vizinha gostosa, turma do boteco e assim por diante, quase sempre esbarrando em preconceitos étnicos, sociais e de gênero); a direção de arte engendra ambientes físicos e contextos emocionais reconhecíveis (segurança, família, amizade, erotismo, nacionalismo, caos urbano); e o roteiro induz o espectador a identificar-se com associações previsíveis (liberdade-automóvel, alívio-remédio, inteligência-tecnologia, juventude-chocolate,) ou francamente artificiais (modernidade-cigarro, coragem-uísque, infância-banco, sensualidade-turismo).

É importante frisar que tais associações não levam o espectador a querer possuir algum bem ou serviço, mas à ilusão de necessitar deles. Sente-se incompleto, ultrapassado, frágil, ignorante, e acredita que satisfará essas carências hipotéticas comprando algo. O universo publicitário, seguro e estável, faz com que a vida pareça permanentemente inconclusa e insatisfatória sem o escape da propaganda e de sua realização mercantilista.

Portanto, para fazer sentido, a publicidade não pode espelhar a realidade – e este talvez seja seu grande malefício sócio-cultural. Toda propaganda é enganosa e, quanto mais enganosa, melhor. Não importa que a harmonia doméstica nada tenha a ver com o uso de um creme dental, que os planos de saúde desconheçam o asseio prestativo e zeloso, que natureza e privacidade estejam ausentes da vida em condomínios, que a fraternidade natalina edulcore o materialismo constrangido e a hipocrisia – desde que atinjam eficazmente os sentidos do público, tais fantasias tornam-se válidas, perenes e consensuais. Mesmo quando são apenas mentiras.

Leia mais:

Há cerca de dez anos, surgiram algumas organizações internacionais de combate aos abusos da propaganda. O coletivo “Stopub” reuniu várias delas [1]. Os militantes antipublicidade são particularmente ativos na França, em grupos como “Casseurs de pub”, [“La meute”, “Antipub” e “Paysages de France”, que denunciam irregularidades e organizam intervenções nos espaços públicos. Alguns foram condenados pela Justiça.

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance “Crisálida”, lançado em 2007, pela editora Casa Amarela. Mantém um blog sobre política, artes e atualidades.

Fonte: Le Monde Diplomatique

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