Somente por meio do reconhecimento e da punição por todos os erros cometidos neste período crítico de sua história os Estados Unidos recuperarão o prestígio perdido em todo o mundo. As eleições presidenciais à vista constituem uma fundada esperança de mudança de modelo na ordem internacional. A análise é do ex-presidente de Portugal, Mário Soares.
por Mário Soares
LISBOA – Os passados governos norte-americanos foram firmes defensores dos direitos humanos, pelo menos desde que a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou, em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, talvez o documento jurídico internacional mais importante do século XX. É verdade que durante a Guerra Fria os Estados Unidos fizeram dos direitos humanos uma arma decidida contra a União Soviética e as chamadas democracias populares. E conseguiram afetar notavelmente a imagem do bloco pró-soviético com os exemplos, repetidos até à saciedade, dos dissidentes, privados de seus direitos.
Entretanto, a política norte-americana tinha “dois pesos e duas medidas”, já que condenava os atentados aos direitos humanos quando lhe convinha e os ignorava quando eram cometidos por governos amigos ou aliados. Toda a América Latina conserva amargas recordações dessa regra de comportamento, bem como numerosos países do Oriente Médio, da África e Ásia.
O campo de concentração de Guantánamo, de exclusiva responsabilidade da administração de George W. Bush, é o caso mais nefasto e escandaloso de atentado consciente e em grande escala contra os direitos humanos, porque foi conseguinte à invasão unilateral do Iraque, justificada com falsos pretextos e que apenas serviu para arruinar o prestigio e a credibilidade de Washington, além de abrir o caminho para a crise múltipla que estamos globalmente imersos.
E não se trata de um caso isolado. As torturas praticadas em diferentes prisões sob controle militar norte-americano (penso sobretudo em Abu Ghraib) com tons de perversidade e sadismo – provocando revoltas e transtornos psíquicos nas tropas que participaram – hoje são conhecidas no mundo inteiro. Ainda é pouco o que se sabe sobre o que ocorreu – e que parece continua ocorrendo – em Guantânamo. Em particular se desconhece o tipo de informação que receberam as autoridades dos aeroportos – e seus respectivos governos – por onde passaram os prisioneiros e as cumplicidades que existiram.
Já foram libertados alguns prisioneiros por terem provado sua inocência. As declarações feitas são reveladoras sobre as condições de sua prolongada detenção e as torturas que sofreram. Mas falta saber muito mais e espero que com o próximo presidente dos Estados Unidos a verdade venha à tona, pouco a pouco. Por seu lado, o Tribunal Penal Internacional ganharia em prestígio se decidisse investigar o ocorrido e julgar os responsáveis.
É certo que os Estados Unidos foram atacados por atentados terroristas de uma magnitude até então desconhecida, no dia 11 de setembro de 2001. Diante desta agressão imperdoável todo o mundo foi solidário com Washington e condenou o terrorismo. Mas o governo Bush em lugar de reagir com inteligência quis exibir sua força militar ímpar, que descarregou contra um inimigo mal escolhido. A invasão do Iraque destruiu os precários equilíbrios do Oriente Médio e, no plano interno, provocou uma perseguição histérica antiterrorista que levantou barreiras discriminatórias para sua população islâmica, e tudo isso, em lugar de aniquilar o terrorismo, o fomentou. Como bem diziam os antigos romanos, “o sangue de cristãos foi a semente de novos cristãos”.
O fanatismo religioso desenvolvido nos Estados Unidos – simetricamente oposto ao fanatismo islâmico – é outro fator de preocupação em relação à herança de Bush. Não estamos livres do perigo de um ressurgimento de guerras religiosas, que são as piores guerras possíveis. Mas, a democracia norte-americana parece funcionar – apesar de todos os ataques que sofreu – o que representa, com as eleições presidenciais à vista, uma fundada esperança de mudança de modelo na ordem internacional.
Organizações dedicadas à defesa dos direitos humanos como a Anistia Internacional e associações jurídicas internacionais e nacionais investigam diversos tipos de tortura e procedimentos ilegais graves cometidos por militares norte-americanos contra suspeitos de terrorismo presos em Guantânamo. Foram criadas comissões de juristas para julgar tais violações, sobre as quais se divulgou ampla informação, como, por exemplo, a prática da tortura chamada de submarino (water-boarding). O Parlamento Europeu se ocupou destes graves assuntos, considerados politicamente espinhosos e chamou a atenção para a necessidade de se conhecer toda a verdade, doa a quem doer. Nesse sentido, foram feitas investigações e pedidas explicações que, até o momento, não foram cabalmente respondidas.
Recentemente, a Suprema Corte de Justiças dos Estados Unidos se pronunciou a favor da competência dos tribunais norte-americanos em decidir sobre estas matérias. É um passo importante na direção de reimplantar a legalidade nestes planos. Porque somente por meio do reconhecimento e da punição por todos os erros cometidos neste período crítico de sua história os Estados Unidos recuperarão o prestígio perdido em todo o mundo. (IPS)
* Mário Soares, ex-presidente e ex-primeiro-ministro de Portugal.
Fonte: Agência Carta Maior.
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