por Márcio Sampaio de Castro
Discípulo de Darcy Ribeiro, o antropólogo Mércio Pereira Gomes orgulha-se de ter sido o segundo presidente na história da Fundação Nacional do Índio (Funai) a dirigi-la por mais tempo. Foram três anos e sete meses. Distante de Brasília, Gomes repete a quem quiser ouvir que a Funai precisa ser refundada. Também afirma que a presença de ONGs estrangeiras atuando nas reservas é proporcional à ausência do Estado brasileiro. As críticas não significam que o antropólogo concorde com o comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno, que classificou a política indigenista de caótica e criticou as ONGs. “Concordo com o general quando ele diz que a política indigenista não funciona na prática, mas discordo frontalmente que as terras indígenas sejam uma ameaça à integridade nacional. Temos terras indígenas nas fronteiras com todos os nossos vizinhos e isso nunca foi problema”, afirma na entrevista a seguir.
CartaCapital: O senhor esteve à frente da Funai por três anos e sete meses, com a perspectiva de quem a conheceu por dentro, qual balanço faz da instituição?
Mércio Gomes: À frente da Funai aprendi muitas coisas sobre as quais como antropólogo não tinha clareza, mas o principal aprendizado é que precisa existir uma instituição forte dentro do Estado brasileiro para, não somente dar proteção às terras indígenas, condições de sobrevivência econômica, crescimento demográfico e abrir as portas para que os índios possam se inserir no restante da sociedade, mas também para proteger os índios dos demais brasileiros que cobiçam suas terras e daqueles que têm preconceito contra esses povos. O Estado sempre foi o local onde os índios encontraram um ambiente seguro.
CC: A Funai tem cumprido esse papel?
MG: Bom, precisamos primeiro entender como foi fundada a Funai. Ela foi criada durante a ditadura militar para assimilar os índios em um curto espaço de tempo, mas a questão indígena é algo tão forte que em seu auge essa mesma ditadura não conseguiu fugir às obrigações inerentes ao Estado para com os povos indígenas. A Constituição de 1969 tem um artigo que está entre os mais bem redigidos sobre o tema quando afirma que “terceiros não têm nenhum direito sobre as terras que sejam reconhecidas como indígenas”. Já o Estatuto do Índio é de 1973. Ou seja, mesmo contrário aos seus interesses iniciais, este Estado sob o controle dos militares criou um arcabouço jurídico de defesa dos índios. Ao término do governo Figueiredo (o último presidente da ditadura) inicia-se na Funai o reino dos coronéis, com administrações que desejavam emancipar os índios para abrir suas terras à exploração. Era gente que vinha do SNI (o extinto Serviço Nacional de Informações) e achava que os índios eram um problema. Isto levou ao surgimento das resistências, por organizações que reuniam antropólogos, indigenistas, advogados e demais interessados. Eram o que naquele tempo chamávamos de entidades da sociedade civil. Veja, então, que as ONGs surgiram com um bom propósito. Com o tempo, elas foram se firmando e o Estado se deteriorando. Consolidamos a democracia, mas não consolidamos o Estado e a Funai ficou sem forças para manter uma tradição indigenista.
CC: O senhor afirma que as ONGs surgiram com um bom propósito, e hoje, como analisa as ações das diversas organizações que atuam nas aldeias nos territórios?
MG: As ONGs se profissionalizaram. As pessoas que estão ali vivem disso, não é um trabalho ocasional, idealista. Há ONGs com 150 funcionários, que empregam jovens que saem das universidades, oferecendo-lhes estágios, e possuem filiais em diversos estados brasileiros. Ao se profissionalizar, essas organizações criam sua própria dinâmica e seus próprios interesses e um dos principais é que a Funai seja fraca, porque quanto mais fraca for a Funai mais eles vivem bem. Eles recebem recursos do exterior para fazer coisas que são atribuições da Funai. Por exemplo, tem uma ONG que recebeu 2,8 milhões de dólares para supostamente demarcar terras indígenas, como se isso fosse possível.
CC: Qual ONG?
MG: Instituto Sócio-Ambiental e quem deu esse dinheiro foi a Fundação Gordon Moore (Gordon and Betty Moore Foundation). Qualquer um pode ver no site da fundação. Isso é um esbanjamento das possibilidades de atuação das ONGs. Elas deveriam, neste momento em que o Estado brasileiro toma consciência da importância da Amazônia, estar ao lado da Funai e ao lado das lideranças comunitárias, que tentam encontrar um caminho dentro da sociedade brasileira. Então, fazer a crítica da Funai é muito fácil, porque é um órgão que tem sofrido a perda de quadros, sem renovação, e não tem os elementos suficientes para fazer a defesa e a assistência aos índios.
CC: E outras instituições como a Fundação Nacional de Saúde (Funasa)? Qual tem sido o papel delas na questão indígena?
MG: No fim da década de 90, com o governo Fernando Henrique, período em que os índios já apresentavam um crescimento em sua população, a saúde, que era uma obrigação da Funai, foi transferida para a Funasa, que aumentou substancialmente seu orçamento. Só para a questão indígena chega a 300 milhões de reais. Mas ela não tem indigenistas, não tem quadros que saibam fazer a intermediação e o relacionamento com os povos indígenas. Além disso, os quadros que ela possui são de alta rotatividade. Um médico que não tenha um espírito indigenista não agüenta trabalhar mais do que seis meses, um ano... Então, as equipes médicas se renovam sem que o conhecimento seja transferido para os que vêm depois. Isso provoca todos os transtornos que temos visto da Funasa em relação aos índios. Para trabalhar com eles tem de ter vocação, a satisfação de trabalhar com uma cultura que é diferente, mas ao mesmo tempo é brasileira, e isso só se cria por um espírito corporativista, de pessoas que trabalham juntas. A Funasa não consegue fazer isso. A mesma coisa em relação à educação, que também retiraram da Funai, passaram para o Ministério da Educação e depois municipalizaram. A educação fundamental é dada pela professorinha daquela cidade do interior, cuja base fundamental é ser contrária aos índios. Isso nunca vai produzir um conhecimento, a partir dos índios, sobre o Brasil que seja razoável e equilibrado a respeito do potencial do País, suas coisas boas e ruins. Você só entende que o Brasil é uma coisa ruim, sendo ensinado por esses professores e professoras que não têm um comprometimento com os povos indígenas. Em resumo, os índios estão sendo socializados por pessoas que são contrárias aos índios.
CC: Comparando com as ONGs...
MG: As ONGs têm muito mais responsabilidade, muito mais sentido, mas são muito poucas e não estão lá dando aula, fazendo esse tipo de trabalho junto com o Estado. Como eu disse, eles sobrevivem da carcaça da Funai. Ela deve virar um órgão forte, determinado e voltado para a sua razão de ser, para o que sabe fazer, ou seja, a proposta de socialização e integração do índio à nação, sem tirar a sua cultura. Neste contexto as ONGs deveriam vir para ajudar e a profissionalização delas viria como um serviço auxiliar do Estado e não um serviço que substitui o Estado.
CC: Há 15 anos repousa no Congresso um projeto de lei para reformar o Estatuto do Índio, cujo principal teor seria a retirada da tutela do Estado sobre os indígenas. Ele precisa ser reformulado? Qual é a urgência dessa reformulação?
MG: Este é um tigre de papel que as ONGs têm criado desde 1994. Quando a Constituição de 1988, em seu artigo 231 valoriza de modo muito explícito as culturas indígenas, os seus costumes. Muitos intérpretes da Constituição consideram este artigo um salto além do Estatuto do Índio porque acham que, quando o Estatuto diz que o propósito é “respeitar e integrar harmoniosamente a comunidade nacional”, isto seria um desrespeito à valorização dos costumes. Minha interpretação é exatamente o contrário. Estão fazendo uma exegese errada. A Constituição brasileira também valoriza o índio como cidadão e parte da nossa cultura. Acho que ela apenas explicita algo que o atual Estatuto já tem. Os defensores da reforma acham que o termo “relativamente capaz” deve ser excluído. Considero isso perigoso. Se retirarmos a tutela dos índios todo o arcabouço jurídico sobre a questão indígena vai por água abaixo. No interiorzão do Brasil, se um índio cometer um crime, ele não terá a proteção da tutela. O jurista Dalmo Dallari diz que a tutela é só um instrumento a mais de proteção e que de modo algum tira direito civil dos índios. Tirar a tutela vai acabar com um instrumento fundamental de mais de 200 anos de tradição na cultura brasileira, vai prejudicar no dia-a-dia muitos povos indígenas e muitos índios sabem disso. Agora, há outras questões, como a regulamentação do parágrafo que trata dos recursos minerais e hídricos.
CC: O Projeto de Lei 1.610/96 sobre esta questão também tramita há bastante tempo no Congresso...
MG: Sim. De algum modo é preciso que haja uma lei que regulamente essa questão. Mas voltando especificamente ao tema do atual Estatuto, o considero uma grande peça jurídica. É tão bom que serviu de inspiração para a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (que trata sobre os povos indígenas). Em resumo, querer modificar o Estatuto é uma temeridade, é desnecessário modificar uma lei tão bem-feita e tão importante, que permitiu a demarcação de 13% do território nacional.
CC: Recentemente o general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, afirmou que a política indigenista brasileira é caótica e precisa ser reformulada. O general tem razão?
MG: Há dois pontos mencionados pelo general que são importantes. Com um deles concordo, com o outro não. O que o general fala é que a Amazônia é o ponto focal, ou na linguagem deles o ponto alfa de defesa nacional, e de fato todos nós brasileiros concordamos. Essas mudanças climáticas, a pressão internacional sobre a Amazônia, a sua devastação para plantações ou para a retirada de madeira e a repercussão sobre isso nos preocupa a todos. Não só do ponto de vista do Brasil, mas também dos interesses que isso causa em outros países. Dizer que a Amazônia não é uma questão de soberania nacional é um engano. É claro que é! Concordo também que o Estado tem de estar presente. A única maneira de o Brasil garantir sua soberania naquela região é ter o Estado presente. O Estado significa uma Funai forte, com postos indígenas, com efetiva assistência aos índios, um Ibama forte, que defenda as terras do patrimônio da União e que regulamente as terras com retirada legal de madeira, um Incra determinado para regulamentar os processos de assentamento de terras, um Embrapa com força para descobrir e ajudar os povos da floresta a explorar os seus recursos sem devastação, e um Exército forte, que faça a proteção de nossas fronteiras.
CC: Para o general, o risco estaria justamente nessas áreas.
MG: Discordo frontalmente do general quando ele diz que terras indígenas na fronteira são um perigo para a soberania nacional. Isto porque o Brasil tem 17,5 mil quilômetros de fronteira territorial com dez países da América do Sul. Desse total, 5,7 mil são de terras indígenas. Temos terras indígenas com todos os países que nos fazem fronteira. Nenhuma dessas terras provocou sentimento de inviabilidade ou quebra da soberania brasileira, nelas o Exército está presente com seus batalhões e se tivesse mais força teria mais batalhões se assim achasse necessário. Os soldados que ali estão são soldados indígenas, recrutados nas aldeias. Passam dois, três anos como soldados. A Raposa Serra do Sol é só um ícone desse receio que não faz sentido. Nós vamos desfazer os 5,7 mil quilômetros de fronteira indígenas que já existem? O general está apontando o seu fuzil para o lado errado. Deveria apontar para o próprio Estado que precisa reforçar seus equipamentos e instrumentos de poder lá. E os principais são o Exército, a Funai e o Ibama.
CC: Quais são as verdadeiras ameaças na questão amazônica? As ONGs estrangeiras, a falência do Estado ou algum outro fator?
MG: O principal vazio que há na Amazônia corresponde a um fator: é o Brasil ter certeza de que a Amazônia pertence ao Brasil e que não é um apêndice do País, mas o próprio País. Quando nós tivermos essa certeza, através de um discurso que signifique esta certeza, a Amazônia não terá nenhum perigo de ser objeto de alguma cobiça internacional porque ficará evidente para todos. As manifestações de apreço e da importância da Amazônia para o Brasil são fundamentais. Essa fala do general trouxe este sentimento à tona porque muitos brasileiros se identificaram com ela, porque estão vendo a região ser comentada por todos os meios pela imprensa internacional, com manifestações de que o Brasil é irresponsável em relação ao papel da Amazônia na preservação do clima e das condições de sobrevivência na Terra. Se o povo brasileiro, a elite intelectual, política, militar e empresarial se der conta disso não haverá perigo. A presença de ONGs estrangeiras é proporcional à ausência do Estado. Se o Estado estiver presente, as ONGs não terão presença. É inversamente proporcional. Um Estado forte tornaria a presença delas ali circunstancial e os índios mais conscientes de seu papel dentro da sociedade brasileira.
Fonte: Carta Capital
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