segunda-feira, 21 de julho de 2008

O fracasso de Guantánamo



por Manuel Ballbé
De Barcelona

Dizem que na Espanha, como na maioria dos países latino-americanos, ao longo de quase dois séculos reinaram os princípios de uma "república das bananas", devido aos constantes regimes militares nessas nações. Os observadores que mais nos colocavam em evidência por conta disso eram precisamente os que provinham de uma tradição constitucional anglo-americana, de secular hegemonia do poder civil frente ao poder militar.

Um exemplo desta tradição de supremacia civil eram os Estados Unidos e a famosa sentença de sua Corte Suprema no caso Milligan, de 1865, que recusou aos tribunais militares, inclusive durante a Guerra Civil, o direito de julgar os cidadãos do país, em todos os casos nos quais houvesse tribunais civis comum em atividade. Posteriormente, a lendária lei de polícia de 1876, denominada Posse Comitatus Act (literalmente, "lei do poder do condado"), proibia os militares federais de exercer funções de polícia e tomar parte de corpos de polícia locais, ainda que temporários, ao contrário de qualquer outro cidadão.

Por outro lado, na tradição latino-americana, como na Espanha, inclusive durante os regimes constitucionais, a polícia ou estava constantemente militarizada ou suas funções eram levadas a cabo diretamente pelos militares. Ainda assim, os tribunais militares se intrometiam em todo tipo de conflito - trabalhistas, políticos, de contrabando - e impunham aos envolvidos desproporcionais condenações por delitos equiparados a um motim ou rebelião militar, sem as garantias judiciais mínimas.

O mundo ibero-americano, depois de dois séculos, comprovou que recorrer aos métodos de guerra e aos militares para resolver conflitos internos ou problemas estritamente de delinqüência (ainda que sejam de terrorismo) teve como único resultado agravar as situações de crise que medidas propunham enfrentar e polarizar a sociedade, deslegitimando instituições básicas do Estado, que devem funcionar em separado e que são muito diferentes: a justiça civil ordinária, a polícia profissional civil e os militares.

Depois dos ataques terroristas do 11 de setembro de 2001, o governo Bush, ao invés de responder com as instituições tradicionais dos regimes democráticos, recorreu a todo o arsenal bélico, tanto verbal como material.

Talvez isso tenha servido para ocultar seu fracasso por não ter prevenido os atentados. Uma das causas era clara. O efetivo das forças policiais públicas dos Estados Unidos eram - e continuam sendo - anoréxicos (900 mil policiais) frente ao desorbitado número de vigilantes de segurança privada (dois milhões). Isso explica por que sejam incapazes de criar um sistema de cooperação policial internacional.

Porque se já faltam policiais no interior de seu próprio país, mais se encontram em falta no trabalho exterior. Certamente, apenas algumas centenas de policiais norte-americanos estão trabalhando em cooperação com as polícias da Espanha, Marrocos, Paquistão etc.. E os serviços de informações, como a Agência Central de Inteligência (CIA), não são os mais adequados para promover o contato internacional cotidiano com forças policiais que dispõem de autêntica informação, já que seus integrantes trabalham nas ruas dos bairros mais remotos de Islamabad, Tetuan ou Barcelona.

Estas carências policiais são observadas claramente na ação da Administração de Combate a Drogas (DEA). Ainda que seja uma força policial de nome muito famoso, é composta por apenas dez mil agentes encarregados de trabalhar no interior e sobretudo no exterior dos Estados Unidos. E no entanto, para lutar contra o terrorismo internacional, os Estados Unidos não dispõem nem sequer de um ínfimo número de agentes de polícia destacados para a cooperação policial no exterior.

Por outro lado, tentam resolver este vazio policial internacional com o destacamento por todo o mundo de várias centenas de milhares de militares, que obviamente não representam a profissão preparada e adequada para prevenir e perseguir a delinqüência seja ela ligada ao terrorismo, ao narcotráfico, etc.

É certo que a Espanha tem um terço a mais de agentes de polícia que os Estados Unidos (em proporção à sua população). A Espanha tem um policial para cada 200 habitantes e os Estados Unidos têm um para cada 350 habitantes. Apesar disso, o governo do primeiro-ministro espanhol José María Aznar também não soube prevenir o atentado de 11 de março de 2004 devido à crença obsessiva em que a ameaça terrorista proviesse unicamente dos separatistas bascos. E o fez para tentar se esquivar de suas responsabilidades políticas por seu envolvimento na guerra do Iraque, apesar da esmagadora e ativa oposição da maioria dos espanhóis.

A estratégia de um grupinho terrorista pouco arraigado e com ínfimo apoio na população (como o da Al Qaeda no Iraque) necessita provocar uma intervenção militar e práticas de guerra desproporcionais, para que ao final se produzam danos "colaterais" à toda população civil e resulte um movimento de massa de repúdio a esta intervenção militar.

Recentemente o próprio Bush disse que a declaração que fez de "Bin Laden: vivo ou morto" não só foi reprovada por sua própria esposa naquele momento, mas também que foi uma tática errada. Um experiente diretor da CIA também declarou que a estratégia de guerra para combater o terrorismo islâmico significou misturar o 1,2 bilhão de muçulmanos em todo mundo a uma questão de delinqüência terrorista que envolve poucos deles. Além disso, os Estados Unidos com essa polarização simplista, não reconhecem abertamente os fatos e escondem que as principais vítimas deste terrorismo jihadista têm sido também os próprios cidadãos muçulmanos (no Quênia, Marrocos, Indonésia, Argélia e inclusive Espanha...).

Essa política de guerra contra o terrorismo encontra perfeita expressão no errôneo modelo de Guantánamo, onde nem as leis de guerra e nem a Convenção de Genebra são respeitadas. O governo Bush alegou que é necessário conduzir julgamentos militares para "a proteção de informações classificadas, garantir a segurança física de todos os participantes e testemunhas, proteger as fontes e métodos proporcionados pelos serviços de inteligência e polícia, e outras questões de interesse da segurança nacional".

A Espanha demonstrou, ao julgar os responsáveis pelo atentado de 11 de março de 2004 (em um caso investigado pela polícia comum e julgado em tribunais civis) que é possível garantir tudo isso por meio da Justiça comum e respeitando as garantias constitucionais. Em última análise, a atitude espanhola legitimou e reforçou a luta contra o terrorismo internacional, e o poder da polícia e dos juízes da Espanha.

O problema é que a luta contra o terrorismo internacional só pode ser conduzida de maneira eficaz por meio da intensificação da cooperação entre forças policiais, judiciários e autoridades fiscais em todo mundo, ao estilo do bem conhecido trabalho do juiz Garzón. O problema quanto ao isso no momento, e o conseqüentemente enfraquecimento dos esforços do combate ao terrorismo, se deve ao fato de que hoje, nos Estados Unidos, não são os juízes ou os promotores comuns que exercitam as competências que lhes são primordialmente atribuídas.

Em lugar disso, esse papel passou a ser exercido pelos tribunais militares, que também vêm desempenhando responsabilidades de polícia e de informações.

Na prática, a Corte Suprema dos Estados Unidos é que vai ficar na História como instituição mais competente para ditar sentenças nos inúmeros casos referentes a Guantánamo (que começaram com os processos Rasul vs. Bush e Hamdi vs. Rumsfeld, de julho de 2004, e com o caso Hamdam vs. Rumsfeld, de julho de 2006). Uma sentença recente da Corte Suprema dos Estados Unidos, sobre o caso Boumediene vs. Bush, dispunha, em junho de 2008, que os prisioneiros em Guantánamo têm direito a solicitar hábeas corpus, de modo a atribuir a um juiz federal a responsabilidade por avaliar a legalidade ou ilegalidade da detenção, e assegurar que o direito dos prisioneiros a um processo legal justo estão sendo respeitados.

Com certeza, por meio dessas decisões a Corte Suprema norte-americana fez prevalecer os tradicionais princípios constitucionais de liberdade e de proteção aos direitos dos prisioneiros e de julgamento justo que os Estados Unidos sempre respeitaram.

O governo Bush vinha alegando que, porque Guantánamo é uma base naval em território cubano e não um território sob soberania dos Estados Unidos, os juízes federais do país não tinham autoridade para interferir e tentar controlar as atividades do Executivo do país em território estrangeiro. A Corte Suprema, ao contrário, decidiu que embora a base esteja localizada em território estrangeiro, sempre que o governo norte-americano exercer "jurisdição e controle" sobre uma determinada área, sua atuação e quaisquer formas de detenção estarão sujeitas ao controle da Justiça e às garantias constitucionais aplicáveis em território norte-americano.

Dessa maneira prevaleceu o velho princípio liberal da Justiça inglesa, sob o qual "a Carta Magna segue a bandeira", ou seja, os princípios constitucionais e o direito de jurisdição do Judiciário acompanham as ações das forças armadas de um país em qualquer parte do mundo.

Todo esse sistema de controle proclamado pela Corte Suprema significa não mais do que voltar a respeitar o mais genuíno dos princípios constitucionais dos Estados Unidos, o de controle e moderação recíprocos entre os poderes. Isso significa que todo poder precisa ser cerceado e controlado de maneira a equilibrar os diferentes ramos: o poder civil ante o poder militar, o poder policial ante o judicial, os poderes Legislativo e Judiciário diante do Executivo, e assim por diante.

Mas, além de esse ser o princípio constitucional e democrático por excelência dos Estados Unidos, também já foi demonstrado que é igualmente o mais eficaz e o mais eficiente dos princípios políticos. É certamente por influência desse controle mútuo, por exemplo, que as capacidades dos órgãos policiais são aperfeiçoadas; já que a polícia opera sujeita a controle por outras instituições, ela precisa se aprimorar e não pode agir de maneira arbitrária e sem dispor de provas científicas de suas alegações - exatamente o que aconteceu em Guantánamo.

Espanha e América Latina, apesar de terem vivido sob poderes autoritários e militares desmesurados e descontrolados agora estão ensinando aos Estados Unidos - com o julgamento dos responsáveis pelos atentados de 2004 em Madri - que a maneira mais eficaz de lutar contra o terrorismo é manter o controle do Poder Judiciário comum sobre a polícia e sobre as forças armadas, porque isso exige provas irrefutáveis e investigações bem conduzidas, para perseguir e condenar de maneira eficaz a qualquer criminoso.

E, se os objetivos proclamados pelo governo Bush eram implantar a liberdade e a democracia em todo o mundo, Guantánamo não significou de maneira alguma o estabelecimento de um exemplo do que eles pretendiam construir - bem pelo contrário. Como declarou Manuel Azaña, presidente da Espanha nos anos 30, "suprimir a liberdade, por qualquer que seja o motivo, a ocasião ou a forma de supressão adotada, na verdade favorece os inimigos da liberdade".


Manuel Ballbé é catedrático de Direito Administrativo na Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha

Fonte: Terra Magazine

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