Por Adriana Facina |
A cuíca chora
Pois há roubo na balança
Quando o povo entra na dança
Chora mais do que criança
O pandeiro gargalha
Com o fogo de palha
Que o vento balança
E o povo inocente
Sambando nem sente
O vazio na pança
Fica lá no terreiro
Pois para o herdeiro
Ele fez poupança
E a cuíca chora
Pois há roubo na balança
O surdo se espalha
Marcando metralha
E nem dá confiança
Pro povo espremido
Que é sempre ferido
Com a ponta da lança
Depois da debanda
Alguém ainda manda
Ele pagar fiança
E a cuíca chora
Pois há roubo na balança
A viola vadia
Tem a filosofia
Que o moço não alcança
E o povo enganado
Não está conformado
Mas tem confiança
De ver um milagre
Sair do vinagre
É a sua esperança
E a cuíca chora
Pois há roubo na balança
(letra de Quando o povo entra na dança,
de Beto Sem Braço e Carlito Cavalcanti)
A atual conjuntura está marcada por uma crise econômica já em curso, cuja face mais perversa é a alta do preço dos alimentos. Em grande medida, essa elevação geral dos preços dos gêneros alimentícios é causada por especulação financeira, já que os alimentos como feijão, milho, trigo, entre outros, tornaram-se commodities negociadas em bolsas e permeadas pela lógica da financeirização da economia. O fato de nenhum ser humano conseguir sobreviver sem alimentos não interfere nesse processo, o que demonstra que, para a economia de mercado, o lucro precede sempre a vida.
Edward Palmer Thompson, historiador marxista britânico e um dos mais importantes pensadores da segunda metade do século XX, realizou uma série de estudos sobre revoltas populares que caracterizaram o processo de constituição do capitalismo na Inglaterra, país que foi pioneiro na consolidação da economia de mercado. Os motins do pão, por exemplo, se desenrolavam como uma negociação entre a plebe sublevada e os comerciantes do pão a partir de valores em conflito. De um lado, com base na idéia de que o lucro e o direito à propriedade privada não poderiam prevalecer sobre a vida humana, os revoltosos exigiam um preço justo para o pão, principal alimento popular na época (e de certo modo ainda hoje), delineando o que Thompson designava uma economia moral. De outro, os defensores do direito irrestrito de lucrar como motor do progresso econômico, ainda que isso custasse a fome do povo. Era a economia de mercado despontando como novidade histórica.
Outro estudioso desse mesmo processo de implementação do capitalismo, o antropólogo austríaco Karl Polanyi, afirma que a constituição da economia de mercado é um processo tão violento que exige uma transformação radical na sociedade, no sentido de torná-la uma sociedade de mercado, na qual mesmo a terra e o trabalho humano são transmutados em mercadorias. A grande transformação coloca sob ameaça a existência da vida humana, pois condena a maior parte da humanidade a depender do mercado para obter seu sustento básico, e também a própria natureza, mercantilizada e utilizada de modo predatório em nome do desenvolvimento econômico.
Na sua atual fase, o capitalismo acentuou esse processo ao colocar a produção de alimentos sob a batuta do agronegócio. Os princípios do agronegócio são incompatíveis com a produção em larga escala de alimentos baratos. Primeiramente, porque essas grandes empresas são pautadas por uma lógica intricada cujo objetivo é sobrevalorizar os preços das mercadorias produzidas, envolvendo, por exemplo, a utilização de transgênicos e agrotóxicos massiçamente. Segundo, em todo o mundo, mesmo nos EUA, o agronegócio depende de largos subsídios estatais e protecionismos, sustentados com dinheiro provenientes dos impostos pagos pela população. Terceiro, o impacto ambiental é muito superior ao da agricultura familiar, fazendo com que as previsões a longo prazo apontem para um esgotamento desse modelo e, conseqüentemente para uma busca pelo lucro imediato e predatório. Por fim, como conseqüência disso, o uso da terra vai se destinar à produção que dê mais retorno imediato, e que no presente momento são os grãos que em boa parte vão se destinar ao consumo animal (na forma de ração) e, sobretudo, os agrocombustíveis.
No mundo real, isso se reflete nos preços dos alimentos nos mercados, em gente comendo menos e numa catastrófica fome mundial já anunciada pela ONU. Significativamente, o maior aumento foi o do preço do pão. Motivos para motins como os descritos por Thompson na Inglaterra do século XVIII não faltam, já que, sob a perspectiva de uma economia moral, podemos dizer que nos encontramos diante de um grave crime contra a vida humana.
Talvez por isso mesmo, em meio a tudo isso, um relativo silêncio midiático sobre a crise, assunto colocado meio que de escanteio para dar lugar a um grande circo armado em torno da morte da menina Isabela. Na capa da Veja, a condenação sem mais na manchete em letras garrafais: Foram Eles. A população revoltada, clamando por uma justiça que não encontra em sua própria e cotidiana vida, dando contornos de classe ao caso em afirmações como: “se eles fossem pobres já estariam presos”. Pedras, gritos, grafites, quanta energia de inconformismo direcionada ao escabroso assassinato que traz à tona tabus da nossa sociedade como o infanticídio, enquanto crianças são assassinadas de modo violento pelo estado nas favelas e periferias, ou mesmo condenadas a um futuro sem esperança, o que não deixa de ser um assassinato, lento, mas não menos violento.
Num filme francês chamado O Ódio, que trata da situação da juventude dos multiétnicos e explosivos subúrbios parisienses, um dos personagens conta uma história interessante. Ele fala de um homem que salta do alto de um prédio e, antes de chegar ao inevitável encontro fatal com o solo, durante a queda, a cada andar repete para si mesmo: “até aqui está tudo bem”. Em tempos de barriga vazia, onde falta o pão, o circo providenciado pela mídia permite o extravasamento da revolta, do sentimento de injustiça, ao mesmo tempo em que, suavizando a relevância e a gravidade da crise, nos autoriza a dizer que, até aqui, vai tudo bem.
Adriana Facina é antropóloga, professora do Departamento de História da UFF, membro do Observatório da Indústria Cultural e autora dos livros Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004) e Literatura e sociedade (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004).
Fonte: Fazendo Media
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