segunda-feira, 3 de março de 2008

O trabalho do luto - por Idelber Avelar - fonte: http://www.idelberavelar.com/

O trabalho do luto

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(mulheres em luto na Palestina. Foto: AP).

Parece que entre os aztecas, a morte era vista como um pequeno acidente de percurso numa ordem cósmica e, ao contrário das civilizações ocidentais, a forma da morte, não o feito durante a vida, determinava o rumo do morto.

No politeísmo yoruba, base do nosso candomblé, os rituais fúnebres são festivais: danças onde os egunguns se comunicam com os vivos.

Sobre esses outros modos de lidar com a morte, sei pouco. Mas, preparando-me para escrever um livro sobre o luto, andei durante uns anos lendo bastante sobre a história de como a filosofia ocidental tem entendido a morte.

Ao imaginar sua República ideal, Platão insistentemente pede aos poetas que não retratem Aquiles, o filho de uma deusa, "de costas ou de lado . . . ou agarrando com ambas as mãos a negra areia . . . ou chorando ou lamentando-se" (388b). Ao longo da obra, é nítido o receio de Platão ante uma possível explosão de choro das mulheres, que poderia, segundo o filósofo, minar os fundamentos da estabilidade da pólis.

Ao longo da filosofia helênica, o luto é pensado sobretudo como coisa de mulheres, ao qual se associa um potencial subversivo e perigoso.

Por que Platão exila o poeta da República? Há a resposta consagrada pelos manuais escolares, e que não é incorreta: o poeta é exilado porque é copiador de uma cópia. Tal como o pintor, que copia a cadeira de madeira que já é uma réplica da "cadeira ideal" do mundo das formas, o poeta é uma espécie de opaco carbono, duplamente removido da verdade.

Mas isso acontece no Livro X da República. Já no Livro III o poeta havia sido banido, por outro motivo: a poesia torna os jovens mais "sensíveis e brandos do que os queremos" (387b).

O poeta é expulso da República por ser uma espécie de porta-voz do luto barulhento das mulheres que, teme Platão, um dia acabará derrubando a pólis.

Na "longa noite do cristianismo" Friedrich Nietzsche observa uma degradação da morte: privatizada, empurrada para dentro de cubículos, alcovas e hospitais, a morte já não traz nada de heróico, altivo. Humanos, convertidos em vermes sem nenhum orgulho, arrastam-se, humilhados, pelo direito de vegetar na cama mais umas semanas ou meses. Nada mais longe, segundo Nietzsche, do orgulhoso guerreiro pagão que escolhe a hora da morte e vai à montanha abraçá-la.

O texto sobre o luto mais influente do século XX é, sem dúvida, o "Luto e Melancolia", de Freud, escrito durante a primeira guerra mundial. É lá que Freud arma a teoria: o luto é o processo pelo qual o ego retira seu investimento libidinal do objeto perdido (o morto) e paulatinamente transfere-o a um objeto substituto. A conclusão desse processo seria a "resolução saudável" do trabalho do luto.

Quando essa resolução não acontece, e o enlutado permanece fixado no objeto perdido, incapaz de sublimá-lo num substituto, o luto se arrasta, não-resolvido, e o sujeito desemboca na melancolia: desinteresse pelo mundo externo, auto-centramento, paralisia, repetições compulsivas.

Para Freud, então, o luto seria "normal" e a melancolia seria "patológica" - uma patologia que advém, precisamente, da impossibilidade de fazer o luto.

Acontece que, ao longo do século XX, feministas, psicanalistas, pensadores vários mostraram que talvez a separação entre o normal e o patológico não seja tão firme como queria Freud. Talvez em todo processo de luto haja um momento irredutível de melancolia. Talvez todo processo de luto inclua um momento em que o enlutado nem sequer aceita a possibilidade de que o luto seja realizado, de que o objeto perdido seja "esquecido" ou sublimado. Talvez todo trabalho do luto inclua um momento em que o enlutado percebe a possível resolução do luto como uma traição ao morto.

Depois do Holocausto - a morte transformada em política genocida, estatal de aniquilação - o filósofo Theodor Adorno afirmaria que aquilo jamais poderia ser devidamente processado pelo trabalho do luto. A enormidade daquilo demandaria para sempre um luto suspenso, irrealizado.

Segundo o pensador italiano Giorgio Agamben (que chega este mês ao Brasil, mais detalhes aqui em breve), a forma da morte nas nossas sociedades é marcada pela produção incessante do homo sacer, o homem que vive no limite do vivível, aquele cuja vida é permanentemente dispensável, esteja ele em Bagdá, Guantánamo ou no Ninth Ward de New Orleans.

Com a teocracia fundamentalista bélica que hoje governa o país mais poderoso do mundo, o desprezo pela morte alheia teria chegado ao seu ápice.

fonte: http://www.idelberavelar.com/


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