Márcia Pinheiro e Phydia de AthaydeA disparada dos preços dos alimentos detonou um clima de guerra global. Na América Latina e no Caribe, manifestações pipocam desde o início do ano. Uma passeata no México contra a escalada do custo da popular
tortilla, feita do milho americano, reuniu mais de 75 mil pessoas na capital, em janeiro. O presidente venezuelano, Hugo Chávez, responsabiliza os atravessadores pela falta de leite e pão no país e tenta aplacar o descontentamento da população, afetada pelo desabastecimento. Como tantos, atribui a culpa da falta de comida à expansão dos biocombustíveis, que supostamente ocupariam áreas antes destinadas aos alimentos. Para discutir a situação, Chávez convocou, na quarta-feira 23, uma reunião extraordinária da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), da qual fazem parte Cuba, Bolívia, Nicarágua e Venezuela.
Preocupado com uma onda de violência no Haiti, o Brasil enviou neste mês à ilha caribenha 14 toneladas de feijão, açúcar e óleo de cozinha. Ao sul do continente, a presidente Cristina Kirchner deparou-se com uma Argentina em greve de associações ruralistas, quando taxou as exportações de soja e de semente de girassol em março. Além disso, as exportações de trigo do país vizinho para o mercado brasileiro continuam suspensas. O Brasil importa da Argentina 70% do trigo que consome e tem contornado a situação com compras dos Estados Unidos e do Canadá.
Em medida emergencial, para garantir o abastecimento interno e conter a inflação, o Ministério da Agricultura brasileiro anunciou a suspensão da exportação do arroz dos estoques do governo, na quarta 23, e pode estender a medida ao milho. No mesmo dia, a rede de atacado americana Sam’s Club informou que vai limitar a venda de arroz ao consumidor. Cada cliente terá um teto de quatro sacos de 9 quilos do produto por mês. A questão deixou de ser estatística, com impacto nos índices inflacionários mundiais, para adentrar à seara política. São recorrentes as revoltas, os saques e as manifestações em Moçambique, Iêmen, Uzbequistão, Peru, Indonésia, Mauritânia, Camarões, Egito e Senegal.
Como por encanto, o tema segurança alimentar substituiu o petróleo como a maior preocupação do planeta. Isso apesar de o barril ter se aproximado da marca dos 120 dólares e contribuir, de forma significativa, para a alta dos preços dos alimentos, pois muitos derivados são fundamentais na lavoura e no transporte. Ainda que de maneira equivocada e tardia, o assunto chegou à agenda dos organismos internacionais. Os biocombustíveis foram repentinamente retirados da lista de salvadores do meio ambiente e passaram a figurar na coluna dos principais vilões da inflação mundial. De fato, a produção de etanol do milho tem avançado, nos Estados Unidos, sobre lavouras antes dedicadas ao abastecimento de comida. Mas está longe de ser o caso do etanol brasileiro, produzido a partir da cana-de-açúcar
(leia o quadro).A afobação para se achar um culpado obnubilou a boa análise. O diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn, disse que a produção de combustíveis, em detrimento de alimentos, era uma questão “moral”. O presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, também resumiu a questão em encher ou não os tanques dos automóveis. Coube ao secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, o papel de mediador do debate, com uma dose de equilíbrio. Segundo ele, são muitas as razões para a alta de alimentos, que não se esgotam na competição entre biocombustíveis e agricultura.
Há, no horizonte, um motivo para a crescente crítica dos países industrializados aos biocombustíveis e ele não está baseado em repentinas preocupações humanitárias. Tem a ver com negócios e interesses geopolíticos. Está previsto para 19 de maio um encontro ministerial que visa encerrar a Rodada de Doha, iniciada em 2001, da Organização Mundial do Comércio (OMC). O embate se concentra na questão dos subsídios dos países ricos (Estados Unidos, Japão e nações européias) aos produtores agrícolas. Tanto que o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, alertou para a intransigência do Primeiro Mundo, cujos bilhões de dólares e euros destinados ao campo estariam desestimulando o aumento da oferta de alimentos por parte dos países em desenvolvimento.
Amorim acenou, no entanto, a bandeira branca, na terça-feira 22, e disse que o Itamaraty está disposto a aceitar uma abertura negociada do mercado brasileiro às manufaturas estrangeiras, em troca de uma “redução substancial” dos subsídios. O que se teme é o fracasso da rodada, se não ocorrer neste primeiro semestre, em razão da mudança do governo nos EUA, com a eleição presidencial. Os democratas, com boas chances de vitória, são tidos como mais protecionistas do que os republicanos. A questão de fundo não é o etanol, cuja importância foi fortemente defendida pelo presidente Lula, em revide aos ataques do FMI e do Banco Mundial. Há muito mais em jogo.
De acordo com o professor José Maria da Silveira, do Núcleo de Economia Agrícola da Unicamp, quatro fatores explicam a atual crise. Primeiro, e inegável, é a inclusão dos cidadãos chineses e indianos no mercado mundial. São 450 milhões de consumidores que deixaram a linha de pobreza, desequilibraram as leis de oferta e demanda e surpreenderam a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), que foi “desleixada” em relação à pesquisa agrícola e assistiu passivamente à produtividade do setor desabar, segundo o economista.
No mundo desenvolvido, os Estados Unidos e a Europa não abrem mão dos subsídios aos agricultores. O resultado foi a falência das chamadas fazendas familiares americanas, que perderam o trem do avanço tecnológico, fato aguçado pela desvalorização do dólar, que ajudou a bombar os preços das commodities agrícolas. De seu lado, os países europeus sentaram em cima do protecionismo, com o estabelecimento de cotas regionais e produção de alimentos de origem controlada e grife, “que não enche a barriga do mundo”, como foie gras, azeites, vinhos e embutidos. “Tudo cercado de um modelo empresarial ultrapassado”, diz Silveira.
E qual é a saída? Lucilio Rogério Aparecido Alves, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/Universidade de São Paulo), acredita que os mercados vão se definir por si só. “Há um aumento forte na demanda de alimentos, desde 2006, e o Brasil tem um papel importante diante desse cenário, por ter um bom volume de produção disponível e por ser o único país, no mundo, com áreas disponíveis para aumentar a produção”, diz Alves, também pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da USP.
Ele ressalta que as novas lavouras não precisam avançar sobre a Amazônia. “Temos áreas de pecuária não competitiva que podem ceder espaço para grãos, como soja e milho. Se isso vai acontecer ou não, dependerá da relação de preços.” Mas o professor destaca que o Brasil tem uma enorme lista de deveres de casa a cumprir, desde desenvolver pesquisas para aumentar a produtividade até realizar melhoras na infra-estrutura. “Isso depende de muito investimento, e não é necessariamente um Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que vai resolver”, alerta.
Não há, é óbvio, solução mágica de curto prazo nem o Brasil será capaz, sozinho, de desempenhar o papel de celeiro do mundo. O tema é candente e merece atenção imediata, daí o desespero que tomou conta das autoridades mundiais. Segundo levantamento da organização americana Council on Foreign Relations, além do Brasil e da Argentina, a escassez de alimentos levou vários países a suspender as exportações, para abastecer o mercado interno. É o caso do Cazaquistão, importante supridor de trigo para a Ásia Central, do Vietnã, o segundo maior exportador mundial de arroz e da Índia.
Na reunião de primavera do FMI, em meados de abril, Zoellick, do Banco Mundial, propôs um tipo de New Deal para a Política Global de Alimentos, que incluiria a doação de 500 milhões de dólares dos países ricos para transferências em dinheiro vivo às populações com fome, além da elaboração de programas que resultem em maior produção mundial. Tal iniciativa seria emergencial e não toca no problema central. Falta comida e sobra especulação dos mercados financeiros. Para o semanário britânico The Economist, a crise dos alimentos deveria ser levada tão a sério como a do subprime. Seria urgente a criação de um fundo de ao menos 700 milhões de dólares para ajuda humanitária aos países mais pobres.
Na esteira da carência mundial, entraram em cena os especuladores. A publicação dedicada a finanças Barron’s, do grupo The Wall Street Journal, informou em 31 de março deste ano que ao menos 40% das apostas em mercados futuros de commodities estão em mãos de fundos altamente especulativos. Em razão da crise americana do subprime, os investidores em busca de alto retorno migraram para os contratos futuros de alimentos e metais. Para ter uma idéia da força das finanças, entre 31 de dezembro de 2004 e 31 de março de 2008, os preços futuros dos grãos e sementes deram um salto de 163%, de acordo com o conceituado índice CRB da Reuters.
A especulação não surgiu do nada. Tem como base a percepção de que está em curso uma mudança estrutural da economia mundial. Segundo Pedro de Camargo Neto, presidente da Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína (Abipecs) e antigo observador das rodadas mundiais de comércio, há uma somatória de fatores que fez o mundo acordar para a questão alimentar. O programa de etanol do milho nos Estados Unidos “enxugou” muito da oferta global. Antes mesmo disso, afirma, houve o crescimento acelerado da China, que passou a demandar toneladas de soja e fertilizantes. Assim como a Rússia, grande importadora de carne do Brasil.
Ele cita também a Austrália, que passa por seguidas secas há anos, e desabasteceu o mundo, principalmente, de leite e derivados. Por fim, a desconfiança dos ativos financeiros americanos e europeus com a crise hipotecária do subprime gerou a busca por ativos reais, como grãos e metais preciosos. “Para atender ao aumento da demanda, é preciso o mundo todo produzir mais”, diz. Camargo Neto é cético em relação aos resultados da Rodada de Doha, pelas iniciativas protecionistas que se multiplicam mundo afora.
Para o empresário, os arcabouços de organização global, representados pelo FMI, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio, por exemplo, enfrentam uma crise por ter sido criados para atender às iniciativas das nações ricas. Como o eixo do poder está se movendo em direção aos emergentes, cujas demandas ganharam fôlego, as negociações emperram.
A hora e a vez, segundo especialistas, é do Brasil e dos países africanos. Apostar em inovação tecnológica é a chave para o abastecimento global, com o horizonte de preços em ascensão, diz Silveira, da Unicamp. Trancar os mercados é ato impensado, fruto da inoperância dos acordos multilaterais. O desafio é expandir uma produção agrícola menos intensiva em energia, com respeito ao meio ambiente, e arranjos produtivos que combinem tecnologia e inovação, além de incentivar esquemas de cooperativas para que o crédito chegue ao produtor rural. Não há alternativa.
O mundo precisa mudar, antes que a próxima crise se una à atual. Seria um disparate se, ao mesmo tempo que enfrenta a escassez de comida, o planeta começasse a ter problemas no fornecimento de água potável, a desencadear uma nova disputa global.
Fonte:
Carta Capital
A revolta dos pobres
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