APOTEOSE E NAUFRÁGIO DA NOVA ECONOMIA
A economia mundial está sob controle de umas 200 corporações globais que controlam 25% do PIB mundial. Max Weber teceu cogitações sobre a superioridade do capitalismo a partir dos seus supostos atributos éticos, como a frugalidade, o ascetismo, o sossego. Tal capitalismo, se é que existiu alguma vez, evidentemente não existe mais.
René Báez - Alai Amlatina
As emblemáticas falências das gigantes Enron e WorldCom e as estrondosas quedas da Bolsa de Nova York, em 2000, ressuscitaram o fantasma da Grande Depressão dos anos 1930. Do seu lado, os descalabros monetário-financeiros no Mercosul no início desta década — mal amenizados pelas blindagens do FMI— vieram confirmar a presunção de que o capitalismo global tinha evoluído para um caso clínico. Os presságios sombrios multiplicaram-se inclusive entre os apologistas do establishment. O que estava por trás desses novos espasmos do capitalismo, que o atingiam tanto em seus núcleos centrais como na periferia?Vamos abordar essa questão a partir da ótica da Economia Política.
Caracteriza o regime de produção capitalista seu desigual desenvolvimento no espaço (países que crescem e países que ficam estancados e, inclusive, retrocedem) e no tempo (ciclos com suas fases de apogeu, crise, recessão e reanimação). As crises constituem o momento crucial desse sistema econômico-social, uma vez que põem à prova sua capacidade de reprodução. E, inclusive, de uma perspectiva temporal mais ampla, interpelam sobre a validade do multissecular paradigma da Modernidade e do Progresso. Por que sobrevem uma crise? As crises capitalistas —independente das suas circunstâncias particulares e aleatórias— obedecem sempre à sua contradição essencial, ou seja, ao desajuste entre o valor das mercadorias produzidas e o volume da demanda por essas mercadorias. Dito em outros termos, revelam o desequilíbrio entre o caráter social da produção e a forma privada de apropriação dos frutos da atividade econômica. Este ponto de vista, mais do que expressar uma anacrônica visão teórica, reflete a realidade mais crua desta virada de século. Do que estamos falando?
Catapultado por seus grandes triunfos políticos (queda do “socialismo real”, ter cooptado o movimento operário das metrópoles e o enfraquecimento transitório do nacionalismo terceiro-mundista) e pelos espetaculares avanços tecnológicos, especialmente nos campos da informática e das comunicações —constitutivos da denominada Nova Economia—, o capitalismo central viveu uma nova apoteose na década dos anos 1990, montado sobre um impetuoso processo de concentração e centralização de capital, exacerbado pelo crescimento exponencial do capital financeiro especulativo. Dialeticamente, essa euforia do sistema teria incubado a crise do início desta década.
Explicando.
Como conseqüência do mencionado processo de concentração, a economia mundial está, atualmente, sob controle de umas 200 corporações globais —encabeçadas por companhias como ExxonMobil, General Motors, Ford Motor, DaimlerCrysler— que controlam 25% do PIB mundial e formam o "complexo totalitário" de que fala F. Clairmot. Este núcleo duro do capitalismo global se robusteceu nos anos 1990 brandindo um liberalismo econômico de uma só via; ou seja, avassalando países e continentes, desregulamentando as economias "anfitriãs", privatizando empresas estatais e pára-estatais, desestruturando sistemas de proteção trabalhista, arruinando competidores locais, promovendo blocos de integração assimétrica (do tipo TLCAN e ALCA). E, é claro, — segundo já foi dito — por meio de operações especulativas adiantadas em escala planetária.
Por que a bonança da economia estadunidense — a locomotiva do capitalismo global— começou a desandar a partir do ano 2000, disseminando as turbulências financeiras, a queda livre do dólar, a recessão, a relocalização dos investimentos, o desemprego e o ceticismo tanto no centro quanto na periferia? Que fatores concorreram para esgotar a fase expansiva dos Estados Unidos, baseada na famosa Nova Economia?
Além da queda da demanda solvente, a inflexão do crescimento no início desta década precisa ser explicada pela progressiva perda de competitividade dos Estados Unidos com respeito à Europa, Japão e China, tendência que, nos últimos anos, tem se traduzido em déficits comerciais da ordem dos 400-600 bilhões de dólares e em uma espiral de endividamento de Washington, provocando devastadores efeitos nos índices de emprego e de renda na metrópole. Da mesma maneira, um fator de contração da economia dessa potência mundial deve ser localizado na orientação capital intensiva das tecnologias de ponta, orientação que tem retroalimentado a queda da demanda e que gerou um desemprego de características estruturais e não apenas conjuntural.
A extrapolação destas condições para a economia internacional estaria na base da fenda de dimensões siderais entre a opulência e a miséria em escala mundial. Segundo as Nações Unidas, três "homens-corporação" detêm uma riqueza que supera o PIB total dos 48 países mais pobres (600 milhões de habitantes). Como poderia se reproduzir normalmente um capitalismo que miniaturiza o mercado a esse ponto?
O colapso da “financeirização”
O aspecto mais perceptível da crise financeira comentada foram os "cracks" bursáteis, popularizados com a denominação de "estouros" da bolha financeira. Além do mencionado processo de contração da demanda efetiva, quais foram os fatores que determinaram as debacles financeiras? Por que murchou o capital financeiro?
Para começar, a “financeirização” alude a um processo de crescimento exponencial do capital fictício. Maurice Allais, prêmio Nobel de Economia, calculou que os movimentos internacionais de capital especulativo superam em 40 vezes a liquidez originada na compra e venda de bens e serviços. Por sua vez, José Manuel Naredo, co-autor do livro Pensamento crítico vs. pensamento único (Debate, l998), lembra que o volume das reservas monetárias em poder dos governos corresponde apenas ao que é negociado diariamente no mercado de divisas, aproximadamente 1,8 trilhão de dólares. Como foi possível edificar essa colossal "economia de papel"?
A criação de capital fictício é uma tendência inata do regime capitalista. Um economista alemão do século XIX explicou-a associada à alienação que provoca esse regime produtivo e que se traduz em que os homens deixam de se reconhecer nos objetos que produzem, fazendo com que a troca assuma formas fantasmagóricas. Atualmente, esse "fetichismo da mercadoria" chegou a níveis surrealistas sob a batuta das corporações globais e dos bancos de investimento e cavalgando no descomunal crescimento dos mercados cambiais, intimamente relacionados com os juros de mercado. Como era de se esperar, a expansão destes mercados, fonte de lucros extraordinários para o grande capital, deu origem a uma variedade de "produtos" financeiros, também conhecidos como "derivados" —futuros, swaps, opções— e à conseguinte expansão da famosa bolha de capital fictício. Por que estourou a bolha financeira na conjuntura 2000-2001?
No mínimo pelas duas seguintes razões:
Em primeiro lugar, porque a “financeirização” ocultava a abissal dissociação entre capital financeiro e capital produtivo, o que determinou que, em qualquer momento, os títulos fiduciários possam perder seu valor de troca e transformar-se em papéis para a lixeira. É justamente o que constataram amargamente no início da década milhões de investidores estadunidenses (e de outros países). Como explicar essa espetacular queda dos valores bursáteis? Resposta: devido à confrontação que cedo ou tarde ocorre entre economia financeira e economia real. "A pretensão de esquivar-se das causas estruturais da crise — está escrito em um documento — por meio do descolamento das bolsas de valores promovido na década de 1990 nos EUA chegou ao seu limite. Na verdade, durante essa década o valor das ações cresceu 1.000%, mas a economia real cresceu apenas 50%". (Declaração do Comitê Equatoriano contra a ALCA, 2002).
Uma segunda causa está relacionada com o fato de que a hipertrofia do setor financeiro coloca as decisões mais importantes da vida econômica de continentes e nações em mãos de um grupo numericamente insignificante de pessoas, cujos critérios são definidos à margem dos interesses dos grandes contingentes humanos e dos vitais equilíbrios ecológicos, ou seja, dos componentes da economia real.
A "falha" ética do sistema
O "crack" financeiro nos Estados Unidos, incubado pela Nova Economia, pode ser explicado pelo esgotamento da estratégia da Administração Clinton encaminhada a disfarçar as pressões recessivas estruturais do ciclo através do expediente de "cevar" a bolha bursátil. Esta resposta, contudo, não é suficiente para compreender a complexidade da crise do capitalismo abstrato e cibernético e entrever suas implicações. Qual é a causa íntima dos desastres financeiros?
R. Garaudy antecipou uma explicação do fenômeno em seu ensaio publicado no livro coletivo A Nova Ordem Mundial (1996), onde coloca a tese de que o nosso tempo descreve uma luta entre o monoteísmo sórdido do mercado e os homens que acreditam que a vida tem um sentido. Mais recentemente, o citado F. Clairmont ensaiou uma teoria similar. "A religião do mercado — diz ele — continua sendo a livre circulação de capitais, mas começa a se materializar uma nova mensagem cada vez mais concreta e perigosa: é preciso fazer de tudo para conseguir "o maior valor para o acionista", por meio do aumento do valor das ações".
Traduzido para uma linguajem comum, isto não significa outra coisa a não ser que — na lógica desta virada de século do capitalismo e da modernidade — não são os balanços de perdas e lucros os que determinam o valor dos títulos. Atualmente, as cotações bursáteis chegaram a ser estabelecidas a partir de estimativas (especulações) sobre a situação futura de empresas reais ou imaginárias. Qual é o calcanhar de Aquiles moral deste Mundo Feliz?
Samir Amin visualizou a bolha fiduciária como uma patologia equiparável ao câncer, doença que —segundo se conhece— multiplica de maneira descontrolada as células em um processo que leva à morte do paciente. Qual é o câncer do capitalismo contemporâneo? Max Weber teceu cogitações sobre a superioridade do capitalismo a partir dos seus supostos atributos éticos, como a frugalidade, o ascetismo, o sossego. Tal capitalismo, se é que existiu alguma vez, evidentemente não existe mais. Atualmente, a "fria astúcia" rege as relações comerciais, e inclusive passou a ser um comportamento normal. Ceder de qualquer maneira diante de um opositor ou de um concorrente é considerado um erro imperdoável para aquele que tem uma vantagem quanto a posição, poder ou riqueza". (A. Solzhenitsyn, Fim de Século, 1996). As elites econômicas e políticas mundiais —inclusive seus congêneres do Sul— abraçaram, freqüentemente sem saber disso, o fundamentalismo da modernidade cifrado na sentença de Bentham, para quem "todo valor é um valor mercantil".
O horizonte desse axioma utilitarista é temível e não apenas por causa dos efeitos derivados das tormentas financeiras. Se as ações humanas vão ter como bússola exclusiva o sucesso econômico, vamos poder entender que tudo está permitido. Este, com certeza, foi o argumento esgrimido pelos sacerdotes da “contabilidade criativa”, cujas “façanhas” acabaram deixando à vista os pés de barro da Nova Economia.
Nos dias que correm, e depois de uma fraca e errática recuperação da economia norte-americana, sustentada no keynesianismo de guerra —ocupação do Afeganistão e do Iraque, Plano Colômbia, etc.— e do fabricado boom imobiliário obstinadamente instrumentalizados pelo governo de George W. Bush, a queda do Bear Stearns e as dificuldades do CitiGroup —o maior banco do mundo— são o prelúdio de graves tempestades não só para a potência unipolar, mas para o planeta inteiro.
"A peste já está aqui, o que fazer quando chega a peste?", diria o poeta Homero.
* René Báez, economista equatoriano, é professor universitário, Prêmio Nacional de Economia e membro da Internacional Writers Association.
Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores
Fonte: Agência Carta Maior
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