quarta-feira, 16 de abril de 2008

Adib Jatene - Política com P maiúsculo


Adib Jatene: O ex-ministro da Saúde Adib Jatene defende o SUS e ataca aqueles que teimam em ver o Estado como vilão.

Por Rodrigo Martins

Ex-ministro da Saúde, o cardiologista acreano Adib Jatene considera que o País avançou consideravelmente com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). “A cobertura para a população de baixa renda aumentou muito. Antes, só os que estavam no emprego formal se beneficiavam com a Previdência e a assistência médica”, avalia. Em entrevista à CartaCapital, falou sobre os avanços e as dificuldades da saúde pública no Brasil.

CartaCapital: O que mudou na saúde brasileira após a criação do SUS?
Adib Jatene: Antes da Constituição de 1988, nós tínhamos três categorias de doentes: os que podiam pagar direta ou indiretamente, os que eram cobertos pelos institutos de previdência social e os indigentes, que não tinham nenhuma cobertura. Com o SUS, desapareceram dois grupos: os previdenciários e os indigentes. Hoje, temos os que podem pagar, de um lado, e toda a população brasileira, de outro. Nós garantimos a assistência médica a todo esse contingente de indigentes.

Mas aconteceu uma coisa importante. No momento em que nós universalizamos a assistência, a Previdência Social, que gastava de 20% a 25% da sua arrecadação com assistência médica, ela se retirou totalmente da Saúde. Por quê? Aumentou o número de aposentados e o que ela arrecadava mal dava para cobrir as aposentadorias e pensões. Hoje, ela ainda precisa buscar no orçamento da União de 30 milhões a 40 milhões de reais para cobrir todos os benefícios. Então, o sistema que se unificou e que universalizou o atendimento teve uma redução significativa das suas fontes de financiamento.

CC: Não houve compensações?
AJ: As tentativas de se buscar compensações via orçamento, da União, dos estados e dos municípios, não têm obtido êxito satisfatório. Para se ter uma idéia desse impacto, em 1989, nós gastamos 11,5 bilhões de dólares com saúde, pela esfera federal. Em 1993, nós gastamos 6,5 bilhões de dólares. E a população cresceu. Em 1995, o Ministério da Saúde tinha um orçamento que representava 22% do orçamento da Seguridade Social. Em 1998, já com a CPMF, o orçamento do Ministério representava 18% do orçamento da Seguridade. Hoje, ele gira em torno de 14%.

CC: Na prática, a CPMF, que deveria trazer mais recursos para a saúde, acabou substituindo a fonte que deixou de existir. É isso?
AJ: Sim, substituiu uma fonte que fonte que foi retirada. Repare: orçamento da Saúde é decrescente em valor real, ele não acompanha a inflação. O que se fez, com a Emenda 29, proposta pelo então ministro José Serra, foi ampliar os gastos com recursos dos estados e municípios. Hoje, os estados são obrigados a investir 12% do orçamento em saúde e os municípios 15%. Aliás, diga-se de passagem, o Serra era contra a vinculação de recursos quando era ministro do Planejamento. Ao assumir o Ministério da Saúde, ele entendeu que era impossível deixar de vincular, e foi buscar a regulação. Só que a Emenda 29 aumentou a participação dos estados e municípios. Até então, 60% dos recursos para a saúde eram federais. Hoje, 49% vem da União. O maior crescimento foi nos estados e municípios. Mas apenas sete ou oito estados chegaram aos 12%. Os outros aplicam muito menos. Não cumprimos os requisitos dessa emenda.

CC: Por que é necessário criar essa vinculação?
AJ: Parcelas do orçamento federal e mesmo de estados estão sendo aplicadas em outras áreas, e não na Saúde. Por isso que nós procuramos regulamentar isso na Câmara Federal, com a previsão de um acréscimo de 5 bilhões de reais por ano, mas que dependiam da existência da CPMF. Como se retirou a CPMF, todo o acordo feito Congresso precisa ser refeito. O acordo era para a regulamentação da Emenda 29 e previa ampliação de recursos para o orçamento do Ministério da Saúde, com a CPMF. O Senado iria se manifestar sobre isso quando retiram o tributo. Por outro lado, a redução dos recursos na Saúde tem muito a ver com a Desvinculação dos Recursos da União (DRU).

CC: Qual foi o montante perdido com esse mecanismo?
AJ: Com a DRU, 20% dos recursos da Seguridade Social passaram a ser manejados pelo Ministério da Fazenda. É com esse dinheiro que se faz boa parte do superávit fiscal, para pagar os juros da dívida pública. Isso porque o pagamento dos juros da dívida é a maior prioridade do governo. Esse pagamento está chegando perto de 200 bilhões de reais por ano. E o orçamento da Saúde, agora, está chegando aos 50 bilhões de reais. É uma loucura. E aí se diz que o SUS não funciona.

CC: O problema, então, é de falta de recursos, não de gestão.
AJ: Esse negócio de dizer que o problema é de gestão, eu chego a achar que é desonesto. Temos de melhorar a gestão em todas as áreas, não somente na Saúde. Agora, dizer que o problema é gestão implica em dizer que o dinheiro está sendo mal utilizado. Então, não precisa aumentar. É uma falácia. É semelhante ao indivíduo dizer que nos países do Primeiro Mundo a carga tributária é alta, mas ninguém reclama, porque tem retorno social. É simples justificativa para não pagar.

CC: Ao adotar esse discurso, o que não é levado em conta?
AJ: As diferenças entre os países. Todos sabem que os países do Primeiro Mundo, onde dizem que há retorno social dos impostos, foram os únicos que protagonizaram a primeira e a segunda etapa da Revolução Industrial. Em conseqüência disso, os Estados Unidos, a Europa e o Japão dominaram o planeta. Praticamente todos os países dos outros continentes eram colônias dos países europeus até pouco tempo atrás. A Alemanha, em 1897, tinha 1% de analfabetos. Nós começamos a nossa revolução industrial a partir dos anos 60. Antes disso, só tínhamos conseguido fazer a Companhia Siderúrgica Nacional, em uma negociação do Getúlio Vargas com os americanos para o Brasil entrar na Segunda Guerra Mundial. Mas, efetivamente, a indústria brasileira só deslanchou a partir dos anos 60.

CC: O que mudou com a industrialização do País?
AJ: A industrialização tardia resultou numa urbanização aceleradíssima. Quando nós começamos esse processo no Brasil, nós não tínhamos 20 milhões de habitantes em todas as cidades brasileiras. Hoje, são mais de 160 milhões de habitantes nas cidades brasileiras. Todos os recursos disponíveis foram utilizados para fazer o desenvolvimento econômico. Mas o desenvolvimento humano foi colocado de lado. Não conseguimos fazer a infra-estrutura de educação, habitação, água, esgoto, lixo, transporte, saúde e segurança para essa população que cresceu tão rapidamente. O resultado dessa escolha é a brutal concentração de renda que temos. O Brasil é um dos países com a pior distribuição de renda do mundo. É por isso que eu contesto a idéia de que a carga tributária é exagerada.

CC: Deveríamos pagar mais para sair do atraso?
AJ: A carga tributária só é exagerada para quem ganha pouco. Chega a 45%, porque tudo o que ele ganha, gasta no mercado. O nosso sistema tributário taxa predominantemente produtos e serviços, e isso é incluído na planilha de custos das empresas. As indústrias não pagam nada. Quem paga é o consumidor final. É por isso que se concentrou renda no Brasil. E o governo fica com pouco, se comparado à riqueza nacional. Ele não consegue atender às necessidades da população. Aí dizem que é ineficiência do governo. Em parte, eu também acho. Mas também têm responsabilidade outros segmentos da sociedade. O sujeito reclama das obras públicas superfaturadas, que alimentam a corrupção. Mas quem faz as obras? São as empresas privadas. Por que só o governo é corrupto?

CC: Quais foram os avanços obtidos ao longo desses 20 anos?
AJ: Nós eliminamos praticamente todas as doenças que podem ser prevenidas por vacinação, como o sarampo e a difteria. Reduzimos a mortalidade infantil drasticamente. Hoje, morrem 20 bebês para cada mil nascidos vivos. Antes, eram 40. No campo do atendimento básico, o Programa Saúde da Família está fazendo uma coisa sem paralelo na história do País. São mais de 200 mil agentes comunitários de saúde, 30 mil equipes que atendem 90 milhões de brasileiros, metade da população. A cobertura para a população de baixa renda aumentou muito. Antes, só os que tinham emprego formal tinham previdência e assistência médica.

CC: Com a ampliação do acesso, os serviços não pioraram?
AJ: As maiores críticas ao SUS vêm de quem não usa a rede pública. Quem usa, sabe que o sistema de saúde tem falhas, sabe que passa por dificuldades, mas também sabe que o atendimento está melhor do que era antes. Veja o caso das endemias. Nós praticamente acabamos com a Doença de Chagas. O programa de combate à Aids brasileiro é o mais avançado do planeta, um exemplo para todo o mundo. A incidência da malária está reduzindo. A dengue, que hoje assusta no Rio de Janeiro, está controlada na maior parte das grandes cidades. O estado de São Paulo, por exemplo, praticamente não teve nada nesse verão, exceto em uma ou outra cidade do interior. Quase todos os transplantes são feitos pelo SUS. O transplante de fígado no Hospital Albert Einstein é pago pelo governo.

CC: Até porque os planos de saúde não cobrem...
AJ: Mas não só. A maior parte das cirurgias cardíacas, das neurocirurgias, do tratamento de câncer, tudo isso é pago pelo SUS. Só que a necessidade é maior do que os recursos. O custo de manutenção de um hospital é altíssimo. Manter tudo funcionando ao longo de um ano é tão caro ou mais do que o investimento para construir e aparelhar o hospital. E há aquela crença de que o mercado resolve, o mercado regula, o mercado faz. O mercado não investe nisso. Quando muito, ajuda a construir um hospital.

CC: Quanto deveria ser aplicado na saúde brasileira?
AJ: Os constituintes, no capítulo das Disposições Transitórias, reservaram 30% do orçamento da Seguridade Social para investir em Saúde. Se isso fosse cumprido, o Ministério da Saúde teria, em 2008, 120 bilhões de reais. Mas o orçamento mal consegue chegar aos 50 bilhões de reais. Hoje, há cerca de 40 milhões de brasileiros que pagam, direta ou indiretamente, pela assistência médica. É o mercado dos planos de saúde. Nesse setor, investe-se ao redor de 2 mil reais per capita ao ano. No SUS, a média gira em torno de 300 reais per capita. É uma disparidade muito grande.

CC: Qual é o impacto disso nos hospitais públicos?
AJ: Na época do extinto Instituto (Inamps), pagava-se seis unidades de valor por consulta médica. Cada unidade era o equivalente a 1% do salário mínimo. Hoje, com o salário mínimo de 415 reais, a consulta deveria valer 25 reais. O SUS paga algo em torno de 7 reais. E remunera mal todos os outros procedimentos. Essa é a razão de muitos hospitais públicos de referência abrirem as portas para a rede privada. É uma forma de se viabilizar. Sem a recente ajuda do governo, boa parte das Santas Casas no estado de São Paulo iriam fechar as portas. Sem falar que, nesses 20 anos, o avanço tecnológico e científico foi enorme. Nós não tínhamos ressonância, tomografia computadorizada, Pet scan, ecocardiograma. Tudo isso não existia, e é extremamente caro. E a população continua crescendo.

CC: O senhor costuma dizer que a experiência do SUS é única. Por quê?
AJ: Em nenhum outro país do mundo existe algo parecido. Até os Estados Unidos estão discutindo a implantação de um sistema semelhante por lá.

CC: Mas e o Canadá, a França, o Reino Unido?
AJ: A França tem 60 milhões de habitantes e gasta mais de 100 bilhões de dólares em saúde por ano. Nós teríamos de gastar 500 bilhões de reais por ano para nos igualar ao investimento francês, se levar em conta o câmbio e o tamanho da população. O Canadá tem 20 milhões de habitantes e gasta 50 bilhões de dólares por ano. O Brasil tem uma população nove vezes maior, teria de gastar 450 bilhões de dólares por ano para se equiparar. Dólares, não reais. O problema é que o brasileiro não faz as contas. Às vezes me perguntam: “Por que não temos um sistema de emergência igual ao da França?”. Ora, dê o dinheiro necessário para isso que eu faço, até melhor do lá. Pode ser a metade, um terço do que se investe na França. Mas não pode oferecer um orçamento dez vezes menor e cobrar resultado.

CC: É por isso que o SUS seria, supostamente, mais eficiente?
AJ: Sem dúvida. Os Estados Unidos gastam mais de 7 mil dólares per capita ao ano e tem quase 50 milhões de americanos sem assistência. Uma vez perguntei para o secretário de Saúde da Califórnia a razão de existir 5 milhões de mexicanos no estado sem assistência. Ele respondeu: “They are not citizens, doctor” (Eles não são cidadãos, doutor). O que nós temos em termos de formulação, para a constituição do SUS, é o que há de melhor no mundo. As fraudes que existiam no passado foram superadas. Ninguém fala mais em fraude, em protocolos de serviços falsos. O problema é a demora no atendimento, a demora para marcar um exame, uma cirurgia.

CC: E como solucionar esse impasse diante do discurso hegemônico que prega a redução dos impostos e do tamanho do Estado?
AJ: Quem prega isso atende a população de baixa renda? Não. Então por que reclamam? A CPMF trazia recursos da ordem de 40 bilhões de reais para serem investidos com a população de baixa de renda. Acabaram com a cobrança do tributo para beneficiar as empresas e as pessoas com melhores condições financeiras. Aconteceu alguma coisa? Reduziu a inflação? Aumentaram o aporte de recursos para o Estado? As pessoas que estão bem de vida não se preocupam com quem não está. E o governo que resolva o problema. Como? Aí surge de novo a falácia de que o problema é de gestão, acompanhada da desculpa de que não há retorno social do imposto no Brasil. E continuamos com apenas uma parcela da população, esses 40 milhões que podem pagar pela assistência médica, vivendo como estivesse num país de renda per capita de 40 mil dólares. Somente eles têm boa assistência, muitas vezes comparável à dos países desenvolvidos.

Fonte: Carta Capital
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