terça-feira, 15 de abril de 2008

Como era doce o meu dossiê

por Leandro Fortes

Acho engraçado a particular indignação de jornalistas, uns até de meu convívio, aqui em Brasília, pelo fato de o governo ter elaborado um dossiê (ou seja lá que nome tenha) com dados sobre a família FHC às vésperas da CPI dos Cartões Corporativos. Como se elaborar dados de salvaguarda fosse um procedimento escandaloso, e não prática corriqueira de qualquer governo. E da imprensa. Ora, nos meus primeiros anos de jornalismo, na Tribuna da Bahia, em meados dos anos 1980, todos os jornais de Salvador atualizavam, com freqüência obsessiva, o obituário de Irmã Dulce, a madre Teresa de Calcutá da Bahia. Todos, sem exceção. Perdi a conta das vezes que eu era mandado para plantões em hospitais, à espera do suspiro final da pobre freira, figura frágil, esquálida, angelical mesmo, que dormia sentada, respirava a meio pulmão e comia como um passarinho. Na redação, a matéria estava pronta, inclusive com depoimentos de gente graúda da vida pública baiana. Eu só precisava voltar, preencher as lacunas e mandar para o editor. Eu tinha um dossiê Irmã Dulce. Eu e a torcida do Bahia. De nada me adiantou, a bem da verdade, porque a freira só foi morrer em 1992, quando eu já estava instalado na capital federal.

Em Brasília, percebi que o jogo era jogado da mesma forma. Em O Globo, onde trabalhei uns poucos anos, o dossiê Roberto Marinho ficou pronto muito antes de o empresário morrer. Imagina se as Organizações iriam fazer um obituário de última hora! Toda a vida (e glória) do “jornalista Roberto Marinho” (aliás, só chamado assim da boca para fora, porque lá dentro era “Dr. Roberto”, e ponto) estava escrita e reescrita, pré-editada, em dourado e azul, pronta para ser veiculada para assim que o velho batesse as botas. O que aliás foi muito providencial para o jornalista Pedro Bial, usuário final do Dossiê Roberto Marinho na confecção daquela inacreditável peça de louvação funcional editada em forma de livro. Semelhante tratamento teve o papa João Paulo II, assim que começou a tossir, em todas as redações do mundo, tenho certeza, nem que fosse para os coleguinhas ensaiarem a escrita e a pronúncia do nome polaco do falecido santo padre, Carol Wojtyla. Era o Dossiê João Paulo II.

Então, vem uma CPI da Tapioca com todas as trombetas do apocalipse perfiladas no Congresso, as contas do governo peladinhas no site do Portal da Transparência, e o mundo cai quando se descobre que lá no Palácio do Planalto, gente mais esperta decidiu reunir os gastos (e que gastos!) da família real Cardoso.

De tudo, o que menos interessa, é dizer se é dossiê ou não. É normal que seja. A Polícia Federal, caso ainda se mantenha republicana, deve tirar a mesma conclusão. E o mundo vai cair no mesmo abismo sem graça e aborrecido onde, além do vento uivante, soa a voz monocórdia e entalada do senador Arthur Virgílio, o tucano com ares de corvo.

Forte: Carta Capital
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