Por Adriana Facina |
Hoje, o escritor que deseje combater a mentira e a ignorância tem de lutar, pelo menos, contra cinco dificuldades. É-lhe necessária a coragem de dizer a verdade, numa altura em que por toda a parte se empenham em sufocá-la; a inteligência de a reconhecer, quando por toda a parte a ocultam; a arte de a tornar manejável como uma arma; o discernimento suficiente para escolher aqueles em cujas mãos ela se tornará eficaz; finalmente, precisa de ter habilidade para difundir entre eles. Estas dificuldades são grandes para os que escrevem sob o jugo do fascismo; aqueles que fugiram ou foram expulsos também sentem o peso delas; e até os que escrevem num regime de liberdades burguesas não estão livres da sua ação.
(Bertolt Brecht, trecho de 'Cinco maneiras de dizer a verdade')
O texto acima foi escrito em 1934 por Bertolt Brecht, poeta e dramaturgo comunista alemão. Os nazistas haviam chegado ao poder em 1933 com um projeto político que combinava racismo, anticomunismo, antiliberalismo e modernização capitalista. Brecht foi um dos primeiros a apontar que, longe de representar um estado de exceção, o fascismo era de fato a exacerbação de algumas tendências inerentes ao próprio capitalismo, sistema incompatível com a democracia, a liberdade e o respeito à vida humana. E mais ainda: o capitalismo depende da fabricação constante de mentiras para garantir a sua sobrevivência, pois é com base nelas que se constrói socialmente uma realidade que naturaliza a exploração da classe trabalhadora e seqüestra sonhos e anseios de libertação dos oprimidos. Um processo violento de dominação simbólica que se perpetua já que, enquanto o capital dominar, dizer a verdade será sempre uma ameaça.
Tristemente, passados mais de 40 anos da derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial e depois do saldo de corpos contados aos milhões, o texto de Brecht continua atual. Talvez mais atual do que nunca. E se hoje tivermos que escolher uma instituição social que exerce vigilância pesada para impedir que se diga a verdade, com certeza não apontaríamos a polícia ou o exército. O principal algoz é hoje a mídia gorda. Sem necessidade de censura institucionalizada, os meios de desinformação, de modo violento e ditatorial, definem quem tem e quem não tem o direito à fala, o direito a se comunicar, o direito de expor e colocar em debate suas visões de mundo e seus projetos.
É preciso que se diga que essa é uma das formas mais cruéis de violência e se expressa muitas vezes em preconceitos, rótulos, rebaixamentos morais que passam a identificar sujeitos sociais, individuais ou coletivos, definindo o modo como serão vistos pela sociedade, como serão tratados pela justiça, pelas instituições estatais, pela polícia. Trata-se de uma construção deliberada de uma realidade opressora para esses que têm a sua voz cassada, porque as palavras que saem das suas falas são tão cheias de razão e lógica, verdades, portanto, que se tornam armas contra um sistema que encontra cada vez mais dificuldade de justificar o injustificável.
Afinados com o lema do rei espanhol, “Por que não te calas?” (aliás, já repararam como nossa mídia gorda anda monarquista?), nossos veículos de incomunicabilidade não só evitam conceder a palavra aos que contestam essa ordem brutalmente desigual em que vivemos, como também vêm estimulando, de modo mais ou menos sutil, o uso da violência para conter a luta de classes. O exemplo mais recente foi a cobertura da TV Globo, exibida em 09 de abril, sobre as ações do MST em relação à Companhia Vale do Rio Doce, já analisada detalhadamente por Marcelo Salles neste Fazendo Media. A mídia terrorista, além de contrariar todas as regras básicas do jornalismo sobre ouvir as partes envolvidas no evento a ser reportado, claramente deu voz a um representante da Vale que ameaçava o movimento dizendo que o “clima” estava tenso e que as pessoas da região estavam com medo, o que poderia gerar conflitos. Para bom entendedor, meia palavra basta: polícia neles!
Acusações sérias foram feitas contra o MST e nenhum de seus militantes teve o direito de respondê-las. Foram mostradas imagens descontextualizadas que construíam a idéia de que aquelas pessoas eram violentas e desordeiras, sem propósito a não ser desestabilizar a economia do país e ameaçar os homens e mulheres de bem. Assim como os nazistas que, em seus meios de comunicação e na indústria do entretenimento, mostravam os judeus como ratos e não humanos, nossas grandes empresas de comunicação constroem a imagem dos sem terra como bestas irracionais. Claro é que assim fica mais fácil criminalizá-los e, por que não, exterminá-los como a pragas. O que aliás, já é feito no Brasil há 500 anos e os dados da violência no campo sob o governo de Lula demonstram que o extermínio de trabalhadores rurais ainda está em curso.
O problema em dar a palavra a essa gente do MST é que tem verdade demais nas suas falas. Quem pode ser contra uma sociedade justa e igualitária, senão uma minoria que se locupleta com a desigualdade e a injustiça? Quem pode defender o agronegócio que coloca venenos na comida que chega nas nossas mesas, que agride a natureza e ameaça a nossa continuidade enquanto espécie, bem como a de todos os seres vivos? Quem pode concordar com a existência de fome nas cidades e desemprego nos campos num país tão grande e tão rico em recursos naturais como o nosso? Quem não se sensibilizaria com os números que demonstram que a privatização da Vale do Rio Doce foi fraudulenta e lesiva ao patrimônio do público? Uso aqui o termo patrimônio DO público e não simplesmente público para ressaltar quem foi verdadeiramente lesado. Além disso, para esconder do público que atenta contra os direitos de seus empregados, a Vale mentirosamente atribuiu ao MST ações que foram organizadas por garimpeiros e outros trabalhadores prejudicados por ela. Como esclarece a nota do MST:
Vale usa MST para abafar protestos de seus funcionários e garimpeiros
1- O MST-PA esclarece que não realizou protesto contra a mineradora Vale nesta quarta-feira, como divulgou a empresa, nem participa da organização do acampamento montado às margens da Estrada de Ferro Carajás (EFC).
2 - O acampamento montado às margens da Estrada de Ferro Carajás é do Movimento dos Trabalhadores e Garimpeiros na Mineração (MTM), que fazem uma jornada de lutas em defesa dos direitos dos garimpeiros e contra a exploração imposta pela Vale.
3 - O fechamento da portaria que dá acesso à mina do grande projeto de exploração de ferro Carajás foi realizado por operários da Vale e das empresas terceirizadas prestadoras de serviço, que cobram melhores condições de trabalho da maior empresa privada da América Latina. A principal reivindicação é o pagamento da multa de R$ 109 milhões que a Vale deve pagar por danos morais aos operários das mais de 100 empresas terceirizadas, que prestam serviço à mineradora. A sentença foi dada pelo Juiz Federal da 8ª Vara do Trabalho de Parauapebas, Jhonathas Santos Andrade.
4 - A Vale atribuiu ao MST esses protestos para esconder da sociedade que diversos setores populares fazem manifestações contra a diretoria da mineradora e pela reestatização da empresa, que trabalha com recursos naturais que pertencem ao povo brasileiro.
5 - O MST apóia as manifestações que denunciam a responsabilidade da Vale por suas ações criminosas e danos sociais, impostos às comunidades rurais que vivem em torno das suas instalações, aos garimpeiros e seus trabalhadores. A Vale comete crimes ambientais e sociais, sendo a empresa campeã em multas do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
COORDENAÇÃO ESTADUAL DO MST-PA
É necessário sempre lembrar que a elaboração e a divulgação dessas e outras mentiras são realizadas por meio de canais que são concessões públicas e, como tal, deveriam estar a serviço do povo e não dos donos do capital. Quanto será que a Globo recebe em verbas publicitárias da Vale do Rio Doce? Por quanto se compra a fabricação de uma mentira que se pretender tornar verdade ao ser repetida indefinidamente, lembrando aqui do mestre da mídia oligopolizada, Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler?
Desacreditar essa mídia violenta, terrorista e criminosa, a mídia proibidona e construir possibilidades alternativas de comunicação, de leituras da realidade, é central em qualquer projeto político contra-hegemônico hoje.
Fonte: Fazendo Media
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> Adriana Facina é antropóloga, professora do Departamento de História da UFF, membro do Observatório da Indústria Cultural e autora dos livros Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004) e Literatura e sociedade (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004).
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