quinta-feira, 24 de abril de 2008

O retorno do rei

Novas barreiras discriminatórias são erguidas pelo mundo. Raça e cor, aparentemente, não contam mais. Isso ainda existe, mas não se fala mais. Em seu lugar entram a religião, a fé e... a cultura!

“Se ainda está por vir, cá não pode estar”. A frase, ouvi-a diante do túmulo que, diz a tradição, guarda os restos mortais de D. Sebastião, aquele que desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir (dos Três Rios, para os muçulmanos), e deu origem a um dos mitos fundacionais da nossa cultura política e do nosso Estado, o brasileiro.

A frase não partiu de algum beato saído de um livro de Euclides da Cunha ou de um filme de Glauber Rocha. Disse-a uma estudante bem jovem para um outro jovem, também estudante, na igreja do Mosteiro dos Jerônimos, na Lisboa moderna e em pleno século XXI.

Ela transportou-me a um outro mundo, a uma outra data: Brasil, Salvador-Rio de Janeiro, março de 1808. Num lance político algo inusitado, mas de há muito tramado, a família real portuguesa se muda para o Rio de Janeiro, com escala em Salvador e a proteção da armada britânica, encarregada também de proteger a fonte brasileira de algodão para as máquinas da revolução industrial na ilha de Sua Majestade, contra os interesses napoleônicos.

Durante fevereiro, março e o começo de abril, muita tinta rolou no Brasil discutindo (e saudando...) essa transferência realmente única na história das conquistas européias dos mercados mundiais. Um tipo de imprensa de divulgação acadêmica, aliás, muito interessante, empenhou-se a fundo nas considerações do acontecimento.

Houve uma inflexão curiosa, é verdade, nessas considerações, que se davam na comemoração dos 200 anos do acontecimento.

Uma caricatura pode nos ajudar. Quando eu estudei na escola, mais de 50 anos atrás, aprendi que num movimento genial, D. João VI driblou Napoleão e veio para o Brasil, trazendo, além da família e corte, uma série de instituições, como a Biblioteca Régia, matriz da Nacional, a imprensa, fundou um teatro digno do nome, o Banco do Brasil, e abriu os portos brasileiros para o mundo. Tudo isso “ajudou o Brasil”.

Há trinta anos, quando minhas filhas começaram a freqüentar a escola, elas aprenderam que, covardemente, o rei português fugiu para o Brasil, sob a escolta dos navios britânicos (que praticamente o obrigaram a fazer isso). Trouxe para nós uma corte venal e corrupta, que desalojou os habitantes do Rio de Janeiro de suas melhores casas. Abriu os portos para os navios e os interesses britânicos, fundou o Banco do Brasil que quebrou quando ele foi embora levando seus capitais, e assim fundou a inflação, o dinheiro nacional sem fundos.

Agora, neste começo do século XXI, o discurso mudou, recuperando uma tese e uma ascendência antigas. D. João não “trouxe” nada para o Brasil. Sua vinda “fundou” o Brasil, que não existia antes. A colônia portuguesa era um arquipélago; foi D. João VI quem “integrou” o aglomerado numa coisa única, fundando os alicerces da “identidade nacional”.

É sutil, mas não é pouco. Voltamos à tese pré-romântica (em que até o grande José Bonifácio acreditava), que também anda disseminada em comentaristas de política internacional, de que somos uma “nação européia” encravada quase toda ao sul do Equador, é claro que com alguns ademanes, atabaques, acarajés e redes nativas que nos dão a cor local. Mas é só. “Nós”, ao contrário “Deles”, pertencemos ao mundo do “Ocidente”, esse outro conceito encravado nas conquistas dos espaços territoriais ou de mercado ao longo da história. Quem são esses “outros Eles”? Ah, o mundo da “indiada” que nos cerca nessa “América Lationa” das qual, “infelizmente”, somos “vizinhos”.

Essa sutil reviravolta segue tendência mundial. Os preconceitos hoje não seguem mais, pelo menos da boca para fora, as balizas da cor ou da raça. Isso ainda existe, mas não se fala mais. Eles seguem as barreiras da religião, por exemplo, e da cultura. Outro dia, em prestigiosa reunião de prestigiosa instituição alemã, (é verdade que sem a concordância dos representantes da própria instituição), prestigioso escritor europeu se pôs a fazer considerações sobre ter visto no metrô um africano, e como isso despertou-lhe o pensamento de que “ele”, o africano, estava deslocado numa paisagem que lhe era completamente estranha, enquanto “ele”, o escritor europeu, pertencia de corpo e alma àquela paisagem, àquela cultura, a européia. Felizmente houve muita gente perplexa e escandalizada na sala.

Isso nos leva à interessante consideração de que não são só os beatos e o povo da tradição euclidiana ou do nosso cinema que são “messiânicos” ou “sebastianistas”. Nossa elite, ou élite, como gosto de sublinhar, também o é, sempre à espera de um rei europeu, ou de um príncipe... encantado ou desencatado, pouco importa, que a livre do pesadelo de abrir a janela e (parodiando livremente o Retrato do Brasil, de Sérgio Buarque), não ver o Sena, nem o Hudson, mas um rio qualquer de nome indigena, mesmo que majestoso.

Fonte: Agência Carta Maior
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