terça-feira, 29 de abril de 2008

"GEOPOLÍTICA INTERNA" - O Brasil mudou de lugar

Nas últimas décadas, e a passo acelerado nos últimos anos, “o Brasil mudou de lugar”, ou de plataforma. No cenário político nacional, porém, há um "turvamento" das vistas que se recusa a enxergar isso.

Um dos problemas mais graves da política brasileira é que há uma espécie de “turvamento” das vistas no que se refere às relações entre as questões nacionais e as internacionais. Acontece que nas últimas décadas, e a passo acelerado nos últimos anos, “o Brasil mudou de lugar”, ou de plataforma.
Tomemos a educação como exemplo, para não falar sempre (e só) de economia. É certo que há um rombo no que se refere à qualidade do ensino, em termos macro-sociais, e ao tema conexo da folha de pagamento dos professores, sobretudo os do ensino fundamental e médio. Mas num movimento que começou (é verdade, companheiros e companheiras) nos governos de Fernando Henrique Cardos e adquiriu momento (no sentido da física) nos de Lula, o ensino fundamental e médio foi sendo universalizado, a tal ponto que se pode predizer (com cautela, é claro) que, quando minhas netas, que hoje têm sete e cinco anos, atingirem a idade adulta, os EJAS – o ensino no fundo para pessoas cuja aprendizagem formal está defasada em relação à expectativa média para a idade – serão algo residual.

Falemos da saúde. Com todas as mazelas, o SUS, como conceito e como realização média, é avançadíssimo, não só em relação aos países pobres, como também em relação a países ricos e mais organizados do que o Brasil. A situação da saúde pública nos Estados Unidos, por exemplo, para os mais pobres, é calamitosa. Para os remediados, é desorganizada e caríssima.

Na economia, a saída de 20 milhões de pessoas em cinco anos da franja de miséria em cinco anos mais ou menos é um passo espetacular, até no sentido de que essa pressão que vem debaixo é o que de melhor há no sentido de pressionar o Estado brasileiro e a sociedade nossa naquilo que ambos têm de mais desigual. A maioria das instituições do Estado brasileiro não foram feitas historicamente para pensar no conjunto da população, a não ser no sentido de contê-la, de mantê-la “no seu lugar”. Houve exceções – que até a própria esquerda teve historicamente dificuldade em aceitar e deglutir – quando se instituiu o salário mínimo e a Consolidação das Leis do Trabalho, pó exemplo. Mas o fato é que as instituições brasileiras foram no mais das vezes pensadas para prolongar a desigualdade, não para diminuí-la. E a nossa sociedade foi instituída e planejada para viver dela, em todos os sentidos: econômico, político, social e cultural. Pois bem, isso está mudando.

Os “menos” iguais hoje são menos desiguais do que antes; e os “mais” iguais hoje se sentem “menos mais iguais”. Podem puxar as estatísticas de plantão, mas o clima cultural que essa afluência nova dentro da sociedade brasileira sugere é conspícuo. Pode até ser que, num segundo momento, consolidada a afluência desses 20 milhões a um patamar mais amplo de consumo, uma parte deles se volte para políticas conservadoras que fechem os caminhos para os que ainda não saíram da vala comum da miséria. Mas isso é apenas uma possibilidade. Até porque duvido que alguém, nas oposições, tanto à esquerda quanto à direita, esteja pensando nisso como preocupação. A preocupação maior é ainda a de negar que isso tenha acontecido, ou de negar a sua pertinência ou ainda sua importância.

No cenário internacional densamente conflituado, o Brasil ocupa posição de proa. Isto não quer dizer que o Brasil tenha resolvido seus problemas, nem que tenha entrado para algum clube de sócios “privé”, como é do gosto de nossa “élite”. Isso significa que dentro de seus limites e balizas, o Brasil está “avançando”. O mundo se encontra multi-polarizado: o novo jogo de cena entre Estados Unidos e China, a transformação desta em potência capitalista com um neo-imperialismo avant-la-lettre na África, em que ela exporta capitais, trabalhadores e investe em infra-estrutura; a continuação velada ou aberta da guerra fria entre a OTAN e a Rússia; a tentativa de cooptação das sociedades comunistas esboroadas no leste pela União Européia; o novo gigantismo patente do mercado asiático; o atolamento político no Oriente Médio, no Iraque e no Afeganistão; as guerras herdeiras da ordem e das desordens coloniais na África; entre tudo isso, o Brasil e a América Latina são os cenários mais promissores de transformação política e social, onde um levantamento de povos – em regimes democráticos – provoca um desequilíbrio das oligarquias e um novo potencial de equilíbrio político mais aberto e humano do que nunca.

A China é a nova potência mundial, sem dúvida, mas a custo de uma exploração do trabalho de fazer corar um capitão de indústria do século XIX. Na América Latina e no Brasil está acontecendo o contrário: a exploração, sem desaparecer, “por supuesto”, recua, e os pobres tornaram-se, pelo menos de momento, afluentes política, econômica e culturalmente.

A se confirmar a descoberta deste novo campo petrolífero, o Brasil vai se tornar uma potência de médio porte. Isso, ao contrário de sufocar a Venezuela, pode significar uma diminuição da pressão dos Estados Unidos sobre ela, o que será bom para a política bolivariana do governo de Hugo Chávez, sobretudo se o eleito em novembro for Barack Obama ou mesmo se ele compuser um governo chefiado por Hillary Clinton. Os Estados Unidos vêm tentando impor a ALCA a prestações, ou a retalho, negociando tratados, sobretudo, na linha da costa do Pacífico. A única resistência ou alternativa de peso a essa política envolve a presença do Brasil.

Por tudo isso pode-se imaginar o desastre de proporções continentais que será a volta da coligação PSDB – DEM, aliás, PFL, ao Palácio do Planalto em 2010. Esse lado da nossa oposição perdeu completamente sua inserção internacional, ou, se a tem, é com o que há de pior, como quando, ao realizar sua convenção, o finado (ou transgenicamente transformado?) PFL teve Aznar como convidado de destaque (quem sabe da próxima vez vem Berlusconi?). Pautado por comentaristas da nossa grande imprensa, cuja visão, além de reacionária, é de todo anacrônica, esse lado da oposição simplesmente não consegue mais “ver” o mundo, tanto quanto aqueles jornalistas também não o “vêem”. Falam de um mundo da carochinha, um “primeiro mundo” que não existe mais. Falam de um mundo de “países sérios”, onde, é óbvio, o Brasil não entra, sem se darem conta de que estão cuspindo para cima. Defendem um ideário, baseado ainda no Consenso de Washington, que tentam dourar com pílulas sociais recém descobertas, cujo invólucro feito às pressas não consegue disfarçar as receitas fanadas que defendiam há poucos anos nem o amargo desprezo que sentem por que o povão, parece, não os escuta.

A oposição à esquerda também não consegue mais “ver” o Brasil nesse “novo mundo”, em que tudo, até o futuro, está em rediscussão. No plano ideológico aferra-se a um universo doutrinário do passado, que perdeu o pé diante dos fracassos dos países ex-comunistas e também diante dos fracassos das recentes receitas neo-liberais. Na prática, tornam-se caudatárias das proposições moralistas, ex-udenistas, de uma direita que não tem moral para falar mal de ninguém.

E o governo? Avança na área social, é certo, mas imobiliza-se no Banco Central, essa nova Bastilha das (anti-)virtudes econômicas. Numa paródia cruel da célebre frase atribuída à infeliz Rainha Maria Antônia, parecem recomendar às massas em busca de melhor vida, de melhor consumo, de melhor tudo, que não podem não comer brioches nem mesmo queijadinhas, porque isso vai arrasar a economia nacional; que comam pão dormido mesmo. Também não “vêem” o Brasil, também não “vêem” o mundo.

Mas como sabemos, é mais fácil um rico entrar no céu do que mudar a visão de mundo de alguém, a menos que esse alguém esteja disposto a aprender, ou que passe por grandes hecatombes. Mas não percamos a esperança: o Brasil hoje é uma catástrofe positiva, em meio à contínua hecatombe do esboroamento de um sistema econômico e político mundial que não consegue mais ter controle sobre as contínuas crises que provoca. Esse sistema não vai mudar tão cedo nem de uma hora para outra, mas pelas fendas que deixa aparecer vislumbra-se, quem sabe, um outro mundo possível. Uma dessas fendas é o Brasil, com a América Latina.

Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior.

Fonte: Agência Carta Maior


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