Privatização e cassino financeiro
Qual o balanço para o país do processo de privatizações iniciado há mais de 15 anos? Há muitas dúvidas ainda sobre a realização dos objetivos desejados na privatização/desnacionalização das estatais: eficiência, competitividade e redução da dívida pública.
Ceci Juruá
Decorridos mais de 15 anos do início das privatizações de unidades estratégicas do setor público (siderurgia, química e petroquímica, serviços públicos de infra-estrutura), há muitas dúvidas ainda sobre a realização dos objetivos desejados na privatização/ desnacionalização das estatais: eficiência, competitividade e redução da dívida pública. Esta, a dívida pública bruta, interna, passou de R$ 70 para R$ 1.700 bilhões, foi portanto multiplicada por 24. Não houve redução de tarifas nos serviços prestados aos usuários, muito pelo contrário [1]. E fica difícil falar em aumento de competitividade da economia, pois sabemos que um retrógrado modelo agro-negocial exportador vem substituindo nossa trajetória de desenvolvimento centrada na industrialização e no mercado interno.
O resultado mais palpável que aparece nos balanços dos conglomerados herdeiros dos setores estatais é o crescimento dos lucros e a reconcentração perversa da renda nacional. Vejamos um exemplo através dos resultados econômicos-financeiros obtidos em 2007 por uma holding atuante no setor de transportes.
Lucros equivalentes a 9 vezes o custo de pessoal
No exemplo que analisamos, os lucros do grupo (resultado consolidado) em 2007 situaram-se em torno de R$ 900 milhões, enquanto o custo com pessoal não atingiu R$ 100 milhões. Esta proporção de 9/1 na repartição de renda capital-trabalho é excepcional e abusiva [2]. Na França, por exemplo, até o final da década de 1990 a repartição modal era de 2/3 para o trabalho e 1/3 para o capital.
Na holding a situação apresentada é ainda pior, pois os lucros da controladora representaram 38 vezes o custo com pessoal. Somando-se o gasto com pessoal aos serviços contratados, para contemplar as práticas usuais de terceirização, a relação desce para 18 vezes, igualmente incompatível com os paradigmas civilizatórios do século XX nas relações capital- trabalho. Diferentemente da situação das empresas operacionais, onde os resultados favoráveis resultaram da cobrança de pedágios, na controladora a fonte do lucro foi a equivalência patrimonial, isto é, ganhos obtidos nos mercados financeiros e de capitais. No caso que analisamos aqui, os ganhos decorrentes da equivalência patrimonial superaram R$ 600 milhões.
Tão excepcional lucratividade permitiu que, em 2007, o lucro consolidado do grupo alcançasse 150% do capital social ! O que é um bom exemplo da funcionalidade de privilégios (concessões) na dinâmica perversa de concentração da renda e na financeirização da atividade econômica.
Generosos dividendos isentos de imposto direto
Na demonstração das origens e aplicações dos recursos, somos informados que 83% dos recursos obtidos pela holding foram destinados à distribuição de dividendos. Esses dividendos constituem o principal ingrediente do consumo supérfluo, de remessas para o exterior e do cassino financeiro. Mais constrangedora ainda é esta situação quando sabemos que dividendos não estão sujeitos ao imposto de renda, generosa e perversa isenção que lhes foi concedida no governo FHC e que permanece até hoje.
A prática de isentar do imposto de renda os dividendos não é específica do Brasil. Ela é considerada um ingrediente necessário ao desenvolvimento do mercado de capitais e este é visto, por sua vez, como um facilitador do financiamento empresarial e do crescimento econômico. Na ausência de crescimento, contudo, o risco é que esse dinheiro não seja orientado para investimentos produtivos e vá alimentar a financeirização da economia.
Em lugar da poupança interna, empréstimos financiam a expansão de atividades do grupo.
No capitalismo, a poupança interna (lucros) de uma empresa tem ou deveria ter a função principal de financiar investimentos, por meio de lucros não distribuídos. Quando isso não ocorre, a expansão de atividades se baseia em recursos de terceiros – bancos e mercados financeiros.
É exatamente esta a política do grupo em análise: contratação de empréstimos em bancos nacionais e estrangeiros e emissão de debêntures. Em 2007 a captação de empréstimos ficou próxima de R$ 800 milhões, dos quais apenas 60% destinados a aplicações no ativo imobilizado, o saldo distribuindo-se em operações contábeis relativas às dívidas do grupo.
Que recursos de terceiros constituam uma fonte de financiamento mais cara do que os recursos próprios- os lucros não distribuídos- parece não importar muito a certos conglomerados. O aumento de custos que daí resulta pode, afinal, ser repassado aos usuários, no caso nós, que estamos obrigados a pagar pedágio rodoviário até em percursos obrigatórios residência-trabalho. Dinheiro à vista cuja arrecadação é de difícil fiscalização !
[1] No setor de energia elétrica, veja-se José Paulo Vieira. Anti-valor. Um estudo da energia elétrica. Ed. Paz e Terra, 2007
[2] Mesmo quando se considera que há serviços terceirizados, que empregam mão-de-obra, permanece injusta a repartição da renda entre o trabalho (salários) e o capital (lucros, juros e aluguéis).
Ceci Juruá, economista e pesquisadora, integra o programa Outro Brasil, do Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
fonte: http://www.agenciacartamaior.com.br
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