por Idelber Avelar
Num post cheio de justificativas e racionalizações para os massacres israelenses, Pedro Dória escreve (todas as citações são tiradas do post e vão em itálicos):
1) os árabes agüentam o sangue. São mais duros, morrem sem se preocupar. É inacreditável que um jornalista continue reproduzindo essas grotescas caricaturas racistas. A cada chacina perpetrada por Israel, aparecem na mídia essas generalizações sobre os árabes. Os árabes não gostam de sangue e sacríficio mais que qualquer outro grupo humano. Submetidos a décadas de humilhações, invasões e ocupações, reagem como qualquer outro grupo humano, ou seja, num leque de alternativas que vai desde a violência suicida mais desesperada até a perda completa da capacidade de ter esperanças. Os africanos não gostam de matar suas crianças mais que qualquer outro grupo humano. Mas incontáveis africanos e afrodescendentes recorreram ao infanticídio como forma desesperada de tentar salvar seus filhos do opróbrio da escravidão. Os indígenas da Mesoamérica não gostam de se suicidar mais que qualquer outro grupo humano. Mas incontáveis mexicas, toltecas e chichimecas recorreram ao suicídio como forma de fugir dos horrores da colonização espanhola. A idéia de que “os árabes cultuam o martírio” é nada mais que isso: um estereótipo racista. Em incontáveis conversas com amigos árabes, escutei sempre, invariavelmente, a mesma história: “por que não nos percebem como humanos? Por que achariam que vamos viver contentes sob botas estrangeiras dentro da nossa própria casa? Vocês viveriam?”
2) a estúpida comparação de Israel com o nazismo [.....] Se há um Holocausto em curso? Nem de perto. Sinceramente, os defensores das chacinas de Israel têm que parar com essas brincadeirinhas de semântica. Acho obsceno que alguém escreva isso sobre 100 cadáveres palestinos num fim de semana, incluídos aí os de dezenas de crianças e bebês. Veterano de vinte e cinco anos de discussões com os que racionalizam cada crime de Israel, já está, para mim, cristalina a conclusão: não querem dialogar coisa nenhuma. Querem criar uma perene punhetagem metalingüística que vai se arrastando até que se perde completamente o horizonte da inadmissibilidade moral da coisa. Holocausto não pode, menção ao nazismo não pode (a não ser que seja para justificar os crimes de Israel, claro), chacina não pode, matança não pode. Só pode aquele delicioso termo: ato de auto-defesa. Até que a última criança palestina seja esmagada por um tanque israelense subsidiado pelos meus impostos, haverá alguém para dizer Israel tem o direito de se defender -- como, aliás, escreveu o Pedro quando Israel esmigalhou o sul do Líbano com bombas em julho de 2006, destruindo o renascimento cultural e turístico pelo qual passava o país.
3) O atual governo eleito palestino se recusa a reconhecer o direito de existência de Israel. Como conversar a paz com quem jura sua destruição na primeira chance que tiver? O cinismo do argumento é de embrulhar o estômago. A imprensa israelense cansou-se de noticiar que o Hamas propunha, implorava mesmo, por um cessar-fogo incondicional dos dois lados, sem que nenhuma das reivindicações palestinas sobre o seu território fossem cumpridas como pré-condição. O Hamas não tem chance nem de sonhar com a destruição de Israel. Só por má fé pode se negar este fato. Israel continua com suas chacinas em Gaza não porque o Hamas ainda não tenha feito uma cerimônia em que solemente escrevesse em seus estatutos que reconhece o estado judeu. As chacinas continuam por um cálculo das forças políticas que governam Israel. Sabem que podem fazê-lo, sabem que a comunidade internacional vai se calar, sabem que os EUA vão repetir a cantilena de que “Israel tem o direito de se defender” e sabem que os palestinos não têm como evitá-lo. Trata-se de um cálculo, a longo prazo, suicida – na minha opinião e na opinião de 64% dos israelenses. Mas isso não impede que os massacres sigam acontecendo. Àqueles que os racionalizam, não custa lembrar uma lei inexorável da história: nenhuma ocupação colonial dura para sempre.
Aliás, a justificativa para a recusa a se negociar com o Hamas é de um cinismo atroz. O Hamas foi incentivado politicamente por Israel na época em que a OLP (Organização para a Libertação da Palestina, precursora do atual Fatah) era a inconteste representante do povo palestino, com legitimidade não questionada. Naquela época, Arafat e a OLP é que eram os "terroristas". Depois que a representatividade do Fatah já está reduzida a frangalhos -- porque afinal de contas, a crença de qualquer ser humano na moderação vai se esvaindo quando décadas passam e você continua vivendo sob ocupação estrangeira tão brutal --, é a vez do Hamas ter que ser desqualificado como possível parceiro na mesa de negociação. Para a ocupação colonial, interlocutor bom é interlocutor morto.
4) não adianta permanecer voltando a 1948. Outra afirmação recorrente entre os defensores das chacinas de Israel. Não voltar a 1948, claro, é uma forma de perpetrar o mito de que "os árabes começaram a guerra"; é uma forma de esconder que o estado de Israel deve sua fundação a organizações terroristas; é uma maneira de mascarar a gigantesca dívida com a população palestina, expulsa de suas casas, desumanizada e humilhada para que o Ocidente pudesse aplacar a culpa pelo Holocausto. Via de regra, não acredite em ninguém que queira discutir um fenômeno histórico propagando a ignorância de suas origens.
5) Como na piada do rabino, é perfeitamente sensato dizer: ambos têm toda a razão. A frase é a insensatez em pessoa. Ante chacina após chacina, ante massacre após massacre, o menos sensato que se pode dizer é que “ambos têm toda a razão”. São 4 décadas de ocupação ilegal dos territórios palestinos na Cisjordânia (e 37 anos de ocupação de Gaza, seguidos por três anos de bombardeios, incursões, retenção de fundos, cortes de energia e um verdadeiro inferno na faixa “desocupada”). Isto é somente 22% do território palestino original. O único que pede o povo palestino é o direito de viver em paz nestes 22% reconhecidos como seus pela comunidade internacional, depois que os outros 78% já foram roubados. Imagine você, amigo paulistano, tendo que fazer fila, apresentar documentos, ser humilhado e detido a qualquer momento por um exército estrangeiro cada vez que quisesse atravessar a Avenida Paulista. Imagine, conterrâneo, ver compatriotas grávidas morrendo na fila de barreiras militares estrangeiras na Avenida Afonso Pena, porque não foram liberadas pelo exército estrangeiro ocupante a tempo de ir ao hospital. Agora imagine que cenas como esta:
ou esta:
ou esta:
se repetem diariamente nos checkpoints da Palestina. Agora imagine isso durante quarenta anos consecutivos. E aí você começará a ter uma idéia do que é a vida palestina sob a ocupação, desde que não se esqueça, claro, de que junto com os checkpoints vêm os bombardeios, demolições de casas, assassinatos e o silêncio cúmplice da comunidade internacional, pontuada pelo papagaio da vez na Casa Branca repetindo que "Israel tem o direito de se defender". Sim, este blog considera que querer ver "os dois lados" nesta questão é rigorosamente análogo a escrever a história do massacre de Pizarro no Peru "tentando ver os dois lados", a relatar os horrores das senzalas "tentando ver os dois lados" e, sim senhor, contar a história do massacre alemão sobre os judeus tentando "ver os dois lados". Todos estes fenômenos históricos são bastante diferentes entre si. Idêntica é a imoralidade de quem os quer justificar com uma pseudo-ponderação balanceada.
PS: O Biscoito Fino e a Massa entende que os direitos sobre quaisquer imagens que documentem a chacina que sofre o povo palestino são de domínio público, pois elas configuram testemunho de crime lesa-humanidade.
fonte: http://www.idelberavelar.com/ - O Biscoito Fino e a Massa
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