segunda-feira, 20 de julho de 2009

Israel e o crime de pirataria: o caso do barco "Spirit of Humanity"

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Marinha israelense com frequência ataca barcos de pescadores no litoral de Gaza, exatamente como fez com o "Spirit of Humanity"


por Radhika Sainath, em The Electronic Intifada

Quando a Marinha israelense deteve e abordou o pequeno barco de ajuda humanitária, que navegava sob bandeira grega, na 3ª-feira, dia 30/6/2009, aqueles comandos israelenses cometeram atos de pirataria, ao forçar a tripulação e 21 passageiros – entre os quais uma ex-deputada dos EUA e ganhadora do Prêmio Nobel – a atracar em Israel? Os oficiais israelenses podem ser acusados e processados? Nesse caso, onde serão julgados?

Na manhã de 29/6, o barco "Spirit of Humanity" partiu do porto de Chipre para a Faixa de Gaza, carregando cerca de três toneladas de remédios, mudas de oliveiras, brinquedos e outros itens de ajuda humanitária para a região onde vivem cerca de 1,5 milhão de palestinos. O "Spirit" viajava em águas internacionais quando, aproximadamente à 1h30 da madrugada, foi cercado por barcos israelenses armados, perdeu os sistemas de GPS, navegação e radar, e recebeu ordem de render-se ou o barco seria afundado. Marinheiros israelenses pesadamente armados subiram a bordo, obrigaram os passageiros a deitarem-se com o rosto no chão, agrediram vários deles e, por fim, ordenaram que o barco fosse levado para Israel. Lá, os passageiros foram postos em celas superlotadas e sem ventilação, até que todos – exceto dois passageiros – foram deportados.

A Marinha israelense com frequência ataca barcos de pescadores no litoral de Gaza, e várias vezes capturou barcos e prendeu tripulantes, exatamente como, dessa vez, fez com o "Spirit of Humanity".

Atos de pirataria, como definidos na legislação internacional, incluem atos ilegais de violência e detenção cometidos em alto mar ou fora da jurisdição de qualquer Estado. A pirataria ainda carrega fantasias de tesouros enterrados, navios postos a pique e o melhor de Johnny Depp; mas os homens do mar sempre temeram os piratas em águas-de-ninguém, onde barcos e tripulações navegam sem qualquer proteção de nenhuma lei de nenhum Estado.

A ação de Israel semana passada reproduz vários traços dos tradicionais atos de pirataria: os passageiros do "Spirit" viajavam desarmados por águas internacionais; estavam vulneráveis, sem saber se seriam salvos ou se seriam assassinados, quando a Marinha israelense invadiu seu barco e os fez prisioneiros. Israel cometeu crime de pirataria? A resposta técnica é: Sim.

Israel cometeu atos de evidente violência contra os passageiros do "Spirit", atos que, nos termos da Convenção da ONU para Altos Mares, são atos ilegais. Qualquer barco de guerra pode legitimamente abordar navio estrangeiro em águas internacionais e em alto mar, mas apenas em três casos: se houver motivo para suspeitar que o navio esteja envolvido em ato de pirataria; ou em ato de comércio de escravos; ou se o navio suspeito – independente de nacionalidade ou bandeira – tiver, de fato, a mesma nacionalidade do barco de guerra que o aborde. Nada disso aconteceu no caso do ataque pirata ao "Spirit".

Segundo notícia divulgada dia 1/7 pelo movimento Free Gaza, o barco "Spirit of Humanity" navegava em águas internacionais ao ser abordado e capturado pela Marinha de Israel. Mesmo que o barco já estivesse em águas de Gaza, ainda assim o ato de abordar e capturar passageiros e tripulação seria ato de pirataria, porque o litoral de Gaza não está sob jurisdição de nenhum Estado – e com absoluta certeza não está sob jurisdição de Israel. "Jurisdição", vale lembrar, é diferente de "controle". Apesar de Israel exercer controle de facto sobre Gaza, Israel não tem jurisdição legal, de jure, sobre Gaza.

Além disso, embora a pirataria seja tradicionalmente definida como ato privado, nenhuma lei ou direito justifica que marinheiros israelenses capturem o barco, impeçam-no de navegar, capturem os passageiros e tripulação e confisquem a carga; nesse caso deve-se legitimamente falar de "pirataria de Estado": um Estado patrocina ações de pirataria.

Por que é tão importante que Israel seja formalmente acusada de prática de pirataria, sobretudo quando já enfrenta várias novas acusações por prática de crimes de guerra?

A lei em geral, nacional e internacional, há muito consagrou o princípio de que os piratas são "hostis humani generis" – inimigos de toda a humanidade. No século 18, as nações definiram um consenso segundo o qual a pirataria seria considerada crime, e todas as nações passaram a ter o direito de processar piratas independente de nacionalidade. Nos EUA (ver "EUA contra Smith", 18 U.S. 153, 1820), a Corte Suprema já declarou que esse princípio da jurisdição universal aplica-se para punir todos, "nativos ou estrangeiros, que cometam crime de pirataria contra quaisquer pessoas (...)".

Em outras palavras, a pirataria é um dos primeiros crimes definidos como tal pela lei internacional. Hoje, a lei internacional dá à pirataria tratamento equivalente ao que dá à escravatura e ao genocídio, que têm status de jus cogens (direito cogente) – norma ou direito que não pode ser derrogado. Isso implica que os Estados são obrigados por norma de direito internacional cogente, concordem ou não com a aplicação desse tipo de lei. Por exemplo, nenhum país poderá praticar a escravidão, ainda que faça aprovar leis nacionais que permitam a escravidão.

Apresentar denúncia formal contra os marinheiros e comandantes israelenses por crime de pirataria é importante, hoje, não apenas para punir os que atacaram o "Spirit" dia 30/6, mas também para afirmar a legitimidade da legislação internacional, cada dia mais vista como legislação de uso seletivo, aplicada quando interessa aos países ricos como instrumento para oprimir os países pobres. A guerra contra a pirataria voltou à pauta contemporânea graças à Resolução n. 1851 da ONU, proposta pelos EUA, que exige que todos os Estados participem da luta contra os piratas ativos na costa da Somália e que autoriza, inclusive, ações em terra, no interior do território da Somália.

Não se admite que as leis contra a pirataria sejam aplicadas apenas contra africanos pobres que assaltam imensos petroleiros e causam prejuízo às grandes corporações comerciais. Assim como os procuradores do Distrito Sul de Nova Iorque indiciaram um cidadão somali, acusado de prática de dez crimes, entre os quais pirataria e sequestro, assim também é preciso indiciar os israelenses que dia 30/6 cometeram e ajudaram a cometer crimes de pirataria contra o barco "Spirit of Humanity" e que cometem frequentemente os mesmos crimes contra barcos palestinos.

Ainda mais importante que isso, governos e a sociedade civil, em todo o planeta, devem trabalhar para obter que Israel respeite a legislação internacional, todos os direitos de autodeterminação e os direitos humanos de todos os povos, inclusive dos palestinos.

* Radhika Sainath é advogada em Los Angeles, especialista em Direitos Humanos. Acaba de publicar, como organizadora, o relatório
Peace Under Fire: Israel/Palestine and the International Solidarity Movement.

O artigo original pode ser lido em: http://electronicintifada.net/v2/article10657.shtml

Fonte: Vi o Mundo

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