sábado, 18 de julho de 2009

Ofensiva de Israel em Gaza (2008): “Não há inocentes”

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Soldados do exército israelense denunciam práticas de crimes de guerra durante a operação em Gaza, entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009. A fonte da denúncia é o novo boletim da organização "Breaking the Silence", uma ONG formada por veteranos das lutas anteriores contra os palestinos.

A matéria parece nas páginas da internete de muitos jornais europeus (15/07/2009): soldados do exército israelense denunciam práticas de crimes de guerra durante a operação em Gaza, em dezembro/2008/janeiro/2009. A fonte da denúncia é o novo boletim da organização Breaking the Silence, uma ONG formada por veteranos das lutas anteriores contra os palestinos, que entrevistaram 30 soldados participantes daquela operação.

Alguns dos depoimentos ou seus resumos, bem como depoimentos sobre períodos anteriores da ocupação dos territórios palestinos, estão disponíveis na página da Breaking the Silence. Também é interessante ver o depoimento de um dos criadores da organização, Yehuda Shaul, em http://electronicintifada.net

Os depoimentos são chocantes. São quase unânimes em afirmar que a desconsideração pela vida dos civis palestinos, bem como sobre seus bens e haveres, foi sistematicamente ordenada pela oficialidade israelense: era uma política de governo, senão de Estado. Um dos soldados fala que eles, os ocupantes, se sentiam como meninos ocupados em “queimar formigas com uma lupa”. “Abram fogo e não façam perguntas”, era a palavra de ordem dos oficiais, segundo um dos depoentes, que também lembrou que para esse tipo de guerra “não há inocentes”, ou seja, todos são inimigos.

É certo que o Hamas, organização cujos ataques com foguetes serviu de motivo ou pretexto para aquela ação em Gaza, disseminou militantes entre a população civil. Para além de uma realidade, pois parte da população em Gaza é militante ou simpatizante do Hamas, essa foi uma tática de guerrilha urbana conscientemente adotada. Entretanto os dirigentes do Hamas subestimaram a situação de risco. Não estavam diante de uma guerrilha convencional, em que forças revolucionárias combatem o exército da própria nação. Estavam diante de um exército de ocupação, cujo objetivo, na descrição dos depoentes, era “limpar a área”, de todos e de tudo.

Até mesmo essa alegação de que o Hamas usou civis como escudo é retrucada pelo uso do mesmo estratagema por parte dos soldados ocupantes. Os depoimentos ressaltam duas práticas: a de se obrigar civis palestinos a derrubar paredes a marteladas, para o caso de haver bombas ocultas entre os tijolos, e o do soldado entrar numa casa com o cano do fuzil apoiado no ombro de um civil palestino que vai na frente, como escudo. Os testemunhos também confirmam o uso de bombas de fósforo para destruição das áreas consideradas como “suspeitas”.

Yehuda Shaul foi, ele mesmo, soldado de ações do exército israelense contra os palestinos no passado. Em seu depoimento acima assinalado, ressalta com perplexidade a distância entre ocupações de que participou (embora hoje não as apóie) quando, diz ele, “ao sairmos de uma casa investigada varríamos o chão”, e o que hoje ocorre.

O advogado Michael Sfard , especialista na defesa de “seruvniks”, isto é, soldados que se recusam a servir fora das linhas do território aprovado pela ONU, já em 2001 fez uma contundente declaração sobre tais práticas por parte do exército israelense:

“A ocupação corrompeu a cultura de Israel, roeu nosso código de ética, e chegou a contaminar a língua hebraica. Em nome da luta contra o terror assassino e imperdoável que atingiu as cidades grandes e pequenas de Israel, nós crescemos acostumados aos “check-points” em que milhares de palestinos são detidos durante horas e são humilhados por jovens soldados. Crescemos acostumados a apontar nossos rifles para crianças e mulheres. Fizemo-nos tolerantes com a destruição em larga escala de casas (“limpeza de área”, no jargão militar). Finalmente, aceitamos uma política estatal de assassinatos, rotulados e emoldurados por porta-vozes israelenses como [uma política de – N. do T.] “prevenção focalizada”.

Aprendemos a distinguir entre estradas para os colonos (judeus) e estradas para os “locais” (palestinos), e nos pediram para implementar leis discriminatórias em favor das colônias ilegais que aprisionaram nosso país numa guerra messiânica sem fim. Uma guerra que a maioria dos israelenses nunca desejou”. (The Guardian, 19 de maio de 2002).


A porta-voz do exército de Israel, Abival Leibovitch, deu uma declaração protestando contra o fato da ONG ter divulgado seu relatório antes de repassá-lo ao serviço competente das Forças de Defesa Israelense (IDF, sigla em inglês) para que ele apurasse as denúncias. Entretanto denúncias anteriores, feitas pelo próprio Sfard, ou por Amos Havel, especialista militar do jornal Haaretz, bem como as apresentadas pela Anistia Internacional, não produziram qualquer resultado.

A frase do soldado israelense, “não há inocentes”, inicialmente apontada como um rifle ou um vaticínio para a população civil palestina em Gaza, pode voltar-se também contra os israelenses e seus defensores pelo mundo afora, diante das atrocidades cometidas, que os argumentos em torno dos condenáveis ataques terroristas em Israel, pelo Hamas ou outras organizações, não justificam. Afinal, por exemplo, a expressão de que “não havia inocentes” foi largamente utilizada em relação à população alemã diante dos crimes cometidos nos campos de concentração contra judeus, ciganos, homossexuais, comunistas, opositores de toda a espécie, soviéticos, outros prisioneiros de guerra, durante o regime nazista. E na maioria dos casos ela foi usada com justiça. Agora esperemos que ela também se plante no coração de todos os israelenses e outros que de fato queiram a paz no Oriente Médio, não como um selo de vergonha, mas como uma semente de solidariedade internacional, essa hoje esfarrapada bandeira que a esquerda trouxe à cena mundial a partir de 1914.

*Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior.

Fonte: Carta Maior

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