por Idelber Avelar
Meu amigo Fabio Durão escreveu um livro assombroso. Chama-se Rio-Durham-Berlim: Um diário de idéias (Unicamp, 2009). São fragmentos, no estilo da Mínima Moralia, de Adorno, compostos nas manhãs anteriores ao trabalho diário que Fabio realizava para sua tese doutoral, já publicada como Modernism and Coherence. Copio o fragmento que inspira este post. Diz Fabio, na página 15:
Não tarda muito até que, no meio de uma interpretação de um texto, o professor de literatura se depare com a mais irritante das interjeições: “cada um tem sua opinião”, exclama o estudante, com a firmeza, ou até o ultraje, de quem defende a democracia. A resposta deve ser clara e firme: em primeiro lugar, este argumento impede o diálogo antes mesmo que ele comece, fazendo assim da sala de aula um ambiente supérfluo. Além disso, note-se, a opinião que conseguisse traduzir o grau de individualidade pressuposto nesta posição deixaria de sê-lo, e se tornaria uma leitura forte. Ou seja, aqui, quanto mais se valoriza a singularidade, mais se expressa o lugar comum, as idéias que ninguém questiona e que circulam com a liberdade das mercadorias mais baratas. É importante que o professor vença sua raiva, que naturalmente nasce desta situação de impotência, por entendê-la. Como toda burrice (infinitamente distante da ingenuidade), esta sabe mais do que pensa. Pois ela na realidade encena o toque de retirada do “eu” para a proteção das muralhas do conhecido. Dificilmente o estudante usaria a mesma expressão se estivesse discutindo, digamos, futebol, em um bar com os amigos. Na verdade, o aluno sabe exatamente o que está se passando: “cada um tem sua opinião” representa um movimento defensivo diante do novo e do difícil (que tantas vezes são indissociáveis). Cabe ao professor entender este medo e reconhecer, talvez com júbilo, que esta ocasião já é sintoma de um primeiro encontro com algo de novo.
Todo o livro de Fabio exibe esse mesmo brilhantismo. São 85 fragmentos, em 76 páginas. Quem gosta de uma leitura inteligente da realidade devorá-lo-á em poucas horas.
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Truísmo é o nome que reservamos, em filosofia, para a banalidade que, verdadeira, produz efeitos que vão muito além daqueles que estritamente poderíamos derivar da veracidade que enuncia. Num comentário a um post de Alexandre Nodari, eu desenvolvia a tese de que o truísmo funciona mais ou menos com a dinâmica que Marx identificou para as forças produtivas. Se você se lembra, as forças produtivas, para Marx, vão se desenvolvendo até que elas já não “cabem” no modo de produção no qual elas se encontram, forçando a turbulência revolucionária a partir da qual surgiria outro. Assim (resumindo brutalmente), o desenvolvimento de um sistema de trocas mais amplo na Europa tardo-medieval foi corroendo as bases do Feudalismo e criando as condições para as revoluções burguesas, que romperam as travas que aquele modo de produção impunha às forças produtivas.
Pois bem, os truísmos funcionam assim. Todo truísmo tem seu momento liberador. Ele expressa, como todo clichê, uma banalidade que não é falsa, mas que pode muito bem funcionar para falsificar a realidade – especialmente depois que, já disseminado, passa a ser usado para travar o pensamento e, não raro, silenciar o outro. Já que tirei a semana para fazer posts que vão me servir no futuro, aproveito para tratar de cinco truísmos que encontro com frequência por aí.
1. Cada um tem sua opinião. É o pai, ou a mãe, de todos os truísmos. Como todos os outros, ele é vítima da reversibilidade: ora, se “cada um tem sua opinião”, seria possível, em tese, formular a opinião contrária – a de que cada um não tem sua opinião. Isso significa que, para que esse truísmo seja verdadeiro, ele tem que ser falso. O paradoxo é que quem recorre ao “cada um tem sua opinião” como instrumento de debate não está jamais exprimindo opinião própria. Está, invariavelmente, repetindo opinião ouvida alhures. Afinal de contas, quer afirmação mais universalizante que “cada um tem sua opinião”? Quem diz isso no interior de uma discussão não está abrindo-se para o diálogo. Está fechando-o antes que ele se inicie. Dizer “cada um tem sua opinião” é como dizer “eu sou mentiroso”: trata-se de uma afirmação que implode no momento em que ela é feita.
2. Futebol não tem lógica. Este é o truísmo a que recorremos quando fracassa nossa explicação do jogo. Como todo truísmo, ele é verdadeiro e falso. Afinal, haverá coisa no mundo que tenha mais lógica do que o futebol? Simplesmente trata-se de que o futebol não se pauta por aquilo que costumamos chamar de “lógica” no discurso cotidiano, ou seja, a lógica positivista do encadeamento das causas e efeitos, que ordena esportes mais gerenciais e matemáticos como o futebol americano e o basquete. O futebol funciona de acordo com a lógica da contingência que, se você for observar bem, está muito mais próxima da lógica que ordena o mundo.
3. Não se pode comparar (cinema e literatura): Deixo os dois termos da comparação entre parênteses porque não importa quais eles sejam. A coisa funciona da mesma forma. No caso em questão, o truísmo teve seu momento liberador quando serviu para combater certa tendência a se trabalhar adaptações de romances ou contos a partir de uma metafísica da fidelidade. Ele desnudava uma certa prepotência literária, que insistia em pensar sua arte como superior, e o cinema como acessório que não podia se ombrear com ela. Hoje esse clichê já é, como o "cada um tem sua opinião", um apêndice da preguiça de pensar. Basta relacionar um livro e um filme para que você ouça isso. É invariavelmente um instrumento para silenciar o debate. Basta estabelecer uma comparação para que alguém diga que não se podem comparar coisas diferentes. Como se houvesse algum sentido em comparar coisas idênticas. Esta crítica ao truísmo não implica, claro, que eu ache que toda comparação procede. Há que se ver caso a caso.
4. Todos os que se sentem ofendidos têm o direito de procurar a justiça. É o truísmo favorito dos advogados (não todos, claro), ao qual recorrem quando se critica a decisão de algum Maiorana de processar um Lúcio Flávio, ou de uma Leticia W. de processar um Milton Ribeiro. Evidentemente, o argumento é verdadeiro. Todo mundo tem o direito de procurar a justiça quando se sentir ofendido. O problema é que ele é, como todo truísmo, tautologicamente reversível: a mesma Constituição que assegura o direito de cada ofendido procurar a justiça assegura a liberdade de crítica -- incluindo-se aí o direito de criticar alguém por judicializar discussões políticas ou literárias. Nas conversas sobre a daninha judicialização do debate político no Brasil, todos os que se sentem ofendidos têm o direito de procurar a justiça não costuma funcionar como argumentação: é mecanismo de silenciamento mesmo. Uma variante dele é o truísmo cada um deve se responsabilizar pelo que diz. Ora, isso é evidente. Mas a brincadeirinha da reversibilidade se aplica aqui também: se cada um deve se responsabilizar pelas consequências do que diz, cada um deve também se responsabilizar pelas consequências de seus atos, incluindo-se o ato de decidir processar alguém por ter dito algo. Se você é escritor e decide processar alguém por uma resenha, viverá com a reputação advinda disso, a qual -- diz a história da literatura -- não costuma ser muito boa. Reitero que não sou crítico de todos os processos por injúria, calúnia ou difamação. Os critérios aqui são aqueles, óbvios: extensão do dolo, clareza do propósito de difamar, diferença de acesso aos meios de comunicação etc. Se eu fosse MV Bill, por exemplo, já teria processado Diogo Mainardi. Sim, eu sei que essa decisão cabe ao MV Bill.
5. O problema são os radicalismos dos dois lados. Eis aqui mais um que é pai, ou mãe, ou tio, de vários outros truísmos. Os que anunciam que o problema são os radicalismos dos dois lados gostam de se apresentar como moderados, ponderados, razoáveis, racionais. É o truísmo preferido dos que justificam a barbárie na Palestina Ocupada. É o truísmo favorito dos que justificam a violência policial contra estudantes (cujo movimento tem, sim, vários problemas). Esse é um truísmo particular, porque ele se baseia num uso completamente enganoso da palavra “radicalismo”. Ora, só é possível ser radical numa direção: a da raiz. Basta ir ao seu dicionário etimológico e ver de onde vem a palavra. Quando alguém reduzir um problema político ao “radicalismo dos dois lados”, você pode ter certeza de que: 1) ele não é equidistante em relação aos dois lados; 2) ele quer que você acredite que ele é isento ou equidistante com respeito aos “dois lados”.
Há muitos outros, mas comecemos com estes cinco. Estão todos convidados a completar a lista.
Fonte: O Biscoito Fino e a Massa
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