quarta-feira, 8 de julho de 2009

Fronteiras solidárias

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Após anistiar os ilegais, o governo encaminha ao Congresso um amplo projeto para garantir direitos e facilitar a vida dos estrangeiros que vivem no Brasil.

Por Rodrigo Martins

Na quarta-feira 1º, um dia antes do presidente Lula sancionar a lei de anistia aos imigrantes em situação irregular no País, o boliviano Jorge Fernandez Mayta, de 19 anos, estava eufórico. Há dois anos, o jovem abandonou o emprego de cobrador de ônibus em La Paz para trabalhar numa confecção em São Paulo. O antigo salário de 200 bolivianos (algo em torno de 55 reais), cresceu para uma remuneração que varia entre 300 e 400 reais, dependendo da produção. Apesar da renda maior, Mayta não se sente um cidadão pleno. "Ando com um passaporte vencido no bolso. Trabalho sem registro em carteira. Não posso abrir uma conta no banco, não tenho como alugar uma casa sem ajuda de outras pessoas. Tenho medo de ser preso e deportado a todo instante."

Agora, todos os imigrantes em situação irregular e sem antecedentes criminais, estabelecidos no Brasil antes de 1º de fevereiro, poderão fixar residência legalmente no País e tirar um documento de identificação de estrangeiro, com facilidades e isenção de várias taxas. O governo pretende superar o número de estrangeiros beneficiados pela última anistia concedida em 1998, que regularizou a situação de 50 mil imigrantes. Não é tudo. Após mais de cinco anos de discussão no Ministério da Justiça, o projeto de reformulação da Lei do Estrangeiro foi finalmente encaminhado ao Congresso, no mesmo dia em que Lula assinou o decreto de regulamentação da anistia.

As propostas do governo visam garantir direitos essenciais e facilitar o processo de legalização dos estrangeiros, uma medida aplaudida por organizações de defesa dos direitos humanos, principalmente neste momento em que a maioria dos países desenvolvidos tem dificultado cada vez mais a vida de imigrantes. Em junho de 2008, por exemplo, o Parlamento Europeu aprovou uma lei que estabelece pena de até 18 meses de detenção para quem for pego residindo ilegalmente na União Europeia. Os condenados são deportados e ficam proibidos de retornar a qualquer um dos países do bloco por um período de cinco anos.

Nos Estados Unidos, apenas após a eleição do democrata Barack Obama, o governo iniciou um debate sobre a possibilidade de legalizar a situação dos 12 milhões de estrangeiros que vivem irregularmente no país, a maioria deles latinos. Mas a oposição à iniciativa é forte, dentro e fora do Congresso. "Não me parece racional que algum líder político diga que vamos dar a milhões de trabalhadores estrangeiros acesso permanente a empregos americanos quando temos milhões de americanos desempregados", afirmou Roy Beck, diretor da NumbersUSA, entidade que defende a redução dos fluxos migratórios, ao The New York Times.

Para o Brasil, os estrangeiros não são, nem de longe, um grande problema. O -País possui cerca de 900 mil imigrantes regularizados, menos de 0,5% da população nacional. Os irregulares, nas projeções menos otimitistas, não passam de 200 mil, a maioria deles vindos de países como Bolívia, Paraguai, Peru e China. "O Brasil, hoje, é um país com perfil mais emigrante do que imigrante. Estima-se que mais de 3 milhões de brasileiros vivem hoje no exterior", comenta Riane Paz Falcão, diretora-adjunta do Departamento de Estrangeiro do Ministério da Justiça.

Talvez por esta razão, Lula tenha sido tão enfático ao criticar a postura das nações desenvolvidas no trato com os imigrantes, ao discursar na Organização Internacional do Trabalho, em meados de junho. "Eu tenho notado que em algumas campanhas políticas o maior instrumento da direita é dizer que vai diminuir a imigração para garantir o emprego", afirmou o presidente. "Não podemos permitir que a direita utilize o imigrante como se ele fosse um mal da nação ocupando o lugar de uma pessoa do próprio país."

A legislação de imigração em vigor no Brasil não prevê medidas tão restritivas quanto as europeias e americanas, mas também não é nenhum exemplo humanitário. Concebida nos moldes da doutrina da Segurança Nacional da ditadura, a Lei do Estrangeiro (6.815, de 1980) restringe o exercício de atividades remuneradas, cria obstáculos à concessão de vistos de permanência e proíbe a organização e manifestação política. "As atuais propostas de modificação têm um significado muito positivo e uma expressão de convicção, por parte do Brasil, de que os migrantes não são nem causam problemas. Ao contrário, são uma presença enriquecedora cultural e economicamente", avalia Rosita Milesi, diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos.

O projeto começou a ser elaborado em 2004, quando o Ministério da Justiça criou uma comissão para avaliar e propor alterações à Lei do Estrangeiro. No ano seguinte, o anteprojeto de lei foi aberto à consulta pública, acolhendo sugestões de advogados, de ONGs que apoiam o imigrante e do setor empresarial. Só no fim de 2007 foi constituído, por meio de portaria, um novo grupo para finalizar o texto. Coube à Secretaria Nacional de Justiça a coordenação do trabalho. "O estatuto estava defasado, com essa concepção de segurança nacional da época da ditadura. Era preciso dar uma redação com enfoque nos direitos humanos, garantir direitos essenciais, como tem sido a orientação de vários instrumentos internacionais, como as Convenções de Viena e Genebra e a Carta das Nações Unidas", diz o secretário Romeu Tuma Júnior.

Esta é a razão da proposta do documento para que todos os direitos sociais, como o acesso à saúde, educação e assistência social, sejam garantidos aos estrangeiros em território nacional, mesmo que estejam irregulares. "É uma questão humanitária, não podemos criminalizar o imigrante e tratá-lo como um cidadão de segunda classe", resume Tuma Júnior.

A medida é aplaudida por quem sofre na pele este tipo de discriminação. "Quantas vezes eu não deixei de ir ao médico por medo de ser denunciado. Na oficina, é comum ver imigrantes se tratando de doenças com chás e ervas, porque muitos têm medo de ir ao posto de saúde", comenta o costureiro e músico paraguaio Bernardino Mora Benitez, de 33 anos, que vive em São Paulo, sem documentação, há seis.

Na avaliação do secretário de Justiça, uma das principais vantagens do projeto é a clara diferenciação entre imigrantes e criminosos. "Não se pode confundir quem vem ao Brasil em busca de trabalho, de melhores condições de vida, com o contrabandista ou traficante, que se vale do vaivém das fronteiras para praticar crimes e permanecer impune", explica Tuma Júnior. "Por isso, propusemos a modificação de um artigo do Código Penal, para tipificar o crime de tráfico de imigrantes, e punir aqueles que lucram com o aliciamento de estrangeiros para trabalhos degradantes. Por outro lado, propusemos a proteção das vítimas do tráfico de pessoas, que não devem ser deportadas."

O projeto ainda prevê a possibilidade de se requerer renovação de vistos ou pedidos de residência sem a necessidade de voltar ao país de origem, de estudantes exercerem atividades remuneradas, bem como a falta de diferenciação entre vistos de turismo e trabalho. Quem quiser vir ao Brasil para fins de recreação ou negócios, passará pelas mesmas exigências e terá direito aos mesmos benefícios. Outra medida de inclusão diz respeito ao reconhecimento das uniões estáveis entre homossexuais para a concessão de vistos de permanência ou cidadania aos companheiros de brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil. "A lei, na verdade, já permitia isso, mas a burocracia para comprovar essa união era muito grande. Com um texto mais claro, a situação pode melhorar muito", avalia Maria Berenice Dias, advogada especializada em Direito Homoafetivo e ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
De acordo com João Illes, coordenador do Centro de Apoio ao Migrante, ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o projeto do Ministério da Justiça acolheu muitas das reivindicações dos movimentos sociais e evoluiu bastante. Identifica, no entanto, aspectos que foram colocados de lado. "Os estrangeiros continuarão proibidos, por exemplo, de abrir uma empresa se não firmarem sociedade com um brasileiro. Mas a regra deveria ser revista ao menos em relação às microempresas, que podem ser uma alternativa à exploração de mão de obra barata dos imigrantes latino-americanos."

Para virar lei, o projeto ainda tem um longo caminho pelo Congresso. Só deve ser aprovado rapidamente se as lideranças partidárias chegarem a um entendimento ou a bancada governista abraçar a causa. Certo, por enquanto, são os benefícios da lei da anistia, uma proposição do legislativo já sancionada pelo presidente. "O trabalhador brasileiro não deve ficar preocupado. Na ilegalidade, os imigrantes são explorados e se sujeitam a baixos salários e condições precárias. Isso tem um efeito muito mais nocivo para a economia do que a inclusão desses estrangeiros no mercado formal, regido por regras", conclui o deputado Carlos Zarattini (PT-SP), relator do projeto da Câmara.

De toda forma, boa parte da imigração irregular pode ser resolvida em breve. Os países associados do Mercosul assinaram um acordo de livre circulação de pessoas, que só não foi ratificado ainda pelo Paraguai. "Quando as autoridades paraguaias assinarem o acordo, os cidadãos dos seis países que integram o Mercosul poderão fixar residência em qualquer região do bloco", afirma Tuma Júnior. O Paraguai anunciou a intenção de assinar o protocolo em 25 de julho. O problema é que o país já adiou a decisão ao menos duas vezes.

Fonte: Carta Capital

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