segunda-feira, 6 de julho de 2009

Crise do Senado reflete profunda ‘coronelização’ dos partidos políticos

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por Valéria Nader e Gabriel Brito*

Afundando num mar de lama e barbaridades republicanas, os brasileiros se perguntam, sem conseguir respostas, o que mais será necessário acontecer para que um dia tenhamos instituições minimamente respeitáveis. Em entrevista ao Correio da Cidadania, o filósofo Roberto Romano procura destrinchar aspectos que moldaram o perfil e os costumes do que se chama democracia no país.

Romano lembra que um fator preponderante para a decadência dos parâmetros éticos é a peculiar confluência brasileira entre burocracia e relações de favor, em tese campos opostos da vida cotidiana. O professor da Unicamp ressalta que, após o engessamento causado por nossas ditaduras do século 20, o público ainda vive um lento processo de tomada de consciência, que ao menos vem servindo para elevar o nível de indignação das pessoas. Ademais, coloca na berlinda o atual papel do Senado, que num regime bicameral poderia se tornar menos representativo, com apenas um eleito por estado.

Para ele, proceder a uma autêntica reforma política, cuja condição principal seria democratizar os processos decisórios internos de cada partido, é questão de ‘salvação nacional’, único modo de acabar com a onda de despolitização e descaracterização da própria prática política A única maneira de não vermos, como nas palavras do próprio, obscenidades como a imagem de Lula, Collor, Sarney e Calheiros em risos de bons confrades.

Correio Cidadania: Já foram tantos os escândalos no Senado que o atual parece até assumir ares de insignificância. A seu ver, o que revela do país nesse momento atual? Há uma séria crise política, uma crise institucional, o que estamos vivendo de fato?

Roberto Romano: Estamos vivendo uma crise do Estado e essa crise tende a se agravar cada vez mais, dado o desequilíbrio muito grande entre a cidadania e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Temos a cidadania caminhando para um lado e a instituição estatal para outro, esse é o primeiro ponto.

O segundo é que os três poderes não se entendem, e assim não temos uma harmonia, mas, como sempre, uma imposição do poder Executivo, que é respondida com uma permanente chantagem do Legislativo, além da entrada do Judiciário em campos que não são propriamente os seus. Uma situação muito complicada.

Ficamos a discutir qual é o modelo de Estado e sociedade que queremos. Se nós queremos uma sociedade republicana, democrática e livre, temos de repensar a estrutura do Brasil, país que dificilmente pode ser definido como federação, e justamente esse é um ponto para a crise do Senado. Se o Brasil fosse de fato uma federação, o Senado seria muito relevante, pois nele estariam sendo discutidas as diferenças dos estados autônomos e haveria uma necessidade premente da intermediação dos senadores para resolver problemas de autonomia e inter-autonomia.

No entanto, como não é uma federação, como disse muito bem o jurista Fábio Comparato, mas um Império, há ainda hoje uma prática de poder do Executivo federal que age junto aos estados e municípios como se fosse um exército vencedor impondo regras aos vencidos.

Esse é um ponto importante: na ausência de relevância do Senado para questões de magnitude, vemos essa transformação da casa numa agência que busca conseguir recursos federais para as regiões, e ao mesmo tempo chantageia o Executivo, requerendo vantagens para aprovar aquilo que é recusado pela Câmara ou mesmo pela sociedade.

CC: Os atuais escândalos têm motivado discussões acerca do fim do Senado. O jurista Dalmo Dallari, por exemplo, que vem estudando o assunto, argumenta que o Senado no Brasil, por sua origem, é "um anteparo a excessos democratizantes", e ademais já teríamos a Câmara como um representante mais proporcional da população. O senhor, em entrevista ao Correio no final de 2007, por ocasião do escândalo Renan Calheiros, também já argumentava quanto ao teor conservador do Senado desde seu nascimento até os dias de hoje, uma vez incapaz de trabalhar em torno de uma verdadeira autonomia para os estados. O que pensa hoje disto, o bicameralismo não está mesmo se demonstrando prescindível?

RR: Creio ser um pouco cedo para definir assim. O que ficou muito claro com essa crise no Senado é que ele, enquanto instituição, não responde nem às necessidades da cidadania e nem às do próprio Estado. Foi reduzido a uma agência de empregos para parentes dos senadores, foi tragado pelo nepotismo, pelo controle dos funcionários...

Aliás, esse é um ponto que considero importante: Max Weber, em ‘Economia e Sociedade’, analisando a burocracia, mostra que, seja no poder de um grande rei ou de um parlamento – digno, sério, como o parlamento francês ou inglês -, essas instituições da chefia de Estado ficariam praticamente indefesas diante da burocracia. Isso porque a burocracia tem o ‘segredo do cargo’. O burocrata é aquele que conhece os procedimentos, como colocar um processo, como obter e guardar informações, como abri-las só para quem considera ‘digno’ etc. Além disso, funciona de forma hierárquica, vertical. Assim, a burocracia tem uma força que muitos exércitos não possuem. E Weber dizia que o destino dos Estados e da sociedade ocidentais seria a burocracia.

O que aconteceu aqui no Brasil? Aqui tivemos duas coisas: em primeiro lugar, a burocracia, que nesse caso do Senado fica evidente, com os burocratas agindo segundo o segredo do cargo e de maneira hierárquica. É só ver que foi o chefe dos burocratas que determinou os procedimentos errôneos e ilegais. No entanto, tem o segundo fator que piora as coisas por aqui: as relações de favor. Elas existem em todas as sociedades, mas aqui no Brasil fazem parte de sua essência. É o favor do coronel ao agregado, do político-coronel ao seu colega coronel, dos empresários para os políticos e vice-versa... Como diz a professora Maria Sylvia Carvalho Franco, o favor é a mediação universal da sociedade brasileira (dito em ‘Os homens livres na ordem escravocrata’).

Dessa forma, ocorreu no Brasil algo muito estranho: a junção da burocracia com o favor. A burocracia deveria funcionar sem favor, pois ela trabalha impessoalmente, uma de suas regras é a racionalidade impessoal; o que vale é o número do processo, e não o nome. Aqui a burocracia serve justamente para alicerçar as relações pessoais e as de favor. Isso traz um problema quase insolúvel, porque pode se tentar resolver o poder da burocracia, o que é muito complicado (como mostraram Weber, Lukács e outros), mas por outro lado é muito difícil encaminhar essa junção de dois elementos que deveriam ser opostos: a impessoalidade da burocracia com a pessoalidade do exercício dos cargos.

Isso mostra que nós, efetivamente enquanto país, entramos na modernidade pela porta errada. Somos um país onde tudo que há de mais racional se torna irracional imediatamente, tendo em vista as relações de poder. São as mesmas oligarquias que mandam na sociedade, no Estado e favorecem a entrada de novas oligarquias, desde que essas paguem o pedágio, na base do ‘é dando que se recebe’.

CC: De toda forma, uma medida como a extinção do Senado obviamente só faria sentido se inserida em um espectro de uma reforma política mais ampla, não?

RR: Exatamente. Acho que já falei até ao Correio sobre isso. É necessário, mais que urgentemente, por ser tema de salvação nacional, que a cidadania exija uma reforma política e também a democratização dos partidos políticos. É preciso que estes deixem de ser propriedade de pequenos grupos de oligarcas, ou que pequenos partidos de indivíduos donos de siglas deixem de servir às oligarquias e se transformem em instrumento de posição política dos aderentes, dos militantes.

Um partido conservador, de direita, tem militantes de direita. Sendo assim, deve ouvir seus militantes de direita. Um partido socialista tem militantes socialistas, e por isso precisa ouvir sua militância socialista. Se não for assim, qualquer partido perde a legitimidade, e é o que assistimos hoje. Os partidos servem tão somente para cumprir os desejos de ascensão social de seus dirigentes, ou de preservação social dos mesmos; ou você sobe na vida justamente através do partido ou o utiliza para se manter na elite - economicamente, politicamente etc.

Gosto de comparar os partidos brasileiros aos times de futebol nacionais. São as mesmas direções no poder há décadas, não há renovação e elas mandam no caixa, no técnico, deixando a torcida como última a apitar alguma coisa. No caso do partido político é a mesma coisa, o mais importante dentro dele é o militante, é a alma do partido. No entanto, nos partidos brasileiros, ele não manda nada. Sequer é chamado para as eleições primárias, como nos EUA e na França. São meia dúzia de oligarcas que escolhem e impõem os candidatos, manipulam a verba, a propaganda do partido e tudo mais.

Portanto, se queremos democratizar o Estado brasileiro, um passo fundamental é democratizar os partidos políticos.

CC: O que seriam, neste sentido, pontos essenciais em uma reforma política a seu ver?

RR: Bom, esse ponto que acabei de destacar é condição sine qua non. O segundo passo é recuperar a paridade nas eleições para o Legislativo federal. Temos essa condição equivocada na Constituição, pois o voto de um eleitor da Bahia vale metade do eleitor do Acre, o que faz a vontade geral ser desobedecida. Deve-se obedecer, inclusive do ponto de vista quantitativo, ao desejo da maioria e à vontade geral. E no nosso caso não temos uma representação correta na Câmara Federal. E tampouco no Senado. São três senadores por estado, o doutor Fabio Comparato propõe dois e eu diria que um já seria ótimo. Isso porque o partido que tenha um senador eleito já poderia ficar bem representado. Não é necessário tanto senador assim.

Já o terceiro ponto se refere a aspectos mais técnicos, e que assim precisariam ser discutidos mais pela racionalidade que pela passionalidade. Essa questão do voto distrital, por exemplo, tem posições válidas em favor e contra. Existem argumentos que sugerem que assim vai se ‘paroquializar’ as eleições. Por outro lado, há o argumento de que garantiria maior fiscalização dos eleitos por parte dos cidadãos. Por isso que é muito difícil definir numa tacada. Não que eu tenha uma panacéia, mas volto a insistir que todas essas determinações de votações e escrutínio precisam passar primeiramente pela democracia nos partidos. Desviar uma eleição por meios técnicos é tão possível quanto por outro método qualquer.

CC: O grande ‘porém’, no entanto, é que uma reforma política dependeria justamente da aprovação dos atuais componentes do Congresso.

RR: Por isso já se aventou a possibilidade de se convocar uma Assembléia Nacional Constituinte. Aliás, é interessante, pois o que aconteceu em 88? Tivemos um Congresso que se autodeterminou como constituinte, mas não ocorreu uma Assembléia Nacional Constituinte. E me parece que boa parte de todas as confusões e equívocos na interpretação da Constituição se originam disso. Por prudência, pelo fato de se ter saído há pouco do regime militar, não se deu esse passo radical em termos de criação de uma nova Carta.

Manteve-se dentro do Congresso personalidades que agora até dirigem o Senado, que eram profundamente eivadas de autoritarismo e subserviência ao Executivo. Essas pessoas estão dirigindo o país ainda... Só pra ficar mais notório, cito José Sarney. Fez toda sua carreira na sombra da ditadura, era um dos mais importantes líderes da ARENA. E por sentido de oportunidade mudou de barco na última hora. Tudo aquilo com o que ele se acostumou em termos de subserviência ao Executivo e, ao mesmo tempo, pressão para conseguir recursos para sua região, ele faz.

Não por acaso no período Sarney foi instituído o chamado centrão, o ‘é dando que se recebe’.

CC: Há, assim, contexto social e político para proceder a tal reforma hoje no país?

RR: Se nós ficarmos apenas nessa constatação de que os donos do Legislativo, do Executivo e do Judiciário são eternos donos do Estado, evidentemente não há possibilidade nenhuma de mudança. Por aí ainda estaríamos na época do escravismo brasileiro. Aliás, nem isso, mas do escravismo na Grécia, na Itália... Não acho válido o argumento de que não é possível conseguir mudanças só porque as pessoas que estão no poder se aproveitam para criar regras em seu favor.

É plenamente possível que a cidadania se mobilize com todos os instrumentos de hoje – rádio, TV, internet – e é perfeitamente possível notar que o cidadão está cada vez mais consciente. É interessante que ele esteja mais consciente, mas impotente também.

Eu não gosto de metáforas clínicas, porque têm um ranço autoritário muito grande, mas digo sempre que o corpo social brasileiro no século 20 ficou engessado por duas ditaduras. Quando uma perna fica muito tempo engessada, perde sua força, seu vigor, tende a se tornar mais frágil. E estamos há 20 e poucos anos fora do gesso, portanto, começando a nos revigorar. Estamos no período da fisioterapia, começando a sair da fraqueza. Acho perfeitamente possível seguir na linha do fortalecimento da vontade geral da população, que deve cobrar cada vez mais e também votar cada vez melhor.

Mas não sou ingênuo e sei que, conforme a regra instituída, a tendência de fato é de se favorecer quem está lá, como na última reforma política, que foi um escândalo, porque começava com eles próprios na questão da lista, por exemplo. É preciso que não se aceitem gessos espirituais. A ditadura de Vargas, dos militares, foram um gesso material, com uso da propaganda e da força física para impor seus autos, no nosso caso tortura, exílio, cassação, mortes. Não podemos aceitar que, com essa força física afastada – só em parte, pois quem é pobre e preto sabe bem como a força física do Estado está contra ele –, o gesso físico dos tempos da ditadura permaneça em termos intelectuais. E, além disso, temos de procurar soluções, pois uma cabeça que começa a quebrar seu gesso tem condições de imaginar maneiras de ação para confrontar os supostos donos do poder.

CC: Mas não há uma indiferença maior da população desta vez? Por que estaria mais indiferente?

RR: Bom, participei de um debate em Curitiba e fiz o papel do pessimista, enquanto um professor de Direito fez o de otimista. E ele, com certa razão, dizia que essas relações de favor, medidas ilegais, o ‘é dando que se recebe’ eram a normalidade há 30 anos, aconteciam a céu aberto. Hoje, viraram coisa secreta. Não que eu tenha muito entusiasmo com essa alegoria, mas de fato ela é real. A população, cada vez mais informada, tem ficado cada vez mais brava e vem discutindo mais também.

No entanto, o gesso funciona nessa questão do partido, na forma de organização. O partido, ao invés de ser um instrumento flexível de expressão das vontades da população, se torna uma espécie de aparelho ortopédico que impede a ação do povo. É nisso que acho importante focar.

Vejamos o Lula: mesmo recebendo aprovação de 200%, certas expressões usadas por ele não funcionam. Tenho conversado e visto muita gente brava com esse negócio de dar dinheiro ao FMI e com a história de dizer que o Sarney é um homem comum. Ou seja, mesmo em relação a alguém com esses índices fantásticos, a população começa a distinguir melhor o que é correto ou não em termos de práticas democráticas e republicanas.

CC: Há, no entanto, como se pensar em uma séria reforma política, sem mudar a cultura política, o que obviamente implica em um outro sistema educacional, por exemplo?

RR: Sim, essa é uma questão fundamental. Como falávamos dessa questão da votação e do escrutínio, é preciso ficar atento a que muitas vezes a eleição não é democrática. Ainda mais sem saber como os votos são contados!

Para isso, o grande pensador democrático do século 18, Condorcet, matemático também, se preocupou tanto com tais questões das eleições. Ele tem um tratado imenso sobre as eleições e também criou o ‘Paradoxo de Condorcet’. Estudos sobre ele cresceram muito depois das eleições que o Bush fraudou na Flórida, o que fez os EUA discutirem muito o paradoxo de Condorcet. Não vamos fazer uma revisão técnica, mas, grosso modo, consiste em: se temos uma eleição plural, com quatro candidatos, e se o escrutínio for simples e não pensado, teremos eleito aquele que não foi o preferido da maioria – daí o paradoxo. Mas se fizermos uma eleição com A, B, C e D e depois inverteremos a posição, obter-se-á uma triagem muito mais de acordo com a maioria que numa eleição de maioria absoluta ou simples.

É um paradoxo muito interessante porque supõe que o eleitor tem uma grande capacidade de fazer o cálculo da probabilidade. Uma das propostas dele é ensinar cálculo de probabilidade, matemática, ao eleitor. Porém, isso pode acontecer selvagemente: se, por exemplo, eu votar nesse senhor, ele me dá uma dentadura; é uma probabilidade, simples e selvagem. Mais um cálculo: se eu votar nesse outro, ele fará uma ponte no meu rio; é mais complexo, com mais variáveis a se analisarem. Outro: se eu votar nesse, sua política econômica, educacional e de segurança de Estado será muito mais eficaz; o cálculo já fica muito mais complicado. E se eu votar nesse último, a política do país, do ponto de vista científico, tecnológico etc., será mais equânime; bem complexo também.

Quer dizer, é preciso, segundo ele, que se ensinem os cálculos matemáticos, de probabilidade, para que o eleitor tenha capacidade de julgar com sua própria cabeça. É uma fé na inteligência humana. Até o século 18, como até hoje se vê, existia o pensamento de que negros não podiam aprender matemática. Mas Condorcet lutou pra mostrar que eles tinham condições de serem até mais geniais nessa área.

Essa formação educacional e de cidadania é importantíssima. Por exemplo, em teoria política temos a idéia de Kant de que o importante é o cidadão ser virtuoso; que não roube, não mate, obedeça às leis, seja republicano, em suma, a educação da cidadania, à qual não seria necessário um aprendizado letrado, em ciências e tal, que por sua vez seriam coisas para meia dúzia de gente. A proposta de Condorcet vai no sentido exatamente contrário, bem de acordo com as luzes francesas do Iluminismo. Para que haja um regime de liberdade, para que haja democracia, é necessário o povo poder pensar cientificamente. Por isso que uma das variantes de seu pensamento é justamente Augusto Comte, com o positivismo.

E de fato, a performance do Brasil em matemática comparativamente ao mundo é de assustar, pois nossa população realmente não tem essa nutrição no pensamento matemático.

CC: O senhor acredita que o ‘caso Sarney’ seja o fundo do poço da política nacional, ou podemos descer ainda mais?

RR: Olha, o inferno sempre é mais profundo. Eu não conheço limite nem para o céu e nem para o inferno. Realmente o Brasil vive cada vez mais, desde sua descoberta, esse inferno do absolutismo, da corrupção trazida pelo absolutismo, da não responsabilização trazida pelo absolutismo, da extração violenta de impostos sem devolução, enfim, um regime de concentração de poderes que o absolutismo trouxe.

E é bom lembrar que o Estado brasileiro nasceu contra-revolucionário. Nasceu contra a revolução francesa, contra a revolução inglesa e contra a revolução norte-americana. D. João VI, vindo para cá fugido de Napoleão, que ele entendia como expressão da revolução francesa, quis fazer no Brasil um Estado onde não ocorressem aquelas desgraças das revoluções democráticas, instaurando um Estado conservador. E quando o Império se instala aparece aquela idéia ditatorial do Poder Moderador, com o chefe do Estado podendo mandar nas três esferas e na sociedade.

Temos assim um Estado absolutista, extemporâneo, anacrônico, feito expressamente para ir contra as revoluções democráticas. E que permanece até hoje.

CC: Considerando o lamaçal atual, e mesmo sabendo que esta não é absolutamente a solução para a grave crise moral e política em nosso país, Sarney deveria renunciar? Este não seria somente mais um procedimento pra sanar a ‘sede por justiça’, para que tudo volte a ser como antes?

RR: Eu acho que ele deveria renunciar, mas também acho que não deveria ter sido eleito. E nesse ponto podemos perfeitamente fazer uma cobrança sobre o PT, sobre uma responsabilidade histórica gravíssima. Durante o processo de impeachment do Collor, estive em várias e várias manifestações promovidas pelo PT contra ele e o processo demagógico e corruptivo que representava. Hoje, quando sabemos que sua presença é saudada pela ministra Dilma, por ser chefe de uma comissão de infra-estrutura no Senado, vemos bem o passo que foi dado.

Logo depois da eleição do Sarney, a imprensa divulgou uma foto das mais obscenas da história da política moderna brasileira: Renan Calheiros rindo-se às escâncaras junto de Collor e Sarney, sendo que tenho certeza, pois houve declarações nesse sentido, de que o presidente da República também se ria às escâncaras. Acho muito grave essa acolhida do Collor na base governista, um retrocesso. Não é cobrar do presidente por um dia ter chamado Sarney disso ou daquilo; é o mínimo de proposição política.

No caso, houve uma espécie de descaracterização das posições políticas, ideológicas etc., que não são propriamente táticas, e sim estratégicas. E efetivamente estamos chegando a uma situação de impossibilidade de se ter qualquer plano de andar para adiante. O Collor é saudado pela ministra, que perguntava aos outros se já o tinham cumprimentado... Esse convívio respeitoso da possível futura presidente com quem o seu partido lutou para botar pra fora do poder já teve o seu troco: agora sabemos que ele usou a verba indenizatória para fazer a segurança da Casa da Dinda.

Tais posições, todo esse pragmatismo político, me parecem muito pouco saudáveis para a vida social, democrática e republicana brasileira.

*Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.

Fonte: Correio da Cidadania

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