terça-feira, 19 de maio de 2009

O recuo de Obama e as torturas

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O colunista Frank Rich, do New York Times, foi enfático ao escrever domingo: “Ainda que o presidente Obama queira muito virar a página do governo passado, não pode fazê-lo. Enquanto não houver transparência real e os culpados não forem responsabilizados, as revelações sobre o pesadelo dos últimos oito anos podem continuar vindo, gota a gota, para perturbar os planos maiores do novo governo”.

Não é difícil entender porque o presidente Barack Obama colocou-se contra a divulgação de mais fotos das torturas na infame prisão de Abu Ghraib. Julgando-se ainda na lua-de-mel dos primeiros meses de governo, apesar da hostilidade aberta da oposição, tem tentado atrair mais republicanos depois de indicar Robert Gates para o Pentágono. Parece nunca desistir da aparência “bipartidária”.

Consciente de que as fotos seriam publicadas de qualquer jeito (e já estão de novo nas primeiras páginas pelo mundo), preferia não ser o alvo da oposição no caso de serem elas responsabilizadas por ações contra soldados dos EUA. Antes suportara críticas duras por não ter recorrido contra a decisão judicial que mandara o governo divulgar os infames memorandos justificando juridicamente as torturas.

Também é fácil compreender as razões dos setores mais à esquerda do Partido Democrata - o que inclui, dada a elasticidade dos critérios da direita republicana, até o megainvestidor George Soros, já retratado na mídia neoconservadora como “extremista de esquerda” - contra o que encara como recuo, marcha-a-ré, ou flip flop, por contrariar as solenes promessas feitas durante a campanha eleitoral.

Não é hora de virar a página

Ironicamente, a expressão que dá nome a uma das organizações liberais rotuladas de “ultraesquerdistas” pelos talk shows da mídia republicana (e que tem Soros como um dos financiadores) é Move On - com o significado de “vire a página”, “vamos em frente”. Isso porque ao nascer, em defesa do presidente Clinton em meio à histeria republicana do impeachment em 1998, queria “virar a página”.

Seu website (moveon.org) não admite hoje ser agora o momento de virar a página e deixar na impunidade os criminosos do governo Bush. Afinal eles fabricaram uma guerra sob falso pretexto (o das inexistentes armas de destruição em massa) e oficializaram a política ilegal da tortura e sua terceirização (com os vôos secretos da CIA, que também violaram leis dos EUA e tratados internacionais).

O colunista Frank Rich, do New York Times, foi enfático ao escrever domingo: “Ainda que o presidente Obama queira muito virar a página do governo passado, não pode fazê-lo. Enquanto não houver transparência real e os culpados não forem responsabilizados, as revelações sobre o pesadelo dos últimos oito anos podem continuar vindo, gota a gota, para perturbar os planos maiores do novo governo”.

Para Rich, as novas imagens de torturas sequer serão as provas mais chocantes dos pecados da era Bush ainda a serem devassados. Já há muitos indícios - pontos que, conectados um a um, tomarão a forma de novos desenhos, não necessariamente sobre a tortura. O colunista citou artigo publicado no domingo anterior pelo website da revista GQ, assinado por personagem insuspeito, um biógrafo de Bush.

A manipulação de Rumsfeld

Quando fazia, em 2007, seu livro Dead Certain: The Presidency of George W. Bush, o autor - jornalista texano Robert Draper - conversou uma dezena de vezes com o então presidente. Mas no artigo de agora acrescentou detalhes novos para um dossiê futuro “sobre como a fase corrupta e incompetente de Donald Rumsfeld no Pentágono custou vidas de americanos e comprometeu a segurança nacional”.

Como falou com Bush e mais de uma dúzia de seus auxiliares mais leais de nível elevado, ele retratou na GQ como a obsessão meio maníaca de Rumsfeld levou o então secretário da Defesa a antagonizar no Iraque aliados voluntários dos EUA na guerra, como a Grã Bretanha e a Austrália, e até a sabotar os próprios soldados americanos. A receita para ter o apoio de Bush, acha ele, foi no mínimo insólita.

Rumsfeld produzia informes diários altamente secretos do Pentágono (os WIU, Worldwide Intelligence Update), de cuja coleção Draper obteve recentemente um total de 11. A cada dia as páginas do WIU eram entregues em mãos a grupo muito restrito de autoridades (entre elas, Bush), às vezes pelo próprio Rumsfeld. Na folha da capa, sempre fotos triunfais e coloridas da guerra, sob citações literais da Bíblia.

No de 3 de abril de 2003, duas semanas depois do início da invasão (com “choque e horror”), as tropas esbarravam nos tropeços iniciais. Em pânico, o Pentágono lançara dois dias antes a ficção mentirosa sobre a soldadinha Jessica Lynch, a fim de desviar a atenção dos problemas. E no dia 2 o general Joseph Hoar, ex-chefe do Comando Central dos EUA, afirmara que o número de soldados não era suficiente.

CIA tortura, culpa de Pelosi

A citação bíblica da foto na capa do dia 3, com a clara intenção de apertar o botão vermelho da emoção religiosa de Bush, era de Josué (1:9). Esta: “Eu já não o ordenei antes? Seja forte e corajoso. Não se deixe intimidar. Não se deixe desencorajar, pois o Senhor seu Deus estará em sua companhia onde quer que vás”. (Inclusive, para atolar no pântano - ironizou o relato de Rich).

Indiferente à segurança nacional, segundo Draper e Rich, o então secretário da Defesa, que nunca se notabilizara pela fé ou religiosidade, buscava cinicamente manipular Bush, dado a frequentes citações da Bíblia. Rumsfeld incluia ao mesmo tempo, nos WIU, colagens diárias, com mensagens na linha das Cruzadas e imagens de guerra - um reforço ao temor apocalíptico islâmico à guerra religiosa.

Rich estendeu-se mais sobre o horror que revelações ainda tendem a documentar do pesadelo. Mais corrupção, negociatas e relações promíscuas com fornecedores, entre elas. E outro detalhe já aflorado: a cúpula civil do Pentágono, em conluio com o vice Dick Cheney, forçava o uso da tortura na obsessão de provar a tese, desmentida depois pelos fatos, da ligação fantasiosa de Saddam Hussein com Bin Laden.

A oposição que antes bloqueava o debate parlamentar da tortura agora aceita falar mas apenas sobre Nancy Pelosi, presidente da Câmara, criticada por acusar a CIA de enganar o Congresso. A mágica republicana consiste em culpar Pelosi, que integrou (sem poderes) a comissão de Inteligência - e foi enganada. Já os vilões - a CIA e os que autorizaram, executaram e ocultaram a tortura - permaneceriam impunes.

(*) A foto que ilustra o artigo é uma das tantas divulgadas nas últimas horas em outros países, embora nos EUA Obama não tenha levantado o sigilo sobre o lote. Esta e mais 15 estão na edição de 17/05/09 do "Daily Telegraph" de Londres.

Blog do Argemiro Ferreira


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