67 milhões de hectares de terras públicas estão nas mãos do Senado
do Instituto Socioambiental
Pouco antes do início da audiência pública e vigília em defesa da Amazônia, no plenário do Senado, na quarta-feira passada, 13/5, a Câmara dos Deputados aprovava a Medida Provisória nº 458/2009, que regulariza terras públicas, apesar de todos os riscos nela embutidos. Agora, a MP vai para o Senado que terá a responsabilidade de corrigí-la ou de jogar 67 milhões de hectares de terras públicas no lucrativo mercado de terras. Relatoria está nas mãos da senadora Kátia Abreu (DEM-TO), atual presidente da Confederação Nacional de Agricultura (CNA), e uma das lideranças da bancada ruralista, que defende a diminuição das “restrições ambientais” à produção agrícola.
Aconteceu o que todos imaginavam. “Se lixando” para a manifesta contrariedade de organizações ligadas à agricultura familiar, à reforma agrária e ao meio ambiente, a Câmara dos Deputados aprovou, por ampla maioria, a MP nº 458, que permite a alienação de terras públicas federais, por processos simplificados, na Amazônia Legal.
Idealizada originalmente pelo ministro Mangabeira Unger, mas posteriormente adotada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a MP permite que a União doe ou venda, a preços subsidiados, terras de até 1,5 mil hectares (15 km²) em nove estados (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins e parte do Maranhão). O MDA argumenta que essa medida visa a regularizar a posse de milhares de caboclos, ribeirinhos e agricultores familiares que ocuparam a região, com incentivo do Estado, ao longo do século XX, mas que até hoje não conseguiram o título de propriedade das terras em que vivem e plantam.
O texto aprovado, no entanto, tem tudo para tornar-se mecanismo de estímulo à grilagem e à concentração fundiária, indo no sentido contrário ao defendido pelo MDA. Ele simplifica excessivamente os procedimentos de verificação da legitimidade da posse, pois retira a necessidade de vistoria prévia para a alienação de até quatro módulos fiscais (que pode chegar a 600 hectares em algumas regiões) e não vincula os trabalhos de regularização a qualquer plano de ordenamento territorial previamente discutido e aprovado. Sem vistoria prévia não há como se assegurar que quem está reclamando ser ocupante de uma terra seja o real possuidor. Isso pode facilitar o trabalho dos grileiros, que historicamente se utilizam de “laranjas” para conseguir títulos de propriedade sobre terras públicas, criando na prática enormes latifúndios e expulsando os verdadeiros moradores.
Porém, para muitos deputados, notadamente os ruralistas, as facilidades existentes no relatório submetido a votação não eram suficientes. O DEM, por exemplo, tentou aprovar destaque que retirava a condição de que, para alguns casos, o beneficiário da terra pública não seja proprietário de outro imóvel, e o PSDB pediu a retirada do prazo de cinco anos de ocupação na terra para que o particular possa se beneficiar da regularização. Ambos os destaques foram rejeitados, mas isso não representa nenhuma vitória, pois continuou no texto a possibilidade de venda de terras para empresas e para ocupantes indiretos, dentre outros pontos problemáticos (Veja no final do texto).
De acordo com Maria José da Costa, coordenadora nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores, a medida aprovada é motivo de preocupação: “A pauta de regularização fundiária é histórica de todas as organizações camponesas, indígenas, quilombolas e ribeirinhas, mas, como foi aprovada, traz questões de irresponsabilidade política, pois quem vai pegar carona no benefício são as grandes extensões de terra, nas mãos de grileiros e latifundiários, que são os principais responsáveis pelo trabalho escravo e pela violência do campo no país”.
Ela conta que a esperança é reverter algumas questões no Senado, como o acesso ao beneficio para pessoa jurídica, o que considera um atentado à própria reivindicação das populações: “É inadmissível. Qualquer empresa, inclusive estrangeira, pode acabar beneficiada”, diz.
Maria José espera que também seja discutido no Senado o limite da terra e as condicionantes ambientais: “É preciso priorizar quem tem até quatro módulos. E não existe compromisso de recuperação do desmatamento feito anteriormente, o que deveria ser um condicionante para receber o benefício, já que a questão fundamental dessa medida deveria ser a função social da terra”, conclui.
Segundo o coordenador-adjunto do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA, Raul do Valle, a medida aprovada é temerária, tanto do ponto de vista ambiental quanto, e principalmente, do destino do patrimônio público: “No país inteiro, os grandes fazendeiros vêm falando que é um absurdo terem de cumprir uma regra que existe desde 1934, que é a de manter a reserva legal. Alegam que isso deveria ser obrigação do Estado, e não deles”, explica. “Agora, quando se trata de privatizar terras na Amazônia, eles alegam que elas devem ser grandes porque dentro está incluída a reserva legal, da qual eles terão que cuidar. Sabemos que elas não serão respeitadas”, analisa Raul do Valle. “Por isso é fundamental que, antes de passar as terras para a frente, seja feito o ordenamento territorial da região, com a criação de áreas protegidas que garantam a biodiversidade e estanquem o desmatamento”.
A senadora Marina Silva denominou a MP como o “maior programa de regularização da grilagem” da maneira como foi aprovada pelos deputados. “São 67 milhões de hectares de terras públicas saqueadas do povo brasileiro, que podem ser tituladas por aqueles que fazem grilagem, que usam laranjas, que usam violência. A Câmara teve sua oportunidade. O Senado terá sua oportunidade de fazer o reparo no que foi aprovado. Ou então caberá ao Presidente Lula fazer o veto daquilo que não convém à Amazônia e à sociedade brasileira", disse a senadora no pronunciamento que fez durante a sobre a Audiência pública e Vigília, na semana passada.
Valendo-se da definição da palavra vigília como está nos dicionários, a senadora disse que vigília é o estado em que a nação brasileira deve ficar constantemente neste momento de ataque às leis ambientais. Marina parecia estar antevendo o embate que deverá ocorrer em breve no Senado quando a MP for à votação. A relatora, senadora Kátia Abreu (DEM-TO), tem liderado a mobilização da bancada ruralista para reduzir o rigor das leis ambientais argumentando que elas prejudicam a agropecuária e o desenvolvimento.
Os problemas da MP nº 458
Pontos polêmicos aprovados pela Câmara
Benefício a empresas ou pessoas que não vivam da terra: possibilidade de alienar terras públicas, de ate 1500 hectares, a empresas ou pessoas físicas que já tenham outros imóveis no país e que não dependam da terra para sobreviver. Estes participarão de licitação, mas terão direito de preferência, mesmo sem haver vistoria prévia para comprovar posse mansa e pacífica da área reivindicada com tamanho de até 4 módulos (até 600 hectares em algumas regiões).
Concentração de terras nas mãos de poucos: não há nenhuma vedação a que uma mesma pessoa possa ter diversas empresas e cada uma delas se beneficiar da regularização de uma área diferente, ou mesmo que os sócios de uma empresa consigam uma terra em caráter pessoal e outra como pessoa jurídica.
Criação de um lucrativo mercado de terras para empresas ou grandes fazendeiros: os caboclos e agricultores familiares terão que cumprir uma série de exigências e não poderão vender suas terras por 10 anos. Por outro lado, as empresas e ocupantes indiretos (fazendeiros que não vivem na terra) poderão vender a terra apenas 3 anos após sua compra do Poder Público, o que atrairá muito mais especuladores (interessados em pegar terras públicas baratas para poder revendê-las com lucro) do que agricultores.
Doação das terras sem necessidade de ter a reserva legal já averbada: na versão original da MP, a área só seria registrada em nome do particular se a área de reserva legal fosse identificada e averbada. Agora há apenas o “compromisso” do adquirente em averbar, futuramente, a reserva legal. Enquanto isso não ocorrer, mesmo que haja desmatamento ilegal, não será rescindido o título de propriedade (penalidade prevista na lei para quem descumpre algumas condições), pois, pela versão aprovada, isso só ocorrerá quando o desmatamento acontecer na reserva legal. Além disso, o texto abre a possibilidade de que o desmatamento ilegal que venha a justificar a rescisão do título seja compreendido como “benfeitoria” e justifique indenização por parte do Estado ao particular.
Falta de controle no processo de privatização de terras públicas: continua sem haver qualquer tipo de garantia de que o processo de regularização de posses venha a de fato aprimorar o ordenamento fundiário de determinada região, e não piorá-lo. A demanda de que a privatização “expressa” de terras públicas prevista na lei ocorresse apenas em locais onde o ordenamento territorial (criação de unidades de conservação, demarcação de terras indígenas, implantação de assentamentos de reforma agrária, definição da vocação econômica da área definida pelo zoneamento ecológico-econômico) já estivesse resolvido não foi acatada.
Fonte: Vi o Mundo
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