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O último presidente dos EUA a desafiar o lobby israelense foi Dwight D. Eisenhower – que obrigou Israel a devolver o Sinai, imediatamente depois da guerra de 1956. “Ike” era tão popular, que o lobby não o assustava. Obama não é menos popular. Talvez o lobby também não o assuste.
por Uri Avnery**
Barack Obama tem sido frequentemente comparado a Franklin Delano Roosevelt, mas parece ter copiado página de livro de outro Roosevelt: o presidente Theodore Roosevelt, o qual, há 108 anos, bem preveniu os sucessores: "Falem macio. E tenham um grande porrete sempre à mão!” Essa semana, o mundo viu como opera a coisa.
Obama sentou-se no Salão Oval, ao lado de Binyamin Netanyahu, e falou aos jornalistas. Estava sério, mas relaxado. A linguagem corporal mostrou claramente: Netanyahu curvado para a frente, ansioso, como caixeiro viajante que tenta empurrar sua mercadoria; Obama recostado, tranquilo e seguro de si. Falou macio, muito macio. Mas ali, às costas, escondido atrás da bandeira, havia, sim, um grande porrete.
O mundo, é claro, quis saber o que aconteceu entre os dois, no encontro a sós.
De volta a Israel, Netanyahu muito fez para apresentar o encontro como grande sucesso. Agora, depois de apagados os holofotes e enrolado o tapete vermelho, pode-se repensar o que realmente todos vimos e ouvimos.
Como seu maior sucesso, Netanyahu enfatizou a questão do Irã. "Chegamos a perfeito acordo", anunciou ele repetidas vezes.
Mas... que acordo? Acordo sobre o quê? Sobre a necessidade de impedir que o Irã alcance "capacidade nuclear militar".
Calma. O que é isso? Ouvimos aí a palavra "militar"? Mas... Até agora, todos os governos israelenses só fizeram repetir que deveriam impedir que o Irã alcançasse qualquer capacidade nuclear. A nova fórmula, portanto, significa que o governo de Netanyahu já aceitou que o Irã tenha capacidade nuclear "não-militar" – que jamais está muito longe de capacidade nuclear "militar".
E essa não foi a única derrota de Netanyahu, na questão iraniana. Antes de viajar, ele havia exigido que Obama concedesse ao Irã apenas três meses de prazo, "até outubro"; depois disso, "todas as possibilidades estariam sobre a mesa". Um ultimato, que incluía ameaça de ataque militar.
Tudo isso é letra morta. Obama disse que manterá conversações com o Irã até o final do ano; e que, depois disso, avaliada a nova situação, pensará sobre os desdobramentos. Se Obama concluir que não houve progresso, tomará outras medidas, inclusive novas sanções, mais severas. A opção militar sumiu.
É verdade que, depois do encontro, Obama disse a um jornal que "todas as possibilidades estão sobre a mesa". Mas o fato de que não usou essa fórmula na presença de Netanyahu fala muito, muito claramente.
Ninguém duvida de que Netanyahu pediu licença para atacar o Irã, ou – no mínimo – pediu licença para ameaçar. Obama respondeu-lhe um claro e completo "não". Obama decidiu que é preciso evitar que Israel ataque o Irã. O governo israelense foi muito inequivocamente informado dessa decisão. Para garantir que a mensagem seria adequadamente recebida, Obama mandou o chefe da CIA a Israel, portador de exatamente a mesma mensagem, a ser transmitida a todos os líderes israelenses.
Os planos israelenses para ataque militar ao Irã foram retirados da mesa – se é que algum dia lá estiveram.
Netanyahu queria ligar a questão iraniana à questão da Palestina, por via torta e conexão negativa: enquanto persistisse a ameaça iraniana, não se negociariam temas palestinos.
Aqui também, Obama pôs reta a via torta de Netanyahu e estabeleceu uma conexão positiva: progresso na questão palestina é precondição para progresso na questão iraniana. É o que faz sentido: a Palestina não resolvida leva lenha à fogueira da questão iraniana; dá ao Irã uma razão para ameaçar Israel; e fragiliza a oposição de Egito e Arábia Saudita, contra as ambições do Irã.
A principal mensagem de Obama teve a ver com outra questão, que essa semana voltou ao centro das discussões: as colônias nos territórios ocupados.
A palavra "colônias" praticamente desaparecera durante o reinado de Bush Filho. É verdade que todos os governos dos EUA sempre se opuseram à ampliação das colônias. Mas desde a fracassada tentativa de James Baker, secretário de Estado de Bush Pai, de impor sanções a Israel, nunca mais ninguém se atrevera a atacar as colônias. Negociam em Washington e constroem colônias na Palestina. Mentem em Jerusalém e constroem colônias na Palestina.
Como diz um velho palestino: “Negociamos a partilha da pizza, enquanto Israel devora a pizza."
É preciso repetir sempre: as colônias nos territórios ocupados são desastre para os palestinos; são desastre para a paz; e são duplo e triplo desastre para Israel. Primeiro, porque o principal objetivo daqueles prédios é tornar impossível qualquer Estado palestino; assim, se torna impossível, para sempre, qualquer paz. Segundo, porque a construção daqueles prédios suga as energias de toda a economia de Israel e devora recursos que deveriam ser usados para socorrer os israelenses mais pobres. Terceiro, porque as colônias minam a legalidade do Estado de Israel, aceleram a metástase do câncer do fascismo e empurram todo o sistema político israelense na direção dos projetos da direita.
Poetanto, Obama está certo, ao dar prioridade à questão das colônias construídas nos territórios ocupados antes de qualquer outra; antes, até, das negociações de paz. A imediata paralisação de qualquer construção nas colônias é questão primeira. Quando um corpo esvai-se em hemorragia, é preciso conter a hemorragia antes de poder tratar qualquer doença. Ou o paciente morre, e não haverá o que salvar. Levar os palestinos a esse ponto é exatamente o objetivo de Netanyahu.
Por isso Netanyahu não aceitou a exigência de paralisar a construção de colônias. Aceitasse, sua coalizão de governo estaria esfacelada, e ele seria obrigado a renunciar; ou teria de construir outro governo, com o partido Kadima. A infortunada Tzipi Livni, que até hoje não achou lugar na oposição, sem dúvida agarraria furiosamente a oportunidade.
Netanyahu tentará usar o Barak israelense contra o Barack norte-americano. Com a ajuda de Ehud Barak, Netanyahu já está montando a cenografia de "demolir os núcleos avançados" [primeiras construções de novas colônias], para tentar distrair a atenção, enquanto prosseguem as construções nas colônias já existentes. É preciso esperar para ver se a encenação funciona, e se as lideranças dos judeus das colônias fazem o que o script prevê que façam. Um dia depois do regresso de Netanyahu, Barak demoliu pela sétima vez (!) Maoz Esther, um núcleo avançado de uma nova colônia, de sete barracões de madeira. Em algumas horas, os colonos voltaram e reergueram os barracões.
(O exército de Israel construiu no Negev uma vila árabe 'cenográfica', para treinamento. Essa semana, corria em Israel uma piada: o exército construíra também o núcleo avançado Maoz Esther, com soldados fantasiados de colonos. Sempre que os EUA exijam, eles derrubam tudo. Imediatamente depois, os soldados reconstroem tudo... até nova pressão dos EUA.)
Recusar-se a paralisar as construções nas colônias implica recusar-se a aceitar a solução dos Dois Estados. Netanyahu apenas brinca com slogans vazios. Falou sobre "dois povos vivendo em paz"... mas não fala do Estado palestino. Um de seus assessores chama de "infantilidade" a exigência de dois Estados.
Claro que não é infantilidade. Já está comprovado que negociações – cujas conclusões são sempre conhecidas de antemão – não levam a parte alguma. O acordo de Oslo entrou em colapso, por isso. Netanyahu já conta com o fracasso da próxima rodada de negociações.
Netanyahu ainda não apresentou seu plano de paz. Não porque não tenha plano, mas porque sabe que ninguém aceitará o plano que tem.
O plano de Netanyahu é: controle israelense total sobre todo o território entre o Mediterrâneo e o Jordão. Construção ilimitada de colônias em todo o território. Soberania limitada para alguns poucos enclaves de palestinos, super densamente povoados e cercados completamente por colônias de judeus. Jerusalém inteira, como território de Israel. E nenhum refugiado palestino jamais voltará a pisar na Palestina.
Ninguém comprará esse pacote, no planeta. Então, Netanyahu, vendedor profissional, está cuidando de embrulhá-lo em embalagem atraente.
Por exemplo: os palestinos "se autogovernarão". Mas... onde?! Onde estão as fronteiras? Netanyahu também já disse que os palestinos não terão controle sobre "o espaço aéreo" nem sobre "os postos de fronteira". Estado sem exército e sem controle nem sobre o espaço aéreo nem sobre as fronteiras... não é Estado; é um bantustão, como os que foram criados pelos racistas do regime de apartheid na África do Sul.
Não me surpreenderei se, em futuro próximo, Netanyahu começar a chamar essas reservas cercadas para nativos, de "Estado palestino".
Enquanto isso, ele tenta ganhar tempo e vai adiando o mais que possa as negociações de paz. Exige que os palestinos reconheçam Israel como "Estado do povo judeu", desejando e esperando que os palestinos rejeitem a ideia com as duas mãos. Os palestinos jamais reconhecerão Israel como "Estado judeu", porque esse reconhecimento implicaria desistir de sua exigência fundamental – a volta dos refugiados –, além de ser facada nas costas dos 1,5 milhão de palestinos que são cidadãos israelenses.
Netanyahu está pronto a aceitar a proposta de Obama, de envolver outros Estados muçulmanos no processo de paz – ideia que já foi repetidamente rejeitada por todos os governos israelenses até hoje. Será só mais um coelho que tirará da cartola, de tempos em tempos, para adiar tudo. Antes de que dúzias de Estados árabes e mais de 50 Estados muçulmanos resolvam aderir às 'negociações', passar-se-ão meses, talvez anos.
Netanyahu, é claro, pedirá a cada um deles um pagamento adiantado: a "normalização das relações com Israel" – o que dará em nada, porque nem o mundo árabe nem o mundo muçulmano jamais cederá seu principal trunfo, em troca de nada. Só contaram a Netanyahu. Mas é assim que Netanyahu trabalha. Ponto. Parágrafo.
E Obama? Obama tem algum novo plano de paz? Se se consideram suas declarações dos últimos dias, parece que tem.
Quando fala em "dois Estados para dois povos", praticamente aceita o plano de paz que já é consensual em todo o mundo: conforme os "parâmetros" apresentados por Bill Clinton em seus últimos dias na presidência; conforme o núcleo da proposta de paz da Arábia Saudita; e conforme os planos de paz do movimento israelense pela paz (minuta de acordo de paz do movimento Gush Shalom, a iniciativa de Genebra, a declaração Ayalon-Nusseibeh e outros.)
Em resumo: um Estado da Palestina, viável e soberano, ao lado de Israel, nos limites das fronteiras de antes de 1967 (com pequenas trocas negociadas de territórios); a demolição de todas as colônias que estejam fora do território israelense; Jerusalém Leste como capital da Palestina e Jerusalém Oeste como capital de Israel; solução aceitável para os dois lados interessados, para o problema dos refugiados; ligação segura entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza; e acordos que garantam a segurança dos dois Estados.
Ao mesmo tempo, em todo o mundo cresce o consenso de que o único modo de fazer a roda da paz voltar a andar é Obama divulgar seu plano de paz e conclamar os dois lados a aceitá-lo. Se for preciso, por referendos populares.
Obama pode fazer isso no discurso previsto para o Cairo, dentro de duas semanas, em sua primeira visita presidencial ao Oriente Médio. Não por acaso, a visita não começará em Israel – gesto praticamente sem precedentes, em se tratando de presidente dos EUA.
Para tanto, Obama tem de estar preparado para enfrentar o lobby israelense. Parece estar. O último presidente dos EUA a desafiar o lobby foi Dwight D. Eisenhower – que obrigou Israel a devolver o Sinai, imediatamente depois da guerra de 1956. “Ike” era tão popular, que o lobby não o assustava. Obama não é menos popular. Talvez o lobby também não o assuste.
Como ”Teddy” Roosevelt ensinou: quando se tem um porrete, não é preciso usá-lo. Com porrete à mão, pode-se falar macio.
Espero, sim, que Obama fale macio – mas com clareza e sem ambiguidades.
* URI AVNERY, 23/5/2009, "Calm voice, big stick", Gush Shalom [Grupo da Paz], reproduzido em http://usa.mediamonitors.net/content/view/full/62598. Tradução de Caia Fittipaldi, autorizada pelo autor.
**Uri Avnery é jornalista, membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelense).
Fonte: Carta Maior
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