sexta-feira, 22 de maio de 2009

A ministra tranquila

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(Crédito da foto: Fernando Bizzerra/BG Press)

Otimista, Dilma Rousseff silencia sobre a candidatura e reitera: 'não permitirei a espetacularização do meu tratamento'.

A Cynara Menezes e Sergio Lirio

Duas semanas depois de revelar ao Brasil ter extraído um nódulo na axila decorrente de um câncer linfático, a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, emociona-se ao se despedir dos jornalistas de CartaCapital. Seus olhos ficam marejados ao falar de Manuelzão e Miguilim, personagens do conterrâneo Guimarães Rosa, único livro a fazer Dilma, leitora compulsiva, chorar. Em nenhum outro momento da entrevista a ministra traiu suas emoções, embora estivesse um tanto abatida em virtude de uma forte gripe. Sobre o câncer, disse confiar na opinião dos médicos de que está curada e que as sessões de quimioterapia às quais já está se submetendo são preventivas.

Em pouco mais de uma hora de conversa, a chefe da Casa Civil outra vez evitou assumir a condição de pré-candidata à Presidência, falou do PAC, do episódio da ficha falsa publicada pela Folha de S.Paulo e da ditadura. Além, é claro, da doença, que virou tema de disputa política. O governo foi acusado de tentar tirar proveito eleitoral do anúncio. Provisoriamente instalada, por causa da reforma no Palácio do Planalto, em um prédio do Banco do Brasil, a ministra, nome preferido de Lula para concorrer à sua sucessão no próximo ano, fez questão de dizer que manterá a enfermidade longe da mídia. “Não vou permitir a espetacularização do meu tratamento”, garantiu.

CartaCapital: A senhora está curada?
Dilma Rousseff:
Minha médica diz que, rigorosamente falando, eu estou curada. É necessário fazer a quimioterapia, dizem, para ter certeza de que nem microscopicamente restou alguma coisa. Como na vida nada é cem por cento, os médicos não afirmaram a cura total, mas disseram que, no meu caso, seria muito difícil ter uma situação de não cura. Foi descoberto no início, estava encapsulado e não se propagou.

CC: Mas a senhora já começou a quimioterapia, não?
DR:
Todo mundo vai querer discutir isso, quantas eu fiz, quantas vou fazer. Ainda farei a segunda. Não acho apropriado tornar pública a minha quimioterapia. Esse processo todo vai ser a coisa mais difícil. Extrair o nódulo foi ambulatorial, então não senti nada, saí trabalhando, não doeu depois. Mas não vou permitir a espetacularização do meu tratamento. Além do mais, as drogas e os tratamentos estão muito mais sofisticados. Obviamente, haverá um dia que estarei pior, mais fragilizada, mas é um período curto, um, dois dias após a sessão. É interessante. Todo mundo que tem se aproximado de mim é para dizer que está rezando ou para contar que teve o problema, se tratou e está firme. A população hoje tem consciência de que é uma doença tratável, não é mais uma sentença, é simplesmente algo curável.

CC: Não é necessário esperar cinco anos para ter certeza de que não haverá reincidência nos casos de câncer linfático?
DR:
No meu caso são dois anos, me disseram.

CC: Quem vai acompanhar a senhora durante o tratamento?
DR:
A minha mãe vira e mexe está em Brasília. Ela já estava aqui, aliás, e resolveu ficar mais um tempo.

CC: Como ela reagiu?
DR:
Prefiro não falar. É óbvio que ela sentiu muito... Minha mãe tem 86 anos, ficou mais fragilizada do que eu. Sou eu que tenho de dizer: “Olha, não é nada”... Mãe sofre muito.

CC: E é assim mesmo que a senhora tem encarado, como se não fosse nada?
DR:
Não é que não seja nada. É uma doença, melhor seria não ter nenhuma, não é? Agora, tive muita sorte, descobri cedo. Por isso é importante as pessoas fazerem certos exames periódicos, preventivos. Fui fazer um exame do coração e detectou-se um gânglio um pouco maior. Ninguém na minha família teve algo semelhante.

CC: Por que a senhora resolveu tornar pública a doença?
DR:
É muito difícil, ocupando um cargo público, deixar de comunicar uma doença. É preciso avisar que se está doente, que superou, que tem de fazer um tratamento para impedir o retorno. Fazer isso não me incomodava demais. Não achava nenhuma violência comigo mesma comunicar a existência do tumor. Mas espetacularizar a minha doença é outra coisa. Pode ter certeza: não vou deixar um repórter entrar no meu quarto, sentar na minha cama e me ver fazendo a quimioterapia. Não farei isso.

CC: Mas se a senhora não fosse candidata, tornaria o assunto público?
DR:
Se eu não fosse ministra-chefe da Casa Civil não comunicaria para ninguém. Comuniquei por exercer um cargo público.

CC: E por ser pré-candidata à Presidência.
DR:
Você não me pega nem amarrada.

CC: A senhora não pensou em contar só para a família?
DR:
Não pensei, não. O mais difícil foi falar para a minha família, não é como ir na frente das câmeras. É muito doloroso contar para a sua mãe. Li um livro – já ganhei doze livros iguais (risos), aliás, tenho ganhado livros, medalhas, indicações de tratamento alternativo... – que tinha uma coisa interessante: o autor diz que a parte mais complicada é comunicar aos familiares. Realmente. Comecei achando ridículo eles (os médicos) terem toda aquela preocupação com uma coisa pequena. No caso das mulheres, imediatamente pensam em princípio tratar-se de câncer de mama. Fiz ressonância magnética de mama e não deu nada. Neste momento, não acreditava estar doente. Então eles quiseram extrair e fazer a biópsia. O diagnóstico não foi muito claro. Resolveram mandar para os Estados Unidos. E eu continuava a achar que não tinha nada. Na hora em que soube, não tive um baque grande. Como acreditar que se tem alguma coisa se você se sente perfeitamente bem?

CC: Quando o vice-presidente José Alencar ficou doente, pediu ao médico para ir além nos exames, procurar mais. Segundo Alencar, Minas Gerais é uma região montanhosa e atrás de morro tem morro. A senhora quis procurar mais coisa?
DR:
Eles têm um protocolo rigorosíssimo, não é a gente querer ou não. Te viram do avesso. Testam todas as possibilidades para ver as chances de o problema voltar. Fizeram comigo e nada mais foi encontrado.

CC: Por que a senhora considera invasivo falar sobre a quimioterapia?
DR:
É o momento da minha briga, meu espaço privado. É a hora em que vou para a guerra.

CC: A decisão de falar à imprensa foi puramente pessoal?
DR:
Foi uma coisa mais simples do que o relatado por vários órgãos de imprensa.

CC: O fato de a coletiva ocorrer no sábado tem a ver com a viagem do presidente Lula durante aquela semana?
DR:
Eu e o presidente conversamos no início. Depois o Franklin (Martins, ministro da Comunicação Social) também participou. O Franklin nunca foi contra como escreveram por aí.

CC: Em algum momento a senhora se chateou com o noticiário?
DR:
Em um determinado instante achei que estavam querendo espetacularizar. O pessoal exagerou um pouco, mas passou...

CC: Quando associaram à candidatura...
DR:
Não estou aqui para falar disso. Estou que nem passarinho, muda, caladinha (risos).

CC: Então falemos em teoria. No Chile, uma ex-militante contra a ditadura chegou ao poder. No Brasil, pode acontecer o mesmo?
DR:
Vejo sinais muito interessantes na América Latina. E nos Estados Unidos idem. Acabo de ler uma matéria muito interessante na Newsweek. O articulista fala que o Obama tem de se cuidar para não virar “um loiro de olhos azuis”. Foi mais fácil entenderem a simbologia do loiro de olho azul lá fora do que aqui, né? O pessoal teve certa dificuldade... A eleição do Lula, do Evo (Morales, na Bolívia), da Michelle (Bachelet, Chile), da Cristina (Kirchner, Argentina), do Hugo Chávez (Venezuela), marcam um processo de democratização muito comprometido com os povos dos países nos quais ocorre. É fácil entender a importância do Lula no Brasil. Talvez ele seja um dos maiores estadistas brasileiros. Há também o significado internacional. Mas não é possível menosprezar o que significa eleger o Evo Morales...

CC: Um índio em terra de índios.
DR:
Lembro de uma vez, durante um dos primeiros anos de governo. Era ministra de Minas e Energia e negociava com a Bolívia a questão do gás. Fui recebida por meu colega boliviano. Estávamos na véspera do Natal. Perguntei se ele iria passar a data na casa dele. Pensei que ele morasse em Santa Cruz. Ele respondeu que sim, que ia para casa... Em Miami. Penso: se sua vida pessoal e a de sua família não estão ligadas aos destinos do país, como deve ser difícil fazer parte de um governo, ser ministro.

CC: Não há compromisso.
DR:
Pertencer a um país é seu neto pertencer, seus parentes, sua família inteira. Não tenho nada contra alguém morar fora por um tempo, mas o ministro estava há mais de 30 anos longe. O Evo representa um compromisso real com a Bolívia, é a soberania dos países em questão. Então, todos os que citei representam um olhar para dentro de cada uma das nações. Por isso a gente pode se encontrar com eles e ter, mesmo com divergências, um ponto em comum fundamental. Todos estamos interessados, cada um do seu jeito, com propostas e programas, no desenvolvimento dos nossos povos. Para nós, além disso, significa romper com aquela política externa que achava importante apenas as relações bilaterais com os Estados Unidos e a Europa. Eventualmente o Japão, se sobrasse um tempinho. Lembro perfeitamente das críticas quando buscamos nos aproximar, primeiro, dos vizinhos e depois da África. Falavam em terceiro-mundismo, em perda de tempo. Até que a China adotou a mesma política externa e a Europa e os EUA também passaram a olhar para o mesmo rumo.

CC: Aliás, como o Brasil vê a China? Parceiro ou concorrente?
DR:
Será uma relação com complementaridades, grandes margens de cooperação, mas também conflitos. O Brasil e a China são os grandes países que emergirão desse processo do início do século XXI como economias diferenciadas.

CC: O Brasil anda muito celebrado no exterior. É um reconhecimento das nossas potencialidades ou simplesmente um certo “encantamento” com o Lula?
DR:
O Lula é encantador, sem sombra de dúvidas. E por que ele encanta? Muita gente no exterior percebe que o governo Lula conduz um projeto consistente para o Brasil. Há, é claro, a trajetória ímpar do presidente. Das condições em que ele saiu para presidir um país como o nosso. O título da biografia escrita pela Denise Paraná é preciso. O Lula é filho do Brasil. Mas o mundo também percebe os efeitos de uma política que combina estabilidade, crescimento, distribuição de renda e mobilidade social. Mostramos a grande capacidade de ir para a frente, de conseguir fazer uma nação para 190 milhões de cidadãos e não para uma minoria. O Bolsa Família é importante, mas essa mobilidade deu-se também por meio do acesso crescente ao crédito.

CC: Mas a crise fez o sistema de crédito travar. Não vivemos um retrocesso?
DR:
Tivéssemos seguido ao pé da letra o receituário liberal, estaríamos em situação infinitamente pior. Não privatizamos o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, o Banco da Amazônia, o Banco do Nordeste, o BNDES. E isso nos tem permitido intervir de forma mais definitiva para impedir os efeitos maiores da crise mundial. Não digo que temos o condão de encurtar todos os caminhos e resolver algumas questões relativas não só ao setor privado nacional, mas ao aperto internacional de crédito. Não fazemos milagre. Mas, no ambiente em que operamos, acho que conseguimos minimizar bastante os danos. O que mostram os números da Petrobras (divulgados no mesmo dia após o fechamento do mercado de ações)? Conseguimos segurar o investimento na comparação com o primeiro trimestre de 2008. Asseguramos um aumento de 40% nos investimentos. Foi o governo brasileiro que segurou. Sozinha, a Petrobras não aguentava não. E como? Transferindo dinheiro para o BNDES. Como fazemos o Minha Casa, Minha Vida com 34 bilhões? Uma parte é Fundo de Garantia, outra parte é Orçamento Geral da União. Fizemos uma política cíclica combinada com bancos, com a Petrobras, com todos os instrumentos à disposição.

CC: A impressão é que o governo Lula funciona melhor no segundo mandato. Por quê?
DR:
Tende-se a esquecer a situação do País quando o Lula assumiu em 2003. A inflação estava acima de dois dígitos. Tínhamos apenas 30 bilhões de dólares em reservas, dos quais 14 bilhões eram do FMI. A dívida líquida representava 52% do PIB. No setor elétrico, por exemplo, o mercado atacadista de energia fazia tudo, menos comprar e vender e pagar e receber. Funcionar como mercado ele não funcionava. Os problemas eram generalizados no setor privado. Tínhamos de estabilizar a situação. Havia a aposta de que não iríamos conseguir operar a economia, que não daríamos conta do recado.

CC: O primeiro governo parecia contar com nomes mais “políticos” e, agora, mais “técnicos”.
DR:
Não é uma colocação correta. Acho esse tipo de pensamento um resquício da ditadura.

CC: A senhora não é mais técnica do que seu antecessor?
DR:
Sinceramente, não sei o que fazia tecnicamente dentro da cadeia. Fiquei três anos no presídio Tiradentes. Lembro perfeitamente quando, no Brasil, era fundamental negar a política. Era importante identificar a política como algo sujo, indevido, corrupto. Não fosse assim, como as autoridades poderiam explicar a supressão de direitos? Principalmente daquelas que fundamentam a política, o direito de se manifestar, emitir opinião, se organizar, divergir, fazer greve. Foi necessário, então, usar “critérios técnicos” para dizer que era impossível distribuir renda antes de crescer o bolo. Ou por que se optou por construir um país para uma parcela pequena dos 90 milhões em ação. O resto vai para a favela, não tem escola.

CC: Essa identificação da política como algo sujo voltou a acontecer agora?
DR:
Por certas críticas a determinadas práticas do Parlamento... Isso não significa que defendo viagens ao exterior à custa do dinheiro público. Mas acho que tanto as práticas políticas quanto as empresariais precisam ser melhoradas. Os Madoffs da vida estão aí, aparecendo, e nem por isso todo mundo sai dizendo que os mercados são intrinsecamente corruptos.

CC: Como melhorar a política?
DR:
O governo enviou uma proposta de reforma ao Congresso. Vamos ver como anda.

CC: A senhora é a favor do financiamento público de campanha?
DR:
É importante haver, ao menos, transparência na questão do financiamento. O financiamento público seria uma forma de conseguir uma instituição mais virtuosa.

CC: O que o governo aprendeu com o episódio chamado de mensalão?
DR:
Primeiro, que desde a Revolução Francesa se estabeleceu que o ônus da prova cabe ao acusador e não ao acusado. Segundo, que, apesar de coisas incorretas e excessivas, usou-se a história do mensalão como arma contra o governo. Hoje o processo está na Justiça. Para ter uma noção se houve ou não o chamado mensalão, é preciso esperar o fim desse processo. Acho que muita gente será absolvida. Mas não vimos isso como um processo interno do governo.

CC: O PT deveria aceitar o Delúbio Soares (ex-tesoureiro) de volta?
DR:
Você não me pega nessa, não. Sobre esse assunto, não tenho o que dizer.

CC: Em entrevista recente a senhora fez uma crítica ao Henrique Meirelles. Disse que o Banco Central precisa se preocupar mais com o emprego...
DR:
É bom esclarecer. O repórter me perguntou como eu via os bancos centrais nessa conjuntura, de deflação no mundo. Tem BCs hoje gerindo taxas negativas ou próximas de zero. Portanto, a inflação não é um peso sobre a realidade. Assim sendo, os BCs neste momento têm outra variável em consideração, o emprego passa a ser crucial para os países. Essa era a discussão e não dizia respeito só ao BC brasileiro. Queriam que fizesse uma crítica ao Meirelles. E a forma como editaram não condiz com a resposta que dei.

CC: Se a senhora fosse presidente da República, mudaria a maneira de ação do BC?
DR:
O BC já mudou, como mudaram os bancos centrais no mundo. O Meirelles está mudando, não tem como não fazê-lo. Vai ser preciso uma política sistemática de redução de juros. Há uma vantagem nisso tudo. Pela primeira vez podemos reduzir os juros e manter a estabilidade.

CC: Por que o PAC não avança?
DR:
Após 1982, montamos uma máquina diabólica que impede o Estado de gastar. Cada vez que se recorria ao Fundo Monetário, ele mandava cortar investimentos, reduzir o consumo e não dar reajuste do salário mínimo. Quando a gente começou a fazer o PAC, em 2007, fazia mais de vinte anos que o Brasil não tinha um processo sistemático de investimentos. O PAC é infraestrutura, e não se faz infraestrutura apenas com o Orçamento Geral da União. É preciso financiamento. E compatível com o prazo de maturação dos projetos, de vinte, trinta anos. Vamos ser claros: financiamento no Brasil é com o BNDES. Nenhum banco privado tem linha de capital de giro. Quem segurou todo o financiamento de longo prazo foi o BNDES. A grande distorção, quando divulgam o PAC, é olhar apenas o Orçamento da União. Quando se faz uma rodovia, uma parte é financiamento. No caso de uma ferrovia também. Saneamento? No Orçamento, aparece como transferência de receita, pois a União não faz nem saneamento nem habitação, transfere para estados e municípios. O Ceará acaba de inaugurar o eixo das águas, uma interligação de bacias hidrográficas. É PAC, mas não aparece como. Por isso passamos a fazer balanços regionais do programa. A imprensa local pode acompanhar mais de perto, dizer se a obra existe, se tem problemas ou caminha de forma normal.

CC: A senhora tem a fama de durona, de cobrar auxiliares e até ministros, às vezes de forma ríspida...
DR:
Eles têm de te entregar o trabalho completo e com boa qualidade. A regra para mim ou para qualquer pessoa é a mesma. Se eu aceitar a regra, tenho de saber qual é a regra que aceito, no momento em que aceitei. A coisa mais difícil é dar satisfação para a equipe, porque ela tem mil olhos. O que eu não vejo o outro vê.

CC: Se a senhora for presidente vai querer uma Dilma na Casa Civil?
DR:
Como não vou falar sobre esse assunto, a pergunta está prejudicadíssima (risos).

CC: O assunto da falsa ficha da senhora publicada pela Folha de S. Paulo está encerrado? (NR: a Folha publicou uma suposta ficha da ministra produzida pelo Dops, sem comprovação de autenticidade, em que ela é acusada de terrorismo.)
DR:
Não, não estou satisfeita. Contratei laudo para comprovar se aquela ficha é falsa ou verdadeira. Vou enviar o resultado à direção da Folha e ver o que fazem... É um episódio lamentável. Primeiro pelo fato de colocarem na primeira página como se fosse uma ficha do Dops sem ter certeza da autenticidade. Se partem do princípio de que a autenticidade é uma questão menor, fica complicado para o leitor saber o que pode acreditar das diferentes notícias que o jornal publica. E não existe isso de não provar autenticidade. Por uma questão ética, o desmentido teria de ser na primeira página também.

CC: Como foi o contato?
DR:
Foi um processo longo. Várias vezes afirmaram para mim que a ficha era do Dops. Expliquei várias vezes que era impossível. Primeiro, o advogado perguntou ao pessoal do Dops se tinha a ficha lá. E eles disseram que não tinha nem aquela nem nada similar. Outra coisa era o formato das letras. No período em que estive presa não havia nem máquina elétrica nem computador. E as letras das máquinas de escrever convencionais são únicas, diferentes umas das outras. E na ficha todas têm o mesmo padrão. Em 1970, as organizações políticas no Brasil estavam derrotadas, haviam sido dizimadas. O processo estava sobre pleno controle da repressão. Os órgãos repressivos jamais fariam uma ficha falsa. Não tinha essa conversa fiada. Ficha falsa é coisa de derrotado, de quem perdeu com o fim da ditadura.

CC: A senhora argumentou isso?
DR:
Expliquei tudo ao senhor Melchiades (Filho, da sucursal de Brasília da Folha) e ao ombudsman. Aliás, atendi a repórter a pedido expresso do Melchiades. Escreveram embaixo da ficha, na legenda: “Ficha da ministra com crimes que ela não cometeu”. No calor dos acontecimentos, comportei-me de forma tranquila, mas hoje acho estarrecedor a atitude da Folha, o silêncio da Folha. Para mim é absolutamente injustificado. Mas se alguém supõe que a ditadura foi branda pode também não achar grave publicar uma ficha falsa.

CC: Como a senhora se sente ao ser chamada de terrorista?
DR:
Sou incômoda. Sabe por quê? Militei na resistência armada no Brasil, mas nunca pratiquei uma ação armada. Fiquei três anos na cadeia por crime de opinião. Entendo perfeitamente os que acham que nessa luta você tem de classificar para poder desqualificar. Eles negavam a existência de presos políticos no Brasil. Em 1970 parei de existir. Usou-se a denominação terrorista para esconder a existência de presos políticos. Os interrogatórios, a tortura, tinham de ser escondidos. A melhor forma era negar. Quem chama alguém de terrorista é por achar que a ditadura foi branda, que ela podia ser um pouquinho pior. Gente que não percebe que uma ditadura atinge a todos. Não existem meias medidas quando se fecha um país. Lembro perfeitamente da manhã em que escutei Apesar de Você pela primeira vez. Passou um tempo e disseram que o Chico (Buarque) havia feito a música para a mulher dele (mais tarde, aventou-se que a canção era direcionada ao ditador Emílio Garrastazu Médici)... Logo depois, ela não tocava mais. Censuraram. Era proibido fazer música. Greve? Era inconcebível. O direito de manifestação era o cúmulo da subversão. Lamento que as pessoas que viveram isso se esqueçam. Lamento a forma como tratam a história da ficha. Se é assim comigo, imagina as barbaridades que podem fazer com um anônimo. Vou tomar todas as providências para que isso não se repita.

CC: Há vários ex-combatentes da ditadura no governo. Por que o acesso a documentos do período continua tão limitado?
DR:
Vamos iniciar três grandes processos. Lançamos a lei de acesso à informação. Qualquer violação aos direitos humanos, a partir de agora, não poderá ser tachada de secreta ou ultrassecreta. Vai ser inaugurado ainda o portal memórias reveladas, lá no Arquivo Público Nacional, em parceria o Dops de São Paulo e de mais catorze estados. Com interligação digital. E vamos fazer uma chamada pública garantindo sigilo da identidade da pessoa que entregar arquivos privados. São avanços.

CC: O Brasil precisa ou não processar torturadores, a exemplo da Argentina e do Chile?
DR:
Cada país é diferente. No Brasil, respeitando cada instância, temos de encaminhar as coisas. Por enquanto, a questão está no Judiciário. Vamos esperar que ele se manifeste.

Fonte: Carta Capital

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