domingo, 31 de maio de 2009

Israel: “Racistas pela Democracia”*

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Israel: “Racistas pela Democracia”*

por Uri Avnery

QUE SORTE, para Israel, ter a extrema direita a postos, a zelar pela democracia!


Essa semana, o Parlamento israelense aprovou em primeira votação, por ampla maioria (47 a 34), projeto de lei que pune com pena de prisão todos que se atrevam a negar que Israel seja Estado judeu e Estado democrático.

O projeto de lei, apresentado pelo deputado Zevulun Orlev, do partido "Lar Judeu", e que já ultrapassou a primeira sessão de votação, ameaça com um ano de cadeia "quem negue a existência de Israel como Estado judeu e democrático", no caso de a negativa decorrer de ou provocar "ações de ódio, desprezo ou deslealdade contra o Estado, as instituições do governo ou as cortes de justiça".

É fácil prever os próximos desenvolvimentos. Ninguém pode esperar que 1,5 milhão de cidadãos árabes reconheçam Israel como Estado judeu e democrático; todos eles querem que Israel seja "o Estado de todos os seus cidadãos" – judeus, árabes e outros. Protestam também, com razão, porque Israel os discrimina e, portanto, não é Estado realmente democrático. Além disso, também há judeus que não querem que Israel seja definido como Estado judeu no qual os não-judeus tenham status de, no máximo, marginais tolerados.

As consequências são inevitáveis. Não haverá prisões suficientes para encarcerar todos os condenados pela prática do novo crime. Terá de haver campos de concentração em toda a Israel, para prender todos os negadores da democracia israelense.

Faltará polícia para policiar tantos criminosos. Terá de haver novas unidades policiais. Um novo serviço policial, de "Segurança Especial", abreviadamente, uma SS.

Esperemos que essas medidas bastem para preservar a democracia israelense. Se não bastarem, outras medidas terão de ser tomadas: revogar a cidadania dos negadores da democracia e deportá-los de Israel, com toda a esquerda israelense e outros inimigos da democracia dos judeus.

Depois da primeira votação, o projeto de lei passará agora a ser examinado pela Comissão de Legalidade do Parlamento, que o porá em forma para a segunda votação em plenário e, depois, para a terceira. Em algumas semanas ou poucos meses, será lei em Israel.

Deve-se considerar que o projeto de lei não cita explicitamente os árabes – apesar de claramente se referir a eles e de todos os deputados entenderem que, sim, se aplica aos árabes. O projeto também proíbe judeus de pregarem qualquer alteração na definição do Estado, ou a criação de um Estado binacional em toda a Palestina histórica, ou de disseminarem qualquer dessas ideias não-convencionadas.

Pode-se imaginar o que aconteceria se, nos EUA, um senador apresentasse projeto de lei que autorizasse o Estado a prender qualquer cidadão que propusesse alguma emenda à Constituição dos EUA.

O projeto que está agora em votação em Israel, não é anômalo, no atual panorama político em Israel.

O governo já aprovou em primeira votação lei que pune com três anos de prisão quem manifeste pesar pela Nakba, a Catástrofe palestina – de 1948, quando mais da metade da população da Palestina foi expulsa de seus lares e de suas terras.

Há quem espere que os cidadãos árabes festejem a Catástrofe palestina. Sim, houve um certo incômodo para os palestinos, mas foi só efeito colateral da fundação do Estado de Israel. O "Dia da Independência" do Estado Judeu e Democrático tem de encher todos de júbilo. Quem não manifeste júbilo será metido na cadeia por três anos. E pode haver mais, a caminho.

Esse projeto de lei já foi aprovado na Comissão Ministerial de Legislação, antes de chegar ao plenário do Parlamento. Dado que o governo de direita tem maioria no Parlamento, o projeto será aprovado quase automaticamente. (Haverá pequeno atraso, porque um ministro pediu vistas do projeto; então, agora, a Comissão Ministerial terá de re-aprovar o que já aprovou.)

Os que votaram a favor da nova lei esperam, talvez, que, no "Dia da Catástrofe", os árabes dancem nas ruas e metam bandeiras de Israel no topo das ruínas de cerca de 600 vilas árabes que foram apagadas do mapa e agradeçam a Alá, nas mesquitas, a boa sorte miraculosa que se abateu sobre eles.

TUDO ISSO me faz lembrar os anos 60s, quando a revista semanal que eu editava, Haolam Hazeh, publicou uma edição em árabe. Um dos jornalistas que trabalhava comigo era um jovem, Rashed Hussein, da vila de Musmus. Apesar de muito jovem, era bom poeta, com futuro promissor.

Rashed contou-me que, poucos anos antes, o governador militar da região onde vivia o havia chamado ao seu gabinete. Naquele tempo, todos os árabes em Israel estavam submetidos a um governo militar que controlava todos os campos da vida, das menores às maiores questões. Sem autorização, nenhum cidadão árabe podia sair de sua vila ou cidade, sequer por algumas horas, nem trabalhar como professor, nem comprar um trator, nem escavar um poço.

O governador recebeu Rashed com cordialidade, ofereceu-lhe café e elogiou seus poemas. Depois, foi direto ao ponto: faltava um mês para o "Dia da Independência", e o governador ofereceria uma grande recepção para os árabes "notáveis"; e queria que Rashed escrevesse um poema especialmente para a ocasião.

Rashed era jovem e orgulhoso, nacionalista apaixonado e valente. Disse ao governador militar que o "Dia da Independência" não era dia de alegria para ele, porque parentes seus haviam perdido casa e terras; e quase toda a terra da vila de Musmus havia sido expropriada.

Ao chegar de volta à vila, algumas horas depois, Rashed sentiu que todos o olhavam de modo estranho. Ao entrar em casa, teve um choque. Toda a família sentada no chão, as mulheres lamentando aos gritos, as crianças encolhidas de medo, num canto. Contou que seu primeiro pensamento foi que alguém morrera.

"O que fez você?!" – gritou uma das mulheres. "O que fez à nossa família?" "Que mal lhe fizemos nós, para merecer isso?!" – gritou outra. "Você destruiu a família! Você acabou conosco!"

O governador telefonara à família e contara que Rashed se recusara a cumprir seu dever em relação ao Estado. A ameaça, clara: dali em diante, toda a família expandida, das maiores da vila, passaria a figurar na lista negra do governo militar. Todos sabiam o que aquilo significava.

Rashed não conseguiu suportar os lamentos da família. Cedeu e escreveu o poema que o governador pedira. Mas algo quebrou-se, nele, para sempre. Alguns anos depois, emigrou para os EUA, conseguiu emprego no escritório da OLP e morreu tragicamente: queimado, em incêndio provocado por ele, que dormiu sem apagar o cigarro.

ESSES DIAS foram-se, para sempre. Participamos de imensas manifestações contra o regime militar, que foi finalmente abolido. Como deputado recém eleito ao Parlamento, tive o privilégio de votar para abolir o regime militar, em 1966.

A minoria árabe, assustada e subserviente, então cerca de 200 mil almas, recobrou a auto-estima. Nasceram e cresceram uma segunda, depois uma terceira geração. O orgulho nacional, destruído naquele momento, renasceu. Hoje, os árabes são comunidade autoconfiante, de 1,5 milhão de pessoas. O que não mudou foi a direita israelense. Não melhorou. Ao contrário: piorou.

Na cozinha do Parlamento de Israel (que em hebraico se diz "máfia") estão sendo cozinhadas outras leis. Uma delas estipula que quem solicite a cidadania israelense terá de declarar lealdade a um "Estado judeu, sionista e democrático"; e terá também de comprometer-se a prestar serviço militar, no próprio exército ou em organismos civis. O projeto foi proposto pelo deputado David Rotem do partido "Israel Nosso Lar" – o mesmo partido do presidente da Comissão Parlamentar de Legislação.

Até se admite a declaração de lealdade ao Estado e suas leis – que é meio para salvaguardar os direitos e o bem-estar dos cidadãos. Mas... jurar lealdade a um Estado "sionista"?

O sionismo é uma ideologia. Em Estados democráticos, prevê-se que a ideologia do Estado mude de tempos em tempos. Exigir juramento sionista como condição para obter a cidadania em Israel, seria como alguém, para receber a cidadania nos EUA, ser obrigado a jurar lealdade ao capitalismo; ou ter de jurar lealdade à direita, para ser cidadão italiano; ou à esquerda, para ser cidadão espanhol; ou ao catolicismo, para ser cidadão polonês; ou ter de jurar lealdade ao nacionalismo, para ser cidadão russo.

Não haverá problema direto para as dezenas de milhares de judeus ortodoxos israelenses que rejeitam o sionismo, porque nenhum judeu estará jamais submetido a essa lei. Todos os judeus recebem cidadania israelense automática, no instante em que pisam em Israel.

Outro projeto de lei que espera para ser votado no Comitê Ministerial propõe alteração na declaração que todos os deputados têm de fazer, antes de tomarem posse no Parlamento. Em vez de terem de jurar lealdade "ao Estado de Israel e suas leis", como se faz hoje, o deputado ou deputada eleita terá de jurar lealdade "ao Estado judeu, sionista e democrático de Israel, aos seus símbolos e seus valores". Essa exigência impedirá quase automaticamente a eleição de deputados árabes, porque, a partir do momento em que qualquer deputado árabe declare lealdade ao Estado sionista... nunca mais voltará a ser eleito.

A lei também criará problemas para os judeus ortodoxos eleitos ao Parlamento e que se recusem a jurar lealdade ao sionismo. Pela doutrina ortodoxa, os sionistas são pecadores depravados e a bandeira sionista é considerada bandeira imunda. Deus exilou os judeus da terra onde viviam por causa dos pecados dos judeus; e só Deus pode permitir que voltem.

Para os judeus ortodoxos, o sionismo tentou usurpar o trabalho do Messias e, aí, cometeu pecado imperdoável. Muitos rabinos ortodoxos escolheram permanecer na Europa, onde foram mortos pelos nazistas, para não cometer o pecado sionista de imigrar para a Palestina.

A fábrica de leis racistas, em que se converteu o parlamento de Israel, com forte odor fascista, trabalha hoje a pleno vapor. O odor fascista está impregnado na nova coalizão de governo.

No centro da coalizão está o partido Likud, formado em grande parte de racistas puros (perdoem o oxímoro). À sua direita, está o ultra-racista partido Shas; à sua direita, está o ultra-ultra racista partido de Lieberman, "Israel Nosso Lar"; à sua direita, está o ultra-ultra-ultra racista partido "Lar Judeu"; à sua direita, está o partido "União Nacional", ainda mais racista que todos os demais, e onde se esconde o partido Kahanista, já proscrito, e que vive com um pé na coalizão de governo e o outro pé na lua.

Todas essas facções racistas estão tentando ser mais racistas que as demais. Quando um partido apresenta um projeto racista de lei racista, o outro fica na obrigação de propor projeto ainda mais insano. E assim vamos.

Tudo isso é possível, porque Israel não tem Constituição. A competência da Suprema Corte para anular leis que contradigam as "leis básicas" não está fundada em Constituição escrita. Agora, os partidos da direita estão tentando quebrar a competência e a legitimidade também da Corte Suprema. Não por acaso, Avigdor Lieberman pediu – e ganhou – o ministério da Justiça e o ministério da Segurança Interna.

E agora, quando os governos de EUA e Israel entram em muito visível rota de colisão sobre as colônias ilegais, essa febre racista está infectando toda a coalizão de governo.

Quem se deita com o cachorro, não se surpreenda se acordar coberto de pulgas (e me perdoe o cachorro que por acaso me leia). Os que votaram para eleger esse governo e, mais ainda, os que se uniram a ele, não se surpreendam com as leis que, claramente, estão criando uma democracia racista, só para judeus.

O melhor nome para esses fanáticos religiosos é "Racistas pela Democracia."

* URI AVNERY, "Racists for democracy", em Gush Shalom [Grupo da Paz], na internet em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1243720987/.

Fonte: Vi o Mundo

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