segunda-feira, 1 de junho de 2009

Raquel Rolnik, relatora especial para o Direito à Moradia da ONU

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Entrevista

Foto: Henrique Camargo
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27/05/2009 - Ela é uma das maiores autoridades mundiais em moradia. Tanto que se tornou relatora especial para o Direito à Moradia da Organização das Nações Unidas (ONU). Sem meias palavras, Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista da Universidade de São Paulo (USP), condena a política habitacional do governo Lula. Para ela, o Ministério das Cidades, onde trabalhou de 2003 a 2007, age de forma esquizofrênica e só pensa em resultados rápidos e quantitativos. A qualidade, como no plano Minha Casa Minha Vida, foi totalmente descartada. “Corre-se o risco de se criar guetos de pobres, com violência e sem acesso ao trabalho e à educação”. A alternativa que ela defende é a criação de um modelo de gestão democrática para além dos requisitos formais. O objetivo é incorporar a totalidade dos habitantes e moradores em uma condição de cidadania.

Leia a seguir a entrevista que Raquel Rolnik concedeu ao Mercado Ético em seu laboratório na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

Mercado Ético - A senhora deixou o governo por causa de uma política habitacional que chamou de esquizofrênica. Isso melhorou ou piorou desde sua saída?

Raquel Rolnik - Piorou muito. O Ministério das Cidades não caminhou para uma participação democrática, política e popular. O que cresceu foi o pragmatismo de resultados rápidos. Por um lado isso é bom, porque é muito importante ver resultados concretos nessa área. Mas isso não pode vir em detrimento à constituição de um novo modelo de desenvolvimento urbano. Acabamos por ter mais do mesmo.

A grande questão é o enfrentamento e a ruptura do paradigma e do modelo de desenvolvimento, que são excludentes e reproduzem a concentração de renda e poder. Também corresponde a uma concentração de processos decisórios. Toda trajetória de desenvolvimento urbano visa construir a possibilidade da gestão democrática. E uma democracia para além dos requisitos formais, cujo objetivo é incorporar a totalidade dos habitantes e moradores em uma condição de cidadania.

Um dos pilares do movimento de reforma urbana no Brasil é a ampliação da participação direta do povo nos processos decisórios. Isso pode ser feito por meio de conselhos, conferências e processos de pactuação na esfera pública. A discussão toda é incorporar todos de forma organizada e descentralizada.

ME - Como se faz isso?

RR - Existem mil maneiras. Dá para usar ferramentas inovadoras, como a internet. Também dá para desenvolver campanhas públicas de esclarecimento. Mas os processos decisórios dentro das cidades são muito restritos a um circuito onde apenas um setor da sociedade está permanentemente preparado para fazer uma interlocução. Por exemplo, na área de desenvolvimento urbano, o setor empresarial que fornece bens e serviços para a gestão pública, assim como o setor de incorporação e construção imobiliária, onde os negócios dependem muito das decisões políticas, tem fortíssima interlocução com o poder público. É algo permanente. Então, eles acabam tendo um poder e um peso nas decisões muito grande. Isso desequilibra o peso que o cidadão comum, que é morador da cidade e também tem sua vida dependente das decisões da política pública.

ME - A política brasileira é marcada por um populismo, em que é comum trocar “serviços” por votos. A senhora acredita que o mesmo ocorre no plano habitacional Minha Casa Minha Vida?

RR - Minha Casa Minha Vida tem outra natureza. É um programa que exerce uma função fundamental do Estado, que é subsidiar quem não tem acesso via mercado a um bem. Acho que os elementos mais complicados no pacote não são o de ter um resultado eleitoral, mas é o problema como ele se relaciona com a questão urbana como um todo. Se todo investimento para a baixa renda for considerado populismo, não vai haver mais nada para os pobres.

ME - Uma das grandes questões relacionadas ao Minha Casa Minha Vida é a qualidade das moradias. O governo vai construir casa boa para a população mais pobre?

RR - A primeira consideração que temos que fazer é definir o que é casa boa. Então, acho melhor definir isso como moradia adequada. O que é isso? Não é só a casa com parede, teto, banheiro com azulejo. A moradia adequada é um lugar a partir do qual o cidadão passa a ter satisfeitas as necessidades básicas e fundamentais de subsistência nas cidades com dignidade. Então, isso significa estar em um lugar que permita ter espaço público, lazer, escola, saúde, empregos e, também, que permita andar livremente e com segurança. A grande preocupação é a dimensão urbana do plano. No Minha Casa Minha Vida, essa dimensão é inexistente. É um aspecto simplesmente não trabalhado no sistema. E pode ser trabalhado. Deve ser trabalhado. Casa não é só o teto ou o produto em si.

ME - Há a possibilidade de que esse plano seja um tiro pela culatra e cause mais danos do que benefícios para as pessoas?

RR - A crítica não é no sentido de que o pacote vai piorar. Se uma pessoa que não tem casa e passa a ter uma, lógico que ela vai melhorar de vida. Mas com esse mesmo recurso, com essa mesma disposição e priorização, mas com outro componente e outra estratégia agregada, poderia haver mudanças muito significativas, que não ocorrerão. Corremos o risco de reproduzir o modelo já existente. Na época do BNH, foram construídas 1,5 milhão de moradias populares, como por exemplo, Cidade Tiradentes, Cidade de Deus. São guetos de não-cidades. De pobre com pobre. Tinham vários elementos possíveis, como trabalhar com empreendimentos com mistura de renda. O empreendedor poderia construir prédios com partes voltadas para diferentes rendas, mas dentro do mesmo lugar.

ME - Ainda dá tempo de modificar o programa?

RR - Acho que sim. Até porque não é fácil colocar o programa para andar. Tudo mostra que a parte que contempla a faixa da população de 0 a 3 (salários mínimos) está muito difícil. Não estão aparecendo projetos. Em primeiro lugar, a medida provisória que criou o programa (MP 459), está sendo debatida no Congresso. O Congresso Nacional não serve só para aprovar ou não. Serve também para aperfeiçoar. Também na própria discussão do programa, o governo pode mudar de rumo.

ME - A senhora diz que há ainda poucos projetos destinados para a faixa de 0 a 3 salários-mínimos. Mas é aí que está o maior déficit habitacional.

RR - A maior parte da demanda está aí mesmo. Em segundo lugar vem de 3 a 5, que provavelmente vai conseguir entrar no programa por conta do subsídio. Mas o problema maior é o de 0 a 3, que são as pessoas que estão nas favelas, nas ruas, quem não têm renda. É muito complicado. Com um modelo único como esse, que é o modelo da casa própria, é muito difícil viabilizar que alguém com renda zero seja proprietária de um bem de 50 mil reais.

ME - E com relação ao ponto de vista do Minha Casa Minha Vida como forma de combate à crise?

RR - É uma solução tipicamente keynesiana. Ferramentas como essa já foram utilizadas na história, nos anos 30, no Plano Marshall, na reconstrução européia depois da guerra. De fato, investimentos públicos concentrados dinamizam a economia e me parece que, desse ponto de vista, o pacote, se conseguir construir as moradias nesses valores e nessa rapidez, vai ter um efeito anticíclico.

ME - As vendas de materiais de construção aumentaram em 25% depois do anúncio do plano. Esse já é um sinal?

RR - O que isso significa no Brasil? É a autoconstrução. É o cara que vai comprar o saco de cimento para melhorar a casa que ele mesmo construiu. É engraçado que a política pública não intervenha nesse processo, viabilizando terra urbanizada e bem localizada. Também poderia viabilizar assistência técnica para que esse monte de arquitetos e engenheiros soltos por aí possa trabalhar com os auto-construtores e, assim, ajudar a fazer projetos e orientar nas construções. O produto individual e o bairro serão de alta qualidade. Ao invés disso, inventa-se o processo da construtora, que não necessariamente vai chegar na mão de quem mais precisa.

O próprio processo de autoconstrução dinamizaria o mercado. Se de um lado não daria emprego para muitos pedreiros, essas moradias demandariam mais materiais de construção, que é uma indústria que gera muito emprego. Além do mais, esse processo também mobiliza um trabalho especializado: ou é um eletricista ou um trabalho hidráulico. Sempre gera emprego. Mas é um outro emprego. São pequenos empreiteiros e pequenos construtores. A reforma de imóveis é outro campo que também foi completamente ignorada.

ME - Há um déficit habitacional de cerca de 7 milhões de imóveis no Brasil. Mas há 6,5 milhões de moradias vazias. É realmente necessário construir um milhão de casas?

RR - Essa é uma grande questão. Claro que essa conta não é matemática pura. O que há é uma sobreoferta para o mercado de classe média e alta e uma infraoferta para a baixa renda. Mas por que não trabalhar a reforma de um imóvel construído, reabilitando-o para a faixa de baixa renda? Principalmente nas áreas centrais, que já estão prontas e já têm água, esgoto, parque, escola, emprego e que estão vazias. Só na capital de São Paulo, o déficit é calculado em 200 mil moradias, mas há 400 mil unidades vazias. Para que parte dessas unidades possa entrar novamente no mercado é preciso uma política pública capaz de fazer isso.

ME - Há 34 bilhões de reais destinados para o Minha Casa Minha Vida. Nunca houve tanto dinheiro assim para projetos de moradia popular. Como é que fica essa relação de déficit habitacional, investimento público e o mercado, que representam interesses diferentes?

RR - Primeiramente, a motivação principal do pacote é a anticíclica. O déficit habitacional vem como segunda questão. É uma injeção de dinheiro, que levanta até mesmo a questão da sustentabilidade do projeto. A hora que você disponibiliza 34 bilhões para a construção, sem nenhuma intervenção em termos urbanísticos e fundiários, o que acontece e já está acontecendo é um aumento enorme no preço dos terrenos. O que eu tenho apontado é que muito provavelmente o subsídio vai parar no bolso do proprietário do terreno. Eu dou dois ou três meses para os empresários dizerem que não está dando mais para fazer casas de 60 e 70 mil (reais). Agora eles já estão dizendo que não dá para fazer de 50 mil. E não é porque a casa custa 50 mil reais. É porque a terra custa isso. Quer dizer que o nosso dinheiro foi diretamente para o bolso dos proprietários do terreno.

ME - Corre-se o risco de acontecer no Brasil algo como houve no mercado imobiliário americano?

RR - É um pouco diferente, porque a crise nos Estados Unidos foi causada somente por causa do crédito. No caso brasileiro, há o subsídio. Então haverá uma pressão nesse elemento. Quanto mais subsídio tiver, menos população vai ser atendida. E não é por conta de inadimplência, porque 50 reais dá para pagar. Mas será inviável produzir essas moradias.

ME - A senhora diz que dar ou financiar casa não é a única forma de resolver o déficit habitacional. No Reino Unido, por exemplo, o governo aluga ou oferece gratuitamente casas para a população de baixa renda. Esse modelo poderia funcionar no Brasil?

RR - Claro. As políticas de subsídio ao aluguel poderiam, inclusive, mobilizar o estoque construído. Se uma família não pode pagar o aluguel de 500 reais, mas pode pagar 100 ou 200, receberia um auxílio adicional. A gente tem que entender que direto à moradia não é sinônimo de casa própria. A propriedade e o programa de construção da casa própria são uma modalidade. Mas não são a totalidade. Existem muitas alternativas que, mesmo com menos recursos, poderiam garantir direito à moradia para mais gente. Enfrenta também a questão complicada de uma pessoa com renda de 300 reais mensais ter um bem de 50 mil reais. O que acontece? É obvio que se ela passar por qualquer problema e precisar de dinheiro vai vender o imóvel. Não sou contra isso. Mas ela vai ficar sem casa e sem alternativa.

ME - Ainda com relação ao Reino Unido, o governo iniciou uma caçada aos “ladrões de benefícios”, que são, por exemplo, pessoas que ganharam o direito à moradia gratuita ou subsidiada sem que realmente necessitem dele. Como ficaria essa situação no país em que tudo se resolve com o jeitinho?

RR - Iria acontecer a mesma coisa. Tem malandragem em tudo. No Minha Casa Minha Vida também. Você pega a casa, muda-se para a casa da namorada e vende o bem pelo dobro (do preço). Existem mil maneiras de desenvolver isso. Mas não acho que malandragem desclassifica o projeto e nem que não exista malandragem em nenhuma política pública. A grande questão é a transparência e controle social. Quanto mais a sociedade estiver organizada para acompanhar isso, menos malandragem vai acontecer.

ME - Até antes dessa crise global, o Brasil vivia uma época de razoável crescimento econômico. Tudo leva a crer que quando a Europa e os Estados Unidos resolverem seus problemas, o país vai voltar a crescer. A questão da moradia pode ser resolvida com o crescimento econômico?

RR - Hoje o que prevalece é uma idéia desenvolvimentista. Mas acho que o Planeta está vivendo uma crise séria. Acho que essa crise financeira não é só ela. Estamos vivendo uma crise civilizatória, no modelo de ocupação dos territórios, que se revelam na questão no aquecimento global e da crise da alimentação. É uma situação de limite que exige um novo modelo.

ME - As grandes cidades estão no centro da questão do aquecimento global. Como resolver isso?

RR - Acabar com a mobilidade sob pneus imediatamente, que consome energia e é a pior emissora de gás de efeito estufa. Tem que mudar a matriz de mobilidade e também construir cidades mais compactas. Por exemplo, Nova York e Los Angeles. Los Angeles é extensíssima e Nova York é compacta, mesmo tendo o mesmo número de habitantes. Para mim, parece que o modelo de Nova York é muito mais sustentável.

Por Henrique Andrade Camargo, do Mercado Ético

Fonte: Envolverde/Mercado Ético/Rede de Tecnologia Social

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