O Ministério Público move ação pelo fim das patentes pipeline, que impedem a produção de centenas de genéricos no Brasil.
Por Luana Lila
Depois de mais de dez anos da aprovação da lei que regula as patentes no Brasil, o Ministério Público Federal (MPF), a pedido da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip) e da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar), entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade contra dois artigos da Lei de Propriedade Intelectual, aprovada em 1996. Os artigos preveem as chamadas patentes de revalidação, ou patentes pipelines, aquelas que foram aprovadas no Brasil depois de já terem sido previamente reconhecidas em outros países.
As patentes representam a propriedade sobre determinado invento tecnológico e garantem o monopólio da sua produção e comercialização por um período de vinte anos. Ao ser promulgada, a Lei de Patentes permitiu que patentes antigas fossem reconhecidas no País. Durante o período de maio de 1996 a maio de 1997, 1.182 pedidos de patentes pipelines foram depositados no Brasil, incluindo medicamentos essenciais para portadores do vírus da Aids.
Quando uma patente é depositada em qualquer país do mundo, ela tem o prazo de um ano para ser solicitada também em outros países. Depois desse prazo, se não solicitada, ela cai em domínio público, ou seja, sua tecnologia pode ser apropriada por qualquer um que tenha interesse na produção ou desenvolvimento dessa invenção. É assim que surgem os medicamentos genéricos, por exemplo.
A organização humanitária Médicos Sem Fronteiras monitora os preços dos medicamentos genéricos e identificou que, de 2000 a 2008, houve uma diminuição no preço da combinação de primeira linha utilizada no tratamento do HIV/Aids de mais de 10 mil dólares para 87 dólares por paciente por ano, graças à concorrência de medicamentos que possuem versões genéricas.
Segundo Gabriela Chaves, representante do Brasil na Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais, “mais patentes não trouxeram ao setor farmacêutico melhores medicamentos, ao contrário, geraram um monopólio em que as indústrias farmacêuticas podem sozinhas se beneficiar de um mercado em que não têm competidores”. A organização acredita que, se o mecanismo pipeline não tivesse sido incorporado à legislação brasileira, diversos remédios que atualmente consomem grande parcela do Orçamento do sistema público de saúde, como os antirretrovirais, referentes ao tratamento do HIV, poderiam ter sido comprados em suas versões genéricas a um preço muito menor.
É por isso que o Grupo de Trabalho sobre a Propriedade Intelectual (GTPI) propôs a ação de inconstitucionalidade à Procuradoria-Geral da República. Como explica Denis Barbosa, advogado e professor de propriedade intelectual da PUC-RJ, “o entendimento é de que aquilo que está em domínio público não pode ser extraído por força de lei porque a Constituição protege, em relação às tecnologias, apenas aquilo que é novo”.
Assim também pensa a gerente-executiva da Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais (Alanac), Fernanda Perrone: “A pipeline seria uma forma de expropriar um bem comum do povo sem qualquer respaldo constitucional, uma vez que as patentes já se encontram em domínio público no Brasil, o que é irreversível e contraria a política de oferecer remédios genéricos e similares a preços reduzidos, o que os tornaria mais acessíveis à população”.
Jorge Raimundo, presidente do Conselho Consultivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) não concorda. Para ele, os artigos não são inconstitucionais. “Quando a Lei de Propriedade Intelectual foi promulgada, o Brasil tinha ficado 51 anos sem patentes para medicamentos e, por isso, entendeu por bem colocar na lei esses dois artigos”, diz Raimundo. Segundo ele, àquela época, o País só tinha a ganhar com esses mecanismos, pois a contrapartida em reconhecer as patentes era o interesse de trazer para os pacientes brasileiros o tratamento a curto prazo. “Nenhum laboratório brasileiro na ocasião tinha condições de produzir qualquer um daqueles medicamentos. O Brasil deu um salto de qualidade na saúde naquele período porque passou a ter os mesmos medicamentos que a Europa e os Estados Unidos tinham, lançados quase simultaneamente.”
O preço, porém, talvez tenha sido muito caro, já que o monopólio de vinte anos concedido a uma única empresa não só atrasou o desenvolvimento da indústria farmacêutica brasileira como impediu a compra de genéricos de outros países. Renata Reis, da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abiaids), afirma que as consequências das patentes pipelines para o programa nacional de combate ao HIV foram enormes: “A grande base da resposta brasileira à epidemia de Aids nos anos 90 foi a capacidade nacional de produzir medicamentos genéricos para combater o vírus, mas, a partir do momento que o Brasil reconheceu patentes para medicamentos, essa política industrial de produção local foi abortada completamente”.
Um estudo da pesquisadora Lia Hasenclever, do Instituto de Economia da UFRJ, comparou os preços pagos pelo governo brasileiro, entre 2001 e 2007, para os cinco medicamentos antirretrovirais, utilizados no tratamento da Aids, com os preços dos mesmos comercializados internacionalmente. O resultado foi que o Brasil gastou 420 milhões de dólares a mais, a partir da comparação com os preços mínimos da Organização Mundial da Saúde, e 519 milhões de dólares a mais, comparando com preços mínimos da organização Médicos sem Fronteiras.
Um exemplo emblemático da dificuldade que o Brasil encontra em relação aos antirretrovirais é o medicamento Efavirenz, cuja patente pipeline, de 1992, era propriedade da empresa multinacional Merck Sharp & Dohme. Utilizado por 87 mil brasileiros, o medicamento foi o único sobre o qual foi decretada a licença compulsória, em 2007, popularmente conhecida como quebra de patente.
Segundo dados do Ministério da Saúde, o menor preço que a Merck Sharp & Dohme vendeu o medicamento foi a 1,59 dólar o comprimido. Depois que o Brasil decretou a licença compulsória, passou a comprar da Índia uma versão genérica a 45 centavos de dólar o comprimido e, hoje, o medicamento é produzido no Brasil pela Fiocruz a 60 centavos de dólar. A economia, em dois anos, foi de cerca de 60 milhões de dólares.
Fonte: Carta Capital
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