quarta-feira, 24 de junho de 2009

Terras endurecidas

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A vitória de Ahmadinejad é lamentável, mas provavelmente autêntica. Assim como a de Netanyahu.

Por Antonio Luiz M.C.Costa

Houve fraude na eleição iraniana de 12 de junho? É impossível afirmar. Votação e apuração foram pouco transparentes, dando margem à manipulação, mas as pesquisas mais confiáveis indicavam que o engenheiro e atual presidente Mahmoud Ahmadinejad venceria, mesmo perdendo a capital para o arquiteto e artista plástico Mir-Hossein Mussavi.

Não foi permitido a representantes dos candidatos fiscalizar a votação ou a contagem. O comitê de acompanhamento da apuração dos dois candidatos reformistas, Mussavi e o aiatolá Mehdi Karubi, foi fechado pelas forças de segurança na noite da eleição. Houve 45 mil locais de votação, 14 mil dos quais “móveis”, usados em delegacias policiais e instalações militares, onde é impossível qualquer controle. Muitos eleitores, analfabetos, foram ajudados pelos mesários a preencher as cédulas e o voto é público, pois não há cabines.

Essas condições não são novas. Até onde se sabe, qualquer das nove eleições presidenciais desde a Revolução de 1979 poderia ter sido fraudada. No entanto, e apesar de o Conselho dos Guardiães restringir drasticamente a disputa e vetar todos os candidatos que não lhe pareçam apropriados (a maioria deles), não houve acusações de fraude massiva.

Foram eleições renhidas, mas os candidatos acreditavam no sistema. Mesmo considerados os limites impostos pela teocracia durante esses 30 anos, que reduzem a disputa a uma escolha entre diferentes gestores do mesmo sistema, o regime mostrou, na prática, mais democracia e participação popular do que a maioria dos aliados do Ocidente no mundo árabe, inclusive o Egito. As divergências entre os aiatolás, que não são um grupo monolítico, eram a garantia de um processo relativamente equilibrado.

Mas, desta vez, algo deu errado. Por um lado, Mussavi, depois de uma campanha entusiástica e com ampla cobertura da imprensa ocidental, proclamou vitória no primeiro turno, antes mesmo de se iniciar a contagem. Por outro, o Ministério do Interior e a agência oficial de notícias anunciaram uma vitória esmagadora de Mahmoud Ahmadinejad 90 minutos depois do fechamento das urnas, quando apenas 20% dos votos estavam contados.

O resultado oficial deu 62,63% para Ahmadinejad, 33,75% para Mussavi, 1,73% para o conservador (menos belicoso que Ahmadinejad) Mohsen Rezai e 0,85% para Karubi. O líder supremo, Ali Khamenei, tinha três dias para chancelar o resultado, mas o fez imediatamente, sem ouvir a oposição.

Conforme advertiu na revista Time o analista Robert Baer (ex-agente da CIA no Oriente Médio e autor dos livros See No Evil e Sleeping With the Devil, que inspiraram o filme Syriana), seria, porém, apressado concluir que a vitória de Ahmadinejad foi forjada:

– A maioria das manifestações e dos distúrbios que vi nas notícias acontece na zona norte de Teerã, em torno da universidade, em lugares públicos como a Praça Azadi. São, na maior parte, áreas onde vivem os mais educados e bem de vida, a classe média liberal do Irã. Ainda não vi fotos da zona sul nem de outras favelas e bairros pobres. Antes de nos fixarmos na narrativa de que a linha-dura tomou o poder com um golpe de Estado ilegítimo, é preciso considerar seriamente a possibilidade de o povo ter sido conquistado pela linha-dura. Uma das poucas pesquisas confiáveis, ocidentais, deu a vitória a Ahmadinejad por porcentagens maiores que os 63% que realmente recebeu. A pesquisa até previu que Mussavi perderia em sua cidade natal de Tabriz, um resultado que muitos céticos consideraram uma evidência clara de fraude. A pesquisa foi feita em todo o Irã, não apenas nas partes prósperas da capital.

A pesquisa a que se refere Baer foi realizada pelas organizações Terror Free Tomorrow e New America Foundation, ambas estadunidenses e insuspeitas de simpatia pelos aiatolás – a primeira inclui John McCain, a segunda outros notórios republicanos, como Francis Fukuyama e o jornalista Fareed Zakaria. Entre 11 e 20 de maio, 1.001 entrevistas em 30 províncias indicaram 34% de apoio para Ahmadinejad, 14% para Mussavi, 2% para Karubi e 1% para Rezai, com margem de erro de 3%. Outros 27% se disseram indecisos, 15% não responderam e 7% disseram não apoiar ninguém (e presumivelmente não votaram). Ou seja, Ahmadinejad tinha dois terços (67%) dos votos dos eleitores decididos. Precisaria de 30% dos indecisos e indeclarados para vencer no primeiro turno, 58% para o resultado oficial.

Outras pesquisas existem, feitas por iranianos para todos os gostos. Um grupo intitulado Clube dos Jovens Jornalistas divulgou uma, na qual Ahmadinejad liderava, mas era seguido de perto por Karubi, seguido de Mussavi. Outra, do jornal Ayandeh (reformista) indicava que Mussavi tinha uma ligeira margem sobre Ahmadinejad em dez áreas urbanas. A emissora Irib (estatal) mostrava Mussavi na liderança na capital, enquanto partidários de Ahmadinejad lhe garantiam vitória esmagadora. Mas essas pesquisas, além de serem feitas por telefone – o que já impõe um viés –, não alcançam a massa rural. Apesar da rápida modernização e urbanização, o Censo de 2007 indicou que 38% da população mora em comunidades de menos de 500 habitantes, um quarto na Teerã metropolitana e 37% em cidades menores – e é mais ou menos consensual que a população rural apoia Ahmadinejad.

Blogs que apoiam a oposição alegam que mais de 60% dos “indecisos” foram caracterizados pelos pesquisadores como “de mentalidade reformista” e “teriam” de votar em algum dos reformistas. Pouco convincente. Os dois candidatos menores tinham uma intenção de voto marginal. Com toda probabilidade, os indecisos estavam entre Ahmadinejad e Mussavi e não há como prever como se dividiriam por uma postura “reformista” em questões pontuais. Assim como o fato de a maioria dos eleitores brasileiros ter sido caracterizada como de “mentalidade conservadora” por certas pesquisas de opinião não a levou a votar no candidato mais conservador. Também não há como afirmar que os que não quiseram responder seriam todos reformistas temerosos. Podiam ser conservadores hostis a pesquisadores letrados.

Muito menos plausíveis que os resultados proclamados pelo governo são os alegados pelo cineasta Mohsen Makhmalbaf (diretor de Caminho para Kandahar) e pela quadrinista Marjane Satrapi (autora de Persépolis) que em Bruxelas, dia 16 de junho, exibiram um suposto documento do Ministério do Interior iraniano, que, segundo Satrapi, “estabelece o número de votos para Mussavi, 19.075.723, para Karubi, 13.387.104, e para Ahmadinejad 5.698.000 – 12% das cédulas, não 62% do apoio anunciado”.

A informação teria sido vazada por Mohammed Asgari, responsável pela segurança da rede do Ministério do Interior, que, segundo “informação não confirmada” do jornal britânico Guardian, teria morrido em um suspeito acidente automobilístico no mesmo dia. Mas o conteúdo é pouco crível. Menos ainda a alegação de Mussavi de ter vencido com 60% dos votos. Seria preciso supor republicanos estadunidenses a conspirar em favor de Ahmadinejad. Nada disso depõe a favor da credibilidade da oposição.

Os resultados oficiais mostraram uma vitória de Mussavi no município de Teerã, como previam muitas pesquisas: 2.166.245 votos ante 1.809.855 de Ahmadinejad. Já este venceu na periferia metropolitana, por 2,01 milhões ante 1,56 milhão. Mussavi foi surpreendentemente derrotado na província natal, leste do Azerbaijão (teve 838 mil votos ante 1,1 milhão de Ahmadinejad, segundo os números oficiais), mas a pesquisa mais isenta havia apontado isso mesmo e ele ganhou no oeste do Azerbaijão por 657 mil a 624 mil. A mesma pesquisa também previu a votação “estranhamente” irrisória de Karubi (que teve 17% em 2005), provavelmente esvaziada pelo voto útil em Mussavi.

Ou seja, os resultados oficiais são compatíveis com os apontados pela pesquisa ocidental, os alegados pela oposição, não. Existe, por outro lado, a suspeita ocultação dos resultados por distrito, divulgados em outras ocasiões e que permitiriam uma análise mais fina de resultados e possíveis eleitores “fantasmas”. O Guardian cita o Ayandeh ao relatar que 200 locais de votação, segundo um “perito político” anônimo, tiveram mais de 95% de comparecimento, 30 mais de 100% e três cidadezinhas, 120% a 141%. Talvez a vitória de Ahmadinejad, mesmo real, tenha sido inflada para enfraquecer a oposição. Mas mesmo isso não é evidente. Os exemplos concretos apontados pouco mudariam o resultado.

O cientista político conservador George Friedman, dono da empresa de consultoria política Stratfor e autor de America’s Secret War, adverte:

– Há, sem dúvida, os que querem liberalizar o regime iraniano nas classes profissionais de Teerã e entre estudantes. Muitos falam inglês, o que os torna acessíveis a jornalistas de passagem, diplomatas e agentes da inteligência. São os que podem e querem falar aos ocidentais, mas lhes dão uma visão terrivelmente distorcida do país. Podem criar a impressão de uma incrível liberalização ao alcance da mão, mas não quando você descobre que os anglófonos que usam iPod não são exatamente a maioria. Alguns acusam Ahmadinejad de ter trapaceado e isso é certamente uma possibilidade, mas é difícil ver como poderia ter roubado a eleição por uma margem tão grande. Ele tem muitos inimigos poderosos que o denunciariam. Ahmadinejad tem ampla popularidade. Não fala sobre os assuntos que importam aos profissionais urbanos, economia e liberalização. Mas fala de três questões fundamentais para o resto do país: religião, corrupção e segurança nacional.

O resultado desse processo vulnerável a fraudes, mas dificilmente forjado na escala alegada pela oposição, rompeu o consenso sobre o sistema que sustentou a política iraniana nos últimos 30 anos. Mussavi, líder autorizado a concorrer pelos aiatolás, com mais de um terço dos votos e capaz de mobilizar a classe média em grandes comícios, tentou deslegitimar o regime.

Tenha ou não razão, é uma crise institucional: a unidade do regime foi quebrada mais drasticamente que nos protestos estudantis de julho de 1999, que, desencadeados pelo fechamento de um jornal reformista, não tiveram o apoio de personalidades políticas importantes.

A situação lembra, em muitos aspectos, a da Venezuela. O sistema eleitoral venezuelano é bem mais confiável e seu governo bem mais progressista, mas ainda que a fissura ideológica seja de natureza diferente, o conflito segue linhas análogas de estratificação social e cultural.

A divisão é profunda e difícil de remediar: centenas de milhares – na maioria jovens de classe média, sugerem as fotos – saíram às ruas para protestar em Teerã e algumas outras cidades importantes, tendo sido reprimidos com violência. Em 14 de junho, um manifestante morreu, vítima do tiro de um policial. No dia seguinte, pelo menos sete jovens foram abatidos e 50 feridos por franco-atiradores escondidos nas janelas e terraços, presumivelmente integrantes da milícia fundamentalista Basij. Os milicianos também invadiram dormitórios da Universidade de Teerã, destruíram computadores e protagonizaram atos de vandalismo, ameaçando repetir o terror de 1999, quando dezenas de estudantes desapareceram e mais de mil foram presos.

Pelo menos 200 manifestantes, inclusive lideranças políticas e intelectuais, foram presos por organizar as manifestações ou supostamente violar a lei ao delas participar, inclusive um irmão do ex-presidente reformista Mohammad Khatami. Para impedir a comunicação entre os rebeldes, a internet foi bloqueada e os sinais de celular cortados em grande parte de Teerã. Partidários do regime (em geral homens barbados e mulheres de negro, de aparência mais humilde), também saíram às ruas em grandes números, mobilizados pelo governo e suas organizações.

O Conselho dos Guardiães, nomeado em parte pelo líder supremo, em parte por seu chefe do Judiciário com aprovação do Parlamento, aceitou investigar 646 queixas pontuais da oposição e recontar parte dos votos, mas rejeitou a exigência de uma nova eleição. Não é de se esperar resultados muito diferentes.

Um governo com apoio popular – e também da Guarda Revolucionária e do Exército – pode se sustentar contra a oposição da maior parte da elite, como mostram vários exemplos latino-americanos. Do ponto de vista do relaxamento das tensões regionais e do bem-estar do povo iraniano, seria desejável que Ahmadinejad fosse enfraquecido ou substituído por um presidente mais conciliador, mas tudo indica que a oposição não atingiu seu objetivo.

Encorajada pela crise econômica, pela eleição de Barack Obama e pela presença desproporcional de oposicionistas na mídia e na internet e pelo entusiasmo de seus partidários nos comícios e manifestações, parece ter superestimado a própria força. Se insistir em deslegitimar a eleição, fará um jogo perigoso – e se isso der origem a sanções ocidentais, pode transformar seus líderes em traidores aos olhos do povo e fortalecer a linha-dura.

Quem, sem dúvida, sai fortalecida é a linha-dura em Israel. Antes das eleições, comentaristas da direita israelense já confessavam preferir a vitória de Ahmadinejad – se a oposição vencesse, isso desviaria o foco do programa nuclear iraniano, que também Mussavi prometia continuar.

Em 14 de junho, ciente da vitória de Ahmadinejad, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, respondeu à exigência de Washington para se posicionar em relação à “solução de dois Estados” com um discurso ambíguo: disse aceitar a possibilidade, mas com restrições e precondições que inviabilizam, na prática, a negociação. Além de ter de reconhecer o caráter “judeu” de Israel (incluindo seu direito de expulsar os não judeus, ou não permitir seu retorno), o Estado Palestino não poderia ter forças militares próprias nem fazer acordos com terceiros países, não teria soberania sobre seu espaço aéreo e teria de aceitar tropas israelenses em suas fronteiras.

Teria de abrir mão de Jerusalém e – condição inaceitável até para os EUA – aceitar a permanência e o “crescimento natural” dos assentamentos judeus na Cisjordânia, onde 400 mil colonos ocupam terras palestinas, usam redes de estradas e serviços que isolam as comunidades árabes (que também têm um crescimento natural) e consomem os aquíferos de uma região cada vez mais seca. O pronunciamento foi saudado pelos conservadores moderados do Kadima como “um passo na direção certa” em relação à anterior rejeição total da ideia, mas significa, na prática, negar a possibilidade de soberania palestina em um território definido e viável.

Dificilmente seria possível a Netanyahu ir além sem perder o apoio indispensável dos fundamentalistas religiosos e dos racistas de Avigdor Lieberman, se não das próprias bases. De qualquer forma, tem apoio de 57% da opinião pública – ou seja, de 70% da opinião judaica, pois os 20% de árabes israelenses lhe são contrários. É tão lamentável quanto o aparente apoio majoritário dos iranianos a Ahmadinejad e dos palestinos ao Hamas e dos xiitas libaneses ao Hezbollah e parte do mesmo problema. Só um milagre da diplomacia conseguirá evitar uma bem possível tragédia nuclear, que a médio prazo poderia vir a acontecer por iniciativa de qualquer dos lados.

Fonte: Carta Capital

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