por Uri Avnery*, em Gush Shalom (Grupo da Paz, Telavive)
Tradução: coletivo Todas as Vozes
Lembram-se de Dov Weisglass? Aquele, que disse que a paz teria de esperar até que os palestinos virassem finlandeses? Que falava de conservar em formol o processo de paz?
Weisglass será para sempre lembrado, menos pelo que disse do que por suas piscadelas, aquela coisa de falar e piscar um olho. Weisglass é o Rei da Piscadela.
Essa semana, Binyamin Netanyahu convocou-o para reunião urgente; precisava de curso intensivo de "piscar olho", expressão de gíria, do hebraico contemporâneo, para "enganação").
Enganação é o principal instrumento de trabalho dos empreiteiros israelenses que constroem colônias. A enganação-piscadela é a verdadeira mãe de todas as colônias. Os colonos enganam-piscam. O governo de Israel engana-pisca. Dizem não, e enganam-piscam. Enganam-piscam e constroem. Enganam-piscam e instalam água e luz. Enganam-piscam e mandam soldados para os postos avançados e arrancam palestinos de suas terras e arrancam oliveiras pelas raízes.
A piscadela de enganação também é o principal instrumento de trabalho da diplomacia israelense. Tudo se faz por piscadelas. Os EUA exigem o fim da construção de colônias e piscam. Israel concorda – e também pisca.
O problema é que não há registro impresso de piscadelas. Não há tecla de computador para marcar "piscadela de enganação". Então… Hillary Clinton pode, honesta e sinceramente, garantir que não há piscadelas de enganação em acordos assinados por EUA e Israel. Nem em qualquer memorando-registro das conversações. Não há registro de piscadelas de enganação em nenhum arquivo ou documento.
Pior: parece que a cultura afro-norte-americana não conhece a piscadela de enganação. Quando Netanyahu sentou-se na Casa Branca e pôs-se a piscar – Barack Obama não respondeu. Bibi piscava e piscava e piscava… e Obama não entendia. Piscou e piscou e piscou até ter cãibras no olho, e nada! Obama provavelmente pensou que Bibi tivesse um cacoete. Como pisca! Realmente embaraçoso.
O que fazer ante alguém que não é de piscadelas? Como, ó Deus, conseguir resposta de piscadela? Esse é o principal problema que o primeiro-ministro de Israel enfrenta hoje.
Amanhã, o primeiro-ministro discursará um "Grande Discurso". Não apenas grande, também muito "histórico". Será a apoteótica resposta ao discurso de Obama no Egito. Tudo está sendo encenado para que os dois discursos se pareçam. Obama falou na Universidade do Cairo? Netanyahu falará na Universidade Bar-Ilan, instituição religiosa da direita israelense, onde foi cevado o assassino de Yitzhak Rabin.
Mas as semelhanças ficam por aí. Haverá diferenças. Obama delineou os contornos de um Novo Oriente Médio? Netanyahu delineará os contornos do Velho, bem velho, Oriente Médio. Obama falou de um futuro de paz, cooperação e respeito mútuo? Netanyahu falará do passado de Holocausto, violência, ódio e medos.
O maior problema de Netanyahu é convencer o mundo de que o velho é novo. Converter os velhos e surrados clichês em novidade; convertê-los em palavra de ordem para amanhã. Mas… como fazê-lo sem usar piscadelas de enganação, ante alguém que não reage a piscadelas?
Como falar sobre "crescimento natural" das colônias, sem piscar? Como falar de Estado palestino, sem piscar? Como falar sobre apressar as negociações de paz com palestinos, sem piscadela de enganação?
Os mais famosos alfaiates foram convocados para ajudar a costurar as roupas novas do rei, dos ministros, dos deputados ao Parlamento israelense, de todos os professores-mágicos e, claro, também de Shimon Peres.
Todos acorreram, ao primeiro chamado: costurar roupa nova, calças de moda e gravata colorida – dessas que só os espertalhões veem.
Israel sempre apostou no Holocausto, como uma espécie de salvo-conduto para cometer qualquer crime. Era dizer "Holocausto" e a sala ficava em silêncio. Israel pôde oprimir os palestinos, roubar a terra deles, meter colônias na terra dos palestinos, espalhar postos de controle armado por toda parte, como caca de mosca. Israel bloqueou Gaza, fez o que quis. E quando os não-judeus protestavam, bastava gritar "Holocausto" – e os protestos calavam, congelados nos lábios dos não-judeus.
Agora… O que fará Israel, contra Obama, que denuncia o horror do Holocausto, que visita um campo de concentração e leva ao lado Elie Wiesel, "Mr. Holocaust", em pessoa… E que, mesmo assim, exige que pare a construção de colônias?
Não surpreende que Netanyahu esteja sofrendo o suplício da insônia, sem descanso para a alma. Netanyahu sem o Holocausto é como o Papa sem a cruz. Sem um "segundo Holocausto"… o que Netanyahu terá a dizer contra o Iran? O que dirá sobre o "Perigo Existencial" que impede Israel de evacuar tendas e barracões na Judeia e derrubar muros na Samaria?
Sem isso… o que restará para que Netanyahu recheie seu "Discurso Histórico"?
Terá de martelar prego quadrado em buraco redondo. Cada vez que diga "sim", leia-se "não". É o que sempre fizeram seus antecessores. Ehud Barak fez. Ariel Sharon fez. Ehud Olmert fez. Com uma diferença: diziam, faziam… e piscavam a piscadela de enganação; mas Netanyahu terá de falar sem piscar.
Terá de falar da solução dos Dois Estados… sem mencionar dois Estados. Terá de falar sobre parar de construir nas colônias… sem parar de construir nas colônias e com o trabalho (de construção nas colônias) continuando, sem parar, a pleno vapor.
No passado, sempre houve muitos truques para continuar a construção de colônias. "O cérebro judeu produz patentes" – diz uma canção popular muito conhecida. Novas colônias foram sempre construídas, sob a mentira de que seriam extensões da colônias existentes – mesmo que a 'extensão' esteja a dez, cem, duzentos, mil, dois mil metros de distância… desde que, da colônia, aviste-se a 'extensão'. Ou mentiu-se que a construção prosseguia, não em novas terras, mas nos limites das colônias já existentes… O que sempre foi quase-verdade, porque a colônia de Maaleh Adumin, por exemplo, é enorme, com área equivalente à de Telavive.
Talvez Netanyahu lembre a famosa carta de George W. Bush, em que manifesta opinião de que, em qualquer futuro acordo de paz, "centros populacionais já existentes" deve(ria)m ser anexados a Israel. Mas nem Bush definiu o que fossem "centros populacionais" ou demarcou fronteiras. Nem Bush jamais disse que Israel estaria autorizado a construir em terra dos palestinos antes de haver qualquer acordo. Antes de tudo, porque jamais teve autoridade para decidir essas questões.
Israel fala também do "crescimento natural". OK. Mulheres podem ser usadas como máquinas de fabricar crianças, de preferência gêmeos e trigêmeos. E qualquer um pode adotar filhos, de 1 a 101 anos. Claro, sempre que nasce um filho, é preciso construir outro quarto, outra casa, outra colônia.
(E quem fale em "crescimento natural" para os judeus, fala também de "crescimento não-natural" para os árabes. Os árabes não crescem naturalmente. São como uma doença: crescem não-naturalmente. Netanyahu talvez use também esse argumento.)
E quanto ao Estado da Palestina, que Obama está projetando?
A televisão israelense fez feio trabalho, essa semana: lembrou aos israelenses que Netanyahu disse há apenas seis anos: “Estado palestino – NÃO!”, porque "dizer sim a um Estado palestino significa dizer não ao Estado judeu".
Netanyahu parece crer que se trata apenas de como encenar as coisas. Talvez diga que, no passado, Israel já aceitou o Mapa do Caminho, que contém vestígios de um Estado palestino. É verdade que Israel 'aceitou'… mas com 14 emendas que, de fato, castraram o Mapa do Caminho e o converteram em papel sem qualquer significado. Netanyahu conta com que Obama dê-se por satisfeito.
Em resumo: ninguém precisa voltar a falar de Dois Estados, porque o assunto já foi mencionado no Mapa do Caminho (amaldiçoado seja! – como Netanyahu, se não diz, pensa), que Israel declarou morto há muito tempo, mas que agora finge que volta a considerar, e no qual há rápida menção a algo semelhante a Dois Estados. Então não se fala mais nisso; basta uma rápida referência de modo oblíquo (e piscadela).
Mas o que fazer se, apesar de tudo, Obama insiste para que Netanyahu pronuncie as palavras "Estado palestino", dos próprios lábios? Se não houver truque possível, para dizer sem dizer, Netanyahu talvez pronuncie as palavras… e mentalmente as exorcizará, como maldição; e acrescentará qualquer meia dúzia de adjetivos que detonarão o real significado das palavras. Exatamente como, antes dele, já fizeram Barak, Sharon e Olmert.
As declarações de Tzipi Livni e sua turma deram a impressão de que continuam todos empacados. Também ela parece crer que Israel poderá continuar a falar sobre Dois Estados, enquanto opera na direção oposta; falar de parar a construção de novas colônias, e continuar a construí-las. Dessa toca não virá qualquer mensagem nova.
A questão é que Obama não está interessado em dar nova formulação a velhos slogans. Parece estar exigindo que Israel aceite o princípio dos Dois Estados como base para ação concreta e rigorosa: chegar a um acordo para o estabelecimento de um Estado chamado Palestina, com capital em Jerusalém Leste; e fim das colônias e de toda a parafernália da ocupação.
Obama está exigindo negociações consistentes, de modo que em dois ou três anos – antes do fim de seu governo – haja verdadeira paz na Região, uma paz que realmente assegure a existência e a segurança do "Estado judeu de Israel" (expressão que George Mitchell inaugurou essa semana) e do Estado árabe da Palestina, lado a lado.
Tudo isso é parte de uma nova ordem de um novo Grande Oriente Médio, do Paquistão ao Marrocos, como parte de uma visão de mundo mais ampla.
Contra essa visão, de nada servem as piscadelas de enganação à moda Weisglass ou a ginástica verbal à moda Peres.
No discurso de amanhã, Netanyahu terá de escolher um dentre três caminhos: ou adota a via de uma colisão frontal com os EUA; ou promove mudança total na política do seu governo em Israel; ou renuncia.
Acabou a era das piscadelas de enganação.
* URI AVNERY, 13/6/2009, Obama won’t wink backFonte: Vi o Mundo
::
Nenhum comentário:
Postar um comentário