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por Miguel do RosárioAos fatos: pesquisa do Vox Populi, realizada na primeira semana de maio, estimou a aprovação positiva de Lula em 87%, contra 84% ao final de 2008. Certamente, haverá aqueles que duvidam da veracidade destes números. Em 2006, poucas semanas antes das eleições presidenciais, testemunhei uma cena curiosa, protagonizada por uma senhora notoriamente envenenada pela leitura de jornais, ou, para ser mais específico, pela leitura do jornal O Globo, já que este é atualmente o único jornal carioca voltado para a classe média. Ela afirmou que as pesquisas de intenção de voto, que apontavam vitória esmagadora de Lula sobre Geraldo Alckmin, eram manipuladas. Estranhei, naturalmente, aquela asserção, já que temos no Brasil diversas instituições de pesquisa cuja competência tem sido comprovada nos resultados eleitorais, e, no caso das pesquisas por ela mencionadas, havia quase um consenso de todas. Ela julgava que o governo tivesse comprado as pesquisas, e eu, por educação, até lhe concedi a verossimilhança de tal hipótese. Mas acreditar que TODAS as instituições de pesquisa eram compradas? Datafolha, Voxpopuli, Ibope - todas compradas? Esta senhora era uma professora com diversos doutorados e realmente chocou-me que ela aventasse uma teoria tão estapafúrdia e paranóica. Ela, no entanto, tinha outra crença ainda mais surpreendente: a de que as organizações Globo apoiavam Lula. Mas também compreendi logo: a fé que parte da classe média carioca deposita no poder global é tão imensa, que ela não concebe que um político possa manter a popularidade e ganhar eleições sem o apoio da famiglia Marinho.
Lembro esse episódio pela seguinte razão: a pesquisa do Vox Populi, divulgada ontem, apontando uma popularidade de 87% para o presidente Lula está em linha com diversas medições realizadas por outros institutos, como o Datafolha e o Ibope. Não é por outra razão que Obama afirmou, recentemente, que Lula seria o governante mais popular do planeta. Afinal, marcar uma popularidade de 87% no sétimo ano de mandato é um feito inédito na história da democracia.
Mas os números do Vox Populi trazem um outro dado ainda mais estarrecedor para a oposição política ao governo Lula. O governador de São Paulo, José Serra, o postulante mais bem posicionado nas pesquisas de intenção de voto para 2010, perdeu fôlego eleitoral e assistiu o seu capital murchar de 46% para 36%; e Dilma Roussef, a candidata preferida do presidente Lula, observou um salto nas pesquisas, de 9% para 19%, revelando que os brasileiros já começam a perceber que ela é a candidata que representa a permanência dos projetos de Lula.
Não vou me estender mais sobre a pesquisa, cuja íntegra pode ser examinada
aqui, mas gostaria de tecer alguns comentários sobre as razões da popularidade de Lula, de um lado, e o preconceito que ainda persiste, em outro.
Em primeiro lugar, eu tenho notado que a mídia ampliou a chantagem exercida sobre a sociedade brasileira. Aliás, essa é uma característica das democracias ocidentais, já comentada por Spengler, no clássico A Decadência do Ocidente. Ao final do livro, o historiador alemão já percebia, no início do século XX, que a imprensa tornara-se o grande trunfo em mãos dos espíritos antidemocráticos; com um pessimismo terrível, ele afirma que os cidadãos iriam deixar de pensar com suas próprias cabeças para seguir, obedientemente, as ordens deste novo Júlio César; deixar-se-iam manipular diariamente pelos meios de comunicação. Não seria mais necessário que ditadores os obrigassem, com leis severas e ameaças de tortura e morte, a defenderem tal ou qual guerra; iriam por conta própria, alegremente, após lerem dois ou três artigos no jornal.
É engraçado cotejar uma opinião dessas com tantas outras, ventiladas frequentemente pela imprensa privada, de que ela seria fundamental para o funcionamento da democracia.
Eu entendo, porém, que a imprensa teria funções importantes para o sistema democrático, que seriam: trazer informação e exercer a crítica; ocorre que ela não pratica nenhuma nem outra. No afã de defender suas posições ideológicas, não informa corretamente; e sua crítica peca pela parcialidade, pela leviandade, pela incompetência intelectual. Crítica é um termo oriundo do vocábulo grego Krités, que significava justiça.
Neste ponto, haverá sempre aqueles para os quais uma imprensa chapa-branca significaria um problema muito pior do que uma crítica injusta. Jornalista tem que ser oposição, dizem. Tem que criticar. Ora, esse argumento semelha conselho para que jogadores de futebol não se preocupem em vencer o adversário, mas simplesmente em fazer o gol. É claro que o jornalista deve sempre criticar. Mas tem que criticar a todos, não somente ao governo; tem que criticar a si mesmo, sua função e seu objetivo. E fazer crítica não é falar mal, mas analisar criteriosamente os assuntos, levantando aspectos positivos e negativos, e fazê-lo com justiça.
É infantil e, em algumas circunstâncias, safado, acreditar que o destino da imprensa é fazer oposição ao governo. Seu destino e função é aproximar o cidadão da verdade; torná-lo mais informado, mais culto, crítico. É uma missão simples, a da imprensa: dizer a verdade. Seria pernóstico e irritante se tentássemos complicar este conceito.
No entanto, sem querer complicar, é necessário que essa afirmação seja, no mínimo, dignificada por considerações filosóficas e políticas. Não quero ser ingênuo; entendo que a imprensa, em vários aspectos, não passa de agente servil de interesses publicitários. Mas ela, a si mesma, dá-se ares de pilar da democracia e tanta gente parece acreditar nisso que eu, mais uma vez por educação e prudência, concedo e dou crédito. Dou tanto crédito que ouso ir mais longe. Pode-se afirmar que a imprensa participa ativamente do esforço do homem moderno por uma visão de mundo mais universal, mais verdadeira, mais interessante, que lhe permita ampliar a sua liberdade interior e exterior, ser feliz, e tornar-se apto para consumir e produzir as obras de arte.
Ao conceder, todavia, tal importância à imprensa, exige-se-lhe igualmente uma responsabilidade maior. A imprensa necessita, portanto, de uma nova ética; o que em outros termos significa que precisa de novas leis, que lhe injetem ânimo e credibilidade. A crise da imprensa não se limita a questões tecnológicas e financeiras. Minhas desconfiança em relação ao Globo, por exemplo, origina-se em problemas muito mais graves do que simplesmente uma linha editorial conservadora. Aponto apenas um: a falta de transparência da seção de cartas. Por que eles publicam tais ou quais cartas e não outras? Quantas cartas o Globo recebeu sobre isso e aquilo? No site, rolam enquetes constantemente, e acho isso uma excelente iniciativa, mas as mesmas deveriam também ser geridas, por uma questão de princípios e bom senso, por entidades externas, idôneas, que atuariam como auditoras independentes da relação do público com as empresas.
A imprensa precisa, antes de tudo, formular uma concepção consistente, equilibrada e moderna, de si mesma. Qual a sua função? Qual o seu escopo? Qual o seu significado? Qual o papel que lhe cabe, no Brasil, neste momento histórico? Em sua
Introdução à História da Filosofia, Hegel explica que "tudo que somos, somo-lo por obra da história". O espírito da verdade não envelhece ou se corrompe, mas os raios de sol que se refletem em suas janelas mudam de cor ao longo dos anos, mudanças que o entendimento, para ampliar seu domínio sobre a verdade, devem acompanhar. A imprensa brasileira deveria lembrar do lema do oráculo de Delfos e buscar conhecer melhor a si mesma, abrigando em suas páginas reflexões corajosas e independentes sobre seus próprios dilemas. No mesmo livro, Hegel observa que "o patrimônio da razão autoconsciente que nos pertence, não surgiu sem preparação, nem cresceu só do solo atual, mas é característica de tal patrimônio o ser herança e, mais propriamente, resultado do trabalho de todas as gerações precedentes". Para entender o papel histórico que lhe cabe hoje, nossa imprensa precisa explicar, para seus leitores e para si mesma, porque agiu como agiu durante a ditadura.
O destino dos povos é o destino de seu pensamento. Para isso, cumpre contemplar o presente usando a experiência do passado. Porque, se o passado é uma abstração, e o presente a realidade orgânica do mundo, é o passado que abriga o espírito e lhe concede espaço para se expandir, visto que o presente é um instante fugaz, desprovido de memória ou espaço, e o futuro, bem, o futuro é um absurdo, um não-ser, a sombra de um desejo vago e indeciso.
E o pensamento se realiza nos debates públicos, sem que as pessoas sequer tenham consciência de que, a cada vez que postam um comentário num blog ou mandam uma cartinha para o jornal, elas aplicam um pouco de massa neste grande bolo metafísico da sociedade. Estão em jogo a moral, a liberdade, a ciência. A imprensa participa desse debate; de forma que é lamentável que ela sabote a si mesma e evite o confronto inevitável com seus próprios erros, com sua própria realidade. O episódio da ditabranda - que acaba de ganhar mais um artigo furibundo contra a Folha de São Paulo, o editorial da última edição do Jornal da Associação Brasileira de Imprensa (ABI),- revelou o abismo espiritual em que mergulharam muitos jornalistas e donos de jornais.
Fonte:
Óleo do Diabo::
Anotações dispersas sobre a imprensa
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