domingo, 31 de maio de 2009

Entre a meiguice e a crueldade

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A humilhação da pequena Maísa e a rápida reação mostram que há avanços no combate à baixaria.


por Phydia de Athayde

Enquanto o SBT provavelmente comemorava a manutenção da audiência de seu programa dominical, média de 8,52 pontos mesmo com a proibição da participação da garotinha Maísa, a Procuradoria da República assinava um protocolo de cooperação com a campanha Quem Financia a Baixaria É Contra a Cidadania. Um episódio não é consequência direta do outro, mas ambos estão ligados e são importantes para mostrar como a sociedade brasileira tem reagido ao que vem da televisão.

Antes de ter a licença para participar do programa de Silvio Santos cassada, Maísa foi vítima de escárnio, humilhação e assédio moral perpetrados por aquele a quem carinhosa e debochadamente chama de “patrão”.
O Ministério Público do Trabalho move uma ação civil pública contra o SBT com base na proibição legal do trabalho para menores de 14 anos (exceto quando aprendiz) e por dano moral coletivo. Também pede multa de 1 milhão de reais a título de indenização, a serem revertidos para o Fundo de Amparo ao Trabalhador.

“O glamour e a exposição em comunicação escamoteiam o trabalho infantil”, diz Carlos Ely, gerente de Mobilização da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi). Ele questiona os efeitos da superexposição no intelecto da criança, mas é contra medidas extremadas. “Não é para tirar todas as crianças da tevê. É preciso resguardar todos os cuidados possíveis.”

No caso Maísa, evidentemente, faltou cuidado. Tanto as gracinhas quanto as lágrimas e gritos de horror da menina espalharam-se pela internet, fazendo dela um fenômeno da convergência digital. Mas as reações ao episódio, da opinião pública e da Justiça, devem ser vistas dentro de um processo de combate à baixaria na tevê, que começou cerca de dez anos atrás. Nesse meio-tempo, a conquista da classificação indicativa também ajudou a tornar mais claros os limites da televisão.

“O País amadureceu. Ainda que de forma precária, saímos de uma paralisação em relação à mídia e conteúdo. Não concordo que a baixaria seja algo que vai e volta. Ela tem diminuído. Graças a mecanismos legais que não existem por boa vontade, mas por pressão social. Hoje não se aceita mais qualquer lixo”, diz Ricardo Moretzsohn, representante do Conselho Federal de Psicologia na coordenação da Campanha Contra a Baixaria. Formada em 2002, a iniciativa da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados conta com o apoio de dezenas de entidades civis e é uma referência.

Qualquer cidadão pode acessar o site e denunciar conteúdo impróprio na televisão. Anos atrás, o programa Tarde Quente, de João Kleber, ficou famoso por bater sucessivos recordes de denúncias, especialmente de apelo sexual e incitação à violência, e recebeu liminares da Justiça até ser tirado do ar em definitivo, em 2005, por determinação do Ministério Público Federal. Kleber foi dispensado e alegou sofrer censura. Ainda que tenha concorrência (em graus diferentes) de Ratinho, Márcia Goldsmith, Sérgio Mallandro, Gugu Liberato, Faustão, Datena e outros, João Kleber entra para a história da televisão brasileira como o rei da baixaria.

Mesmo sem Kleber, as denúncias à campanha continuaram e hoje, não à toa, acumulam-se mais de 30 mil delas, contabilizadas a cada semestre. A partir de agora, graças ao recém-assinado protocolo de cooperação, um grupo de procuradores receberá diretamente as denúncias, encurtando o caminho entre a reclamação e uma possível ação judicial, até porque nem todas as baixarias têm efeito viral como as protagonizadas por Maísa.

“Esse é apenas mais um exemplo concreto da irresponsabilidade das empresas que recebem concessões públicas e as utilizam em razão de seus interesses comerciais”, critica o professor da USP Laurindo Leal Filho, ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação, que engloba a TV Brasil. Ele lamenta a ausência de um órgão regulador independente, capaz de monitorar e coibir os excessos da televisão. “O Ministério Público é, hoje, o único canal para colocar limites no uso sem critério das concessões públicas.”

O mero questionamento de como as empresas que recebem o direito de difundir programação televisiva se comportam é uma novidade. Apenas em novembro do ano passado aconteceu, pela primeira vez, uma audiência pública no Congresso para expor irregularidades cometidas pelas concessionárias, da exploração da outorga ao conteúdo. “Descobrimos que hoje há muito mais entidades monitorando a mídia e reivindicando que o conteúdo se justifique na renovação da concessão”, diz Beatriz Barbosa, do Coletivo Intervozes, que defende a democratização da comunicação.

Outra novidade será a I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), marcada para dezembro, considerada emblemática para quem acompanha o tema. Na listagem de quais itens seriam discutidos (decididos pelo governo, empresas e sociedade civil), representantes das empresas de comunicação chegaram a pedir que o tema “conteúdo” ficasse de fora, o que foi negado. “O debate de conteúdo é a principal ponte, pois interessa a todos os movimentos sociais. O que se chamava baixaria eram, na verdade, as tevês, enquanto concessões públicas, violando direitos”, enxerga Beatriz.

O caso Maísa não terminou. O conselho tutelar de São José dos Campos (SP), onde a menina vive, a entrevistou e à família e avaliou que ela está bem, mas deve ter acompanhamento psicológico. Por sua vez, a Justiça avisa que, caso volte a passar por situações constrangedoras, o programa será reclassificado para maiores de 12 anos, exibido apenas após as 8 da noite.

“Ela não deixa de ser uma criança. É uma infância perdida e haverá um preço a ser pago, especialmente se ela for para o ostracismo”, alerta Moretzsohn. “Crianças não devem ser assediadas de maneira alguma, seja sexual, moral, por propaganda ou para alavancar audiência”, diz o psicólogo.

“No cenário internacional, vemos que a proteção dos direitos humanos é uma obrigação de toda a sociedade, inclusive das empresas de comunicação”, diz Guilherme Canela, coordenador do setor de comunicação da Unesco no Brasil. “Em relação à criança, a convenção da ONU e o ECA pregam que ela é um ser humano em situação especial de desenvolvimento. A preocupação com a comunicação social deve ser redobrada.”

Fonte: Carta Capital

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Um comentário:

infinitoamanajé disse...

Por isso internet livre e democrática é tão importante.

“A internet é uma rede de comunicação aberta e livre. Nela, podemos criar conteúdos, formatos e tecnologias sem a necessidade de autorização de nenhum governo ou corporação. A internet democratizou o acesso à informação e tem assegurado práticas colaborativas extremamente importantes para a diversidade cultural. A internet é a maior expressão da era da informação. Ela reduziu as barreiras de entrada para se comunicar e para se disseminar mensagens. E isto incomoda grandes grupos econômicos e de intermediários da cultura. Por isso, eles se juntam para retirar da internet as possibilidades de livre criação e de compartilhamento de bens culturais e de conhecimento”.

Sou grato!