sábado, 8 de março de 2008

Rigoberta a mulher mais globalizada do mundo

Rigoberta a mulher mais globalizada do mundo

Por Renato Rovai [Quarta-Feira, 20 de Fevereiro de 2008 às 17:37hs]

Desde muito cedo, Rigoberta Menchú, que em 1992 tornou-se prêmio Nobel da Paz, começou a colher café em latifúndios. Nada diferente das outras famílias do povoado onde residia na Guatemala. Lá, como ainda em muitos cantos do mundo, no interior do país o trabalho das crianças era fundamental para complementar a renda.
Quando chegou à adolescência, passou a participar das atividades da Igreja Católica e começou a discutir e se engajar nas lutas sociais. Nesse período fez de tudo. E de tudo fizeram com ela e sua família, que foi perseguida pela ditadura. Ainda jovem perdeu o pai, a mãe e o irmão. Todos assassinados.
Rigoberta tem história semelhante à de muitos brasileiros, bolivianos, paraguaios, chineses, tibetanos, africanos. Por isso se considera um símbolo da globalização.
No FSM 2 foi uma das mais destacadas presenças. Mediou seminário em que se discutiu a paz entre judeus e palestinos, participou de conferência com o argentino e também prêmio Nobel Adolfo Pérez Esquivel e concedeu depoimento relatando sua história pessoal, além de ter dado uma entrevista coletiva. Em todos esses momentos a reportagem da revista Fórum esteve presente. O que você vai ler a seguir é uma edição dessas participações. Uma entrevista diferente. E forte.


A mais globalizada do mundo
Eu me pus a pensar durante toda essa noite e cheguei à conclusão de que sou a mulher mais globalizada do mundo. Sou um perfeito exemplo da globalização. Nasci em uma aldeia onde não havia luz, água potável ou escola. Era uma comunidade bem pequena, onde eu precisava descer com meus pais para colher café, algodão e voltar ao altiplano, além das tantas vezes em que vivi as mazelas do impaludismo. Sabem o que é impaludismo? A pessoa fica louca de tanta febre.
Também pensei sobre a fome, porque a fome é feroz, é terrível. Não a fome que temos talvez antes do almoço, que nos faz comer rápido. Quando se vive a fome ao longo da vida é diferente. Mas eu não vivi com fome, não totalmente a fome, pois em minha terra havia flores, ervas, raízes para comer. Quase como no Brasil, onde há lugares belos. Sou globalizada também por isso.
Fui também analfabeta, ainda que alguns não acreditem, por muitos anos de minha vida, porque não havia escola em minha aldeia. Também fui dirigente camponesa. Por isso sei que os camponeses não lutam só porque têm ou deixam de ter um pedaço de terra, mas para que essa terra floresça e dê até o final de sua força. Por isso sou globalizada; porque conheço algo da vida camponesa.
Também sou parte de uma cultura milenar; falo um idioma que vocês desconhecem. Um idioma que pouca gente fala. Hoje, na verdade, temos no planeta mais de 5 mil idiomas perfeitamente construídos de acordo com uma visão da vida e do ambiente.
Também fui empregada doméstica e digo que exercer essa função não é ruim. Foi algo que me ensinou muito. Passei a cozinhar, a amar a cozinha, além de ter aprendido a lavar o banheiro, os corredores, tudo. Isso não é mal, o trabalho doméstico nunca me tornou indigna. Ainda melhor: é o trabalho mais humilde e honrado que pode ocorrer na vida de uma mulher como eu. E por isso também sou global.
Se eu lhes dissesse que não sei quantas vezes estive exposta a uma violação sexual, não acreditariam. E essa é a vida de milhares de mulheres que não têm uma lei que as proteja, uma associação que as defenda; simplesmente as move a coragem de seguir adiante, sem perder o rumo.
Também fui sobrevivente de genocídio. Que palavra é essa? Há décadas, as Nações Unidas aprovaram a convenção internacional que penaliza os delitos contra a humanidade. E estou falando de apenas vinte anos atrás, não de cinqüenta. Como vêem, ainda falta percorrer um longo caminho.
Quando falo de minha vida, não posso separá-la da história coletiva, pois a história coletiva é a história pessoal. Tive de ver um irmão ser levado, torturado e queimado vivo. Tive de ver meu pai queimado vivo. Minha mãe seqüestrada, torturada, assassinada e comida por animais. Além de outro irmão fuzilado. E eu pensei que seria só isso...

Guatemala O pequeno povoado da América Central em que nasci viveu um conflito armado de 36 anos. Em apenas uma década foram cometidos 646 massacres e sumiram do mapa 440 aldeias. Houve 200 mil vítimas com mortos, desaparecidos, torturados, executados em público, pessoas queimadas vivas. Mas, desses 200 mil, ainda há 50 mil desaparecidos. A maioria dessas pessoas permanece viva perante a lei. Esse horror que aconteceu na Guatemala afetou 83% da população maia e nada aconteceu. Mesmo com relatórios das Nações Unidas e de todas as entidades mais respeitáveis, estatísticas e dados oficiais dos crimes, a Bolsa de Nova York não caiu nenhum ponto. Mesmo com a CIA tendo muitos documentos guardados sobre a tragédia, a bolsa não caiu. Depois de tudo, apostamos na paz. Começaríamos a reconstruir nosso país, a reconstruir o tecido social. Mas, primeiro, deve-se fortalecer a verdade e a justiça, porque, sem ambas, em breve voltaremos a cometer genocídio. Formulamos uma série de iniciativas: a criação de uma nova polícia civil, estreitar a vigilância sobre os juízes para que não sejam corruptos e não aceitem chantagens, além de tratar de preparar tradutores em idiomas maias, para que traduzam nossa gente nos tribunais. Estávamos ocupados em construir uma democracia real e, do outro lado, conspiravam contra nós. E, ao final, os genocidas voltaram ao poder e a Bolsa de Valores de Nova York também não caiu. Quem é e onde está a comunidade internacional? Chego à conclusão de que os mortos também têm categorias. Neste caso, eram maias. E é isso que se sente também na Colômbia. Estive lá e o que se passa é inacreditável. Há tantas atrocidades que seria terrível ilustrá-las. É por isso que é tão importante nossa proposta de os próprios colombianos encontrarem uma solução, não dependerem de outros para apadrinhá-la.

Prêmio Nobel
Deram-me o Prêmio Nobel. O problema é que ninguém falou dos motivos desse prêmio nem o que se podia fazer dele. Iniciou-se então o trabalho de torná-lo o mais nobre possível e guiá-lo ao máximo a favor dos ideais que tenho e que devem ter todos os demais. Mas o pior é que, a partir disso, recebi 23 títulos de doutora honoris causa, diplomas que simplesmente estão aí. Reconheço o valor disso todos os dias. Sempre os admiro. Às vezes, os coloco expostos e os contemplo, mas não os posso empenhar. Ou seja, não podem ser levados a um banco para pedir empréstimo, e nem podem ser rifados, pois quem gostaria de ficar com um diploma meu? Talvez para uma coleção de arte. Mas não me é possível fazer um hospital, uma escola, nada. Nem sequer posso pagar minha passagem ao Fórum Social Mundial, onde queria ensinar algo para poder vir todos os anos.

Sonhos latinos
Penso que as pessoas têm uma missão social, devem lutar muito para conquistar os objetivos. Coube a mim a etapa da América Central e da América Latina, onde há muitos sonhadores. Frei Beto sonhador, Lula sonhador, além de outros na América Central, todos competentes trabalhadores sociais. Mas pouco a pouco esses sonhadores foram ficando debilitados porque, nos últimos anos, o populismo da América Latina tem sido muito forte, roubando nossos discursos. O imediatismo é muito grande, a fome também, e nossos víveres vêm diminuindo bastante. Por isso, pergunto: a que nos convoca esse Fórum Mundial? Convoca-nos a erguer uma voz ética. É uma promessa de dignidade. Também convoca-nos a ser interculturais, multiétnicos e multilíngües, unindo todos esses temas que não estiveram em nossa agenda nos últimos vinte anos do século passado.

Diversidade, utopia e humildade
Esse é o tema que nos faltou debater das vezes passadas: é a diversidade, o respeito à diversidade. Cruzar as fronteiras, também as culturais, em favor de nossas causas, de nossa resistência, de nossa dignidade. E em favor do global, não o global de uma Nova York, mas do nosso global. A favor das utopias.
Vivi uma época em que havia utopias, sonhos de mudanças, lutas ardentes, convicção. Muitos de nossos jovens que pude acompanhar quando tinham 22 ou 23 anos não esperavam pagamento para fazer a luta social. Não esperavam uma passagem para vir a uma manifestação; mas foi acabando essa convicção. A luta social deve ser uma causa, certeza não só de uma época. Pude, enfim, estar em toda essa situação, por isso tenho confiança de que, no futuro, nós, que nos opomos à impunidade, ao genocídio, à pobreza, à exclusão, à marginalização, ao racismo, poderemos fazer uma agenda comum. E isso deve começar por falar menos mal do outro, pois eu também ouvi, senti, cometi esse erro muitas vezes na minha vida. Digo: evitemos pensar que um movimento não é legítimo ou representativo se não for grande, ou que, por viver na capital não pode representar seu povo. Por isso a humildade é muito importante.

Povos indígenas
Freqüentemente, questionam-me “como os povos indígenas vão sobreviver à globalização?”; “será que sobrevivem para começar outro milênio?” Quase me propõem que nos rendamos antes de morrer. Quando cruzamos o novo milênio, eu disse “viva a vida, aí estão os povos, vocês duvidaram deles, pois não os entendiam”. Mas o pior é que tudo o que passou não é idéia de uma pessoa, é uma estratégia global; é estrutural. Não há injustiça que não seja estrutural, do mesmo modo que o genocídio foi e é estrutural. As invasões têm causas estruturais, razões geopolíticas, geoeconômicas e de dominação. Façamos, então, um trabalho coordenado.
Nós, povos indígenas, conseguimos uma presença significativa nos últimos dez ou vinte anos: rompemos barreiras, tanto nas Nações Unidas quanto nas negociações locais. Por isso, acaba de ser criado um fórum permanente nas Nações Unidas para os povos indígenas que, pela primeira vez na história da humanidade, seguramente está integrado por eles. Aliás, a ironia é que todos os estudos sobre indígenas são feitos por não-indígenas. Então, há uma esperança por termos pela primeira vez um órgão de alto nível integrado por indígenas. Resta saber quais os recursos postos a serviço desse órgão.

A paz
Nos vinte anos em que apoiei processos de paz, percebi que uma parte deles é mais ingênua do que podemos pensar. Representa a verdadeira vontade dos setores da população - refugiados, órfãos, feridos de guerra -, das pessoas de sonhar que isso termine. Outro setor também representado é o dos espertos. Eles sabem muito bem como manipular as estratégias, dentre elas a falta de vontade em reconhecer as causas reais dos conflitos. E o que se conhece em público não é o mesmo de uma mesa em que se conspiram grandes ou pequenos acordos. Entretanto, esses acordos têm repercussão para a história da humanidade e do povo.
Todos questionam o que entendemos por perdão. É de um perdão que precisamos aqui. Entre nós, muitos acabaram isolados dos processos e, supostamente, nossa missão havia terminado no momento em que acabou o conflito armado. Que bom se tomassem a frente os prefeitos dos municípios, as viúvas e a gente que teria de reconstruir o país, a gente de boa vontade. Não. Isso pesa em todos os processos. Por isso, sempre disse: se há uma contribuição a fazer ao processo de paz do mundo, é preciso considerar todos os passos pelos quais passou a Guatemala, para que não se cometam os mesmos erros. Porque se eles se repetem, estamos fazendo o jogo da guerra e nós não podemos fortalecê-la.
Sugeri um código de ética e de paz para um novo milênio, baseado no simples fato de que não pode haver paz sem justiça, não pode haver justiça sem eqüidade, não pode haver eqüidade sem democracia e não pode haver democracia sem o respeito à diversidade dos povos e das opiniões. A paz deve ser uma visão integral de todos os problemas e suas soluções.
O tema da paz foi reduzido a sinônimo de guerra. Fala-se da paz quando se instala um conflito; o que aconteceu com a educação, com a saúde, com a visão integral dos problemas da humanidade? Nós mesmos, às vezes, nos esquecemos da visão integral do mundo.

Guerra, mulheres e crianças
Estou muito firme em minha posição. Sou contra o terrorismo e a guerra. Não posso falar de uma guerra melhor que de outra. Creio que a violência gera violência, e as mais afetadas são as crianças e mulheres. Acabo de falar com especialistas em Afeganistão e constatei que 90% das vítimas do último conflito pertencem a essa parcela da população. E esse é um dado que tenho em meu coração. Tomara que o mundo também tome suas dores.

Terrorismo e ditadura
Quando falamos do terrorismo, permanentemente nos vem à cabeça enorme quantidade de preocupações. Primeiro porque sob a desculpa de “segurança de estado”, “terrorismo” ou “comunismo” foram aniquilados os melhores dirigentes do continente latino-americano nas décadas passadas. Cometeu-se genocídio na Guatemala, na Argentina, no Chile, e muita gente foi torturada pela “necessidade de combater o terrorismo”.

Mulheres afegãs
Há cinco ou seis anos denunciei e apoiei campanha sobre o tema. No entanto, essa campanha nunca transcendeu, nunca chegou aos melhores ou grandes meios internacionais. Só depois de existirem 4 milhões de refugiadas afegãs isso virou notícia. Porque nós, mulheres, só temos dignidade quando nos estão matando, ferindo, quando estão açoitando nosso coração. E isso é o que sempre digo: não permito que manipulem meus mortos como pretexto para matar ou ocultar outros problemas. Estou solidária com as mulheres afegãs: quero que sejam livres algum dia e consigam o lugar que merecem com dignidade e ética. Porém, se é uma campanha de sensacionalismo para justificar os atos violentos que acabam de ocorrer no Afeganistão, então não apóio.

O Fórum e o humano
Esse Fórum, representando mais de 130 países do planeta, é o único organismo que reúne mulheres, movimentos de indígenas e direitos humanos, partidos políticos etc. Aliás, quase todos os partidos políticos da América Latina estão aqui presentes. Também há a presença de jovens e, importante, existem na pauta de discussões os conflitos mais intensos, os que não são debatidos em outros lugares, como em Chiapas e na Palestina.
Creio que o Fórum é o lugar para fazer uma agenda viável e propositiva. Já não basta assinar dezenas de documentos por dia para que se condene o regime de Marrocos por impedir a liberdade dos irmãos e amigos do Saara Ocidental. Isso não é suficiente, as pessoas devem fazer um trabalho muito mais profissional, técnico. Juntemos nossos recursos, façamos uma aliança verdadeira pelos sonhos da América Latina e pelos sonhos dos pobres que querem ser livres. Porque nossa dignidade ainda não tem preço, mas, provavelmente, as terras já estão contabilizadas e já têm um preço posto pelo Banco Mundial. Provavelmente os rios têm um preço e em todas as madeiras do planeta já colocaram um preço. Mas há algo que nos salva. O ser humano não tem preço, não está à venda, e aí reside a importância da luta pela dignidade. É preciso pensar em nossa gente. Já faz muitos anos que pensamos nos grandes poderes, mas agora pensemos nessa gente. Quais são nossas potencialidades, nossas forças. É assim que pensam os povos indígenas, e é por isso que, apesar do genocídio, apesar do colonialismo permanente, apesar da fome extrema e do silêncio, apesar de tudo, vocês os encontram falando seu idioma e vivendo exatamente como querem. Se isso é nosso destino, nós, os povos pobres, devemos trabalhar da mesma maneira.

Tradução de Valentina Vettorazzo

por Renato Rovai - fonte: Revista Fórum


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