A degradação jornalística da revista Veja foi fruto de dois fenômenos simultâneos que sacudiram a mídia nos últimos anos: a mistura da cozinha com a copa (redação e comercial) e o afastamento dos princípios jornalísticos básicos.
Vamos analisar um processo de cada vez.
A copa e a cozinha
Os grupos de mídia sempre tiveram muitos interesses em jogo. Mas, para não contaminar as redações, se procurava tratar em âmbito das cúpulas das empresas. Sempre havia maneiras “técnicas” de vetar determinadas matérias que não interessavam, assim como conferir tratamento jornalístico a matérias de interesse da casa.
Como a avaliação é subjetiva e altamente hierarquizada, bastava o editor ou secretário de redação ou o diretor de redação alegar que a matéria não estava boa, para estabelecer-se um veto técnico – que faz parte dos usos e costumes de todas as redações.
Para administrar esse território delicado, as boas redações jamais prescindiram de comandantes fortes e competentes. Eram os avalistas do jornalismo perante a empresa e da empresa perante a redação. Eles não iam contra a lógica comercial, mas eram os radares, aqueles que informavam até onde se poderia avançar ou não no noticiário sem comprometer a credibilidade da publicação.
Apos a crise cambial de janeiro de 1999, o quadro começou a mudar drasticamente. Apertos financeiros levaram gradativamente muitas publicações a abrirem mão de cuidados básicos, não só permitindo a promiscuidade entre a copa e a cozinha (redação e comercial), mas também em manobras de mercado. Quanto às manobras de mercado, deixo apenas registrado, porque não será tema dessa série.
No início de 1999, Veja demonstrava claramente o que seriam os novos tempos. Em 10 de março de 1999, em pleno escândalo das “fitas do BNDES”, a revista recebeu material demonstrando que a Previ tinha assinado acordo com o banco Opportunity, de Daniel Dantas, mesmo tendo sido desaprovado por sua diretoria. A matéria foi feita pelo repórter Felipe Patury (clique aqui).
"No início de fevereiro, um diretor do fundo, Arlindo de Oliveira, mandou uma carta ao presidente da Previ. São três páginas, e o tom é de indignação, expresso em frases que se encerram com três pontos de exclamação. Na carta, o diretor relata que a diretoria da Previ, reunida em julho do ano passado, decidiu que não faria parceria com o Opportunity no leilão das teles tendo de pagar ao banco 7 milhões de reais por ano de "taxa de administração". A diretoria achou o valor descabido e decidiu só fazer o negócio se não tivesse de pagar a taxa. O estranho é que essa decisão foi ignorada. A Previ associou-se ao Opportunity na compra de três teles (Tele Centro Sul, Telemig Celular e Tele Norte Celular) e comprometeu-se a arcar com os 7 milhões de reais por ano, apesar da decisão contrária da diretoria.
Segundo a matéria, a Previ também havia entrado – sem autorização da diretoria – na operação de compra da Telemar que – na época – pensava-se que sairia para o Opportunity".
Na semana seguinte, o repórter conseguiu mais material das suas fontes. Chegou a preparar a matéria. Na edição seguinte, de 17 de março de 1999, a matéria não saiu publicada. Mas, pela primeira vez, o banco Opportunity – denunciado na edição anterior – bancou duas páginas de publicidade na revista.
Não batia. O Opportunity não é banco de varejo, não atua sequer no middle market. Não havia lembrança de publicidade dele nem mesmo em revistas especializadas – como a Exame. No dia 31 de março de 1999, mais duas páginas de publicidade do Opportunity.
Esse mesmo procedimento – em mão inversa – seria empregado nas duas edições em que Diogo Mainardi me atacou, em defesa de Daniel Dantas. Só que, nesses casos, a fatura foi mais alta: 6 páginas de publicidade da Telemig Celular e Amazônia Celular em cada edição, 12 ao todo. Também não se justificava tamanho investimento publicitário por parte de empresas que tinham atuação regional.
Qualquer manual de administração ensina que, quando a empresa passa a fugir do comportamento ético nas suas ações externas, tende a estimular o mesmo comportamento na sua estrutura de comando.
Aparentemente, na revista ocorreu um liberou geral.
Com escorregões cada vez mais freqüente, passou a se tornar difícil – mesmo para os leitores mais atilados – identificar o que eram falhas editoriais, o que era interesse da Abril e o que era interesse dos diretores da revista.
Havia um fator a mais a estimular a falta de controle: a desobediência completa dos princípios jornalísticos básicos. E aí se entra em um farto material sobre o mais completo compêndio de anti-jornalismo que a história moderna da mídia brasileira registrou: o estilo Veja de jornalismo.
Desde os anos 80, cada vez mais Veja se especializaria em “construir” matérias que assumiam vida quase independente dos fatos que deveriam respaldá-las. Definia-se previamente como “seria” a matéria. Cabia aos repórteres apenas buscar declarações que ajudassem a colocar aquele monte de suposições em pé.
O que era um estilo criticável, com o tempo, acabou tornando-se uma compulsão, como se a revista não mais precisasse dos fatos para compor suas reportagens. Ela se tornou uma ficção ampla, característica conhecida de qualquer jornalista iniciante
Ainda nos anos 80, o caso mais célebre foi o do “boimate” – criação de Eurípedes Alcântara, já mencionado em outro capítulo.
Mas, à medida que se entrava na era Tales Alvarenga-Eurípedes-Sabino, final dos anos 90 em diante, esse estilo ficcional passou a arrostar os limites da verossimilhança.
O primeiro filtro sobre uma matéria é avaliar se os fatos relatados são verossímeis. Se passar nesse teste básico, é que se irá conferir se, mesmo sendo verossímeis, também são verdadeiros.
Com o tempo, gradativamente o jornalismo de Veja deixou de passar sequer por esse filtro básico. Tornou-se cada vez maior a quantidade de matérias absurdas, sem nexo, sem conhecimento básico sobre economia, finanças, valores, relações de causalidade. E sobre jornalismo, enfim.
O modelo Veja de reportagem
Antes de análises de caso, vamos a uma pequena explicação sobre como é esse estilo Veja de reportagem, que se parece muito com essa brincadeira de desenhar juntando os pontos de uma página em branco.
1. Levantam-se alguns dados verdadeiros, mas irrelevantes ou que nada tenham a ver com o contexto da denúncia, mas que passem a sensação de fazerem parte de um todo maior. Ou de que o jornalista, de fato, acompanhou em detalhes o episódio narrado.
2. Depois juntam-se os pontos ao bel prazer do repórter. Cria-se um roteiro de filme, muitas vezes totalmente inverossímil, mas calçando-o em cima de alguns fatos supostamente verdadeiros.
3. Para “esquentar” a matéria ou se inventam frases que não fora pronunciadas ou se confere tratamento de escândalo a fatos banais. Tudo temperado por forte dose de adjetivação.
As colunas de Diogo Mainardi sobre o caso Telecom Itália são um exemplo amplo dessa deformação jornalística – claramente a serviço de um lobby.
Dentre todos os repórteres, no entanto, nenhum se esmerou mais na arte ficcional que Policarpo Júnior, recentemente promovido a Diretor da Sucursal de Brasília da publicação. Assim como Lauro Jardim e Mainardi cultivam os lobistas cariocas, Policarpo é um freqüentador habitual do submundo de Brasília, convivendo com arapongas, policiais e lobistas em geral.
Vamos a alguns exemplos pré-governo Lula para entender, na prática, em que consiste esse estilo Veja, a partir de algumas obras de Policarpo.
O caso Chico Lopes
Em janeiro de 1999, quando houve o estouro no câmbio, seguiu-se uma catarse geral na mídia, uma busca de escândalos a qualquer preço. Foram publicados absurdos memoráveis, que acabaram se perdendo no tempo – como o de que Fernando Henrique Cardoso se valia do seu Ministro-Chefe da Casa Civil Clóvis Carvalho para informar os banqueiros sobre as mudanças cambiais.
O escândalo refluiu, cada publicação tratou de esquecer as ficções que plantou e a vida prosseguiu.
Na época, Veja publicou uma capa acusando Chico Lopes de ter beneficiado os bancos Marka e FonteCindam com informações privilegiadas. Chegou a afirmar que quatro bancos pagavam US$ 500 mil mensais para terem acesso a informações privilegiadas sobre câmbio (clique aqui).
A matéria não respondia à questão central: se os dois bancos recebiam informações privilegiadas de Chico Lopes, se Chico assumiu a presidência do Banco Central com a missão precípua de mudar a política cambial porque, raios!, apenas eles quebraram na mudança? Na época, a explicação de Veja já era absurda. Assoberbado com os problemas da mudança cambial, Chico tinha se esquecido de avisar seus clientes (que lhe pagavam US$ 500 milhões mensais apenas para ter aquela informação).
O mistério persistiu até o dia 23 de maio de 2001 quando saiu a capa da Veja “A História Secreta de um Golpe Bilionário” um clássico à altura do “boimate”, de Eurípedes Alcântara (clique aqui).
A abertura nada ficava a dever a um conto de Agatha Christie.
O momento mais dramático do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso ocorreu no dia 13 de janeiro de 1999.(...) O que ninguém sabia é que, desde aquele dia, um grupo reduzidíssimo de altos membros do governo passou a guardar um segredo de Estado, daqueles que só se revelam vinte anos depois da morte de um presidente. Após quatro meses de investigação e 22 entrevistas com catorze personagens envolvidos, VEJA desvendou peças essenciais para o esclarecimento do mistério, que resultou na inesperada, e até hoje inexplicada, demissão do presidente do Banco Central apenas duas semanas depois da desvalorização.
A demissão de Lopes tinha sido mais que explicada: os erros na condução mudança da política cambial.
O então presidente do Banco Central, o economista Francisco Lopes, vendia informações privilegiadas sobre juros e câmbio – e uma parte de sua remuneração saía da conta número 000 018, agência 021, do Bank of New York. A conta pertencia a uma empresa do Banco Pactual, a Pactual Overseas Bank and Trust Limited, com sede no paraíso fiscal das Bahamas. Chico Lopes, como é conhecido, repassava as informações para dois parceiros, que se encarregavam de levá-las aos clientes do esquema. Os contatos entre os três eram feitos por meio de aparelhos celulares. A Polícia Federal suspeita que os números sejam os seguintes: 021-99162833, 021-99835650 e 021-99955055
Salvatore Alberto Cacciola, então dono do banco Marka, do Rio de Janeiro, descobriu todo o esquema por meio de um grampo telefônico ilegal e também passou a ter as mesmas informações privilegiadas. As fitas, que registram as conversas grampeadas, estão guardadas num cofre no Brasil – e há cópias depositadas num banco no exterior. Cacciola chegou a custear viagens a Brasília para que seu contato obtivesse, pessoalmente, as informações de Chico Lopes. Numa delas, seu contato voou do Rio a Brasília num jatinho da Líder Táxi Aéreo (o aluguel do jato saiu por 10 500 reais) e hospedou-se no hotel Saint Paul (a conta: 222,83 reais). Quebrado com a mudança cambial, que seu informante não conseguiu avisar-lhe a tempo, Cacciola desembarcou em Brasília no dia seguinte, 14 de janeiro de 1999, com o que chamou de "uma bazuca". Ela estava carregada de chantagem: ou o BC lhe ajudava ou denunciaria ao país a existência do esquema. O BC ajudou. Vendeu dólar abaixo da cotação e, no fim, Cacciola levou o equivalente a 1 bilhão de reais.
Era um furo fantástico! Cacciola não seria mais o financiador das informações privilegiadas de Chico Lopes. Em vez de pagar US$ 500 mil mensais, descobrira o modo mais barato, de grampear os celulares por onde transitavam as informações secretas.
Na mesma abertura se dizia que ele se informava através de um “grampo” e que ele tinha um informante.
Nem se fale do contra-senso de alguém experiente em mercado jogar todo seu futuro no resultado de um “grampo”. Não tinha lógica. Qualquer decisão de mudança de política cambial seria imprevista, da noite para o dia. Como confiar toda sua vida financeira a um mero “grampo”?
Segundo a matéria, no dia aziago o grampo falhou, e Cacciola quebrou. Indignado, foi tirar satisfações com Chico Lopes, que cedeu à chantagem.
Não tinha pé nem cabeça. Mas como foi montado esse nonsense?
Depois de “22 entrevistas com 14 personagens” envolvidos, Policarpo havia conseguido – de fato - as seguintes informações:
1. Com Luiz Cezar Fernandes, ex-controlador do Pactual, em briga com seus ex-sócios, o número da suposta conta-corrente do Pactual em Nova York, de onde sairiam os supostos pagamentos para Chico Lopes. Na verdade o numero apresentado era o de registro do banco na praça de Nova York, feito junto ao Banco de Nova York – equivale aquele 001 que você confere nos cheques do Banco do Brasil.
2. Na declaração de renda de Luiz Bragança (o suposto intermediário de Chico Lopes no vazamento das informações) algum araponga brasiliense levantou os números dos três celulares. Ou seja, o sujeito montava um esquema super-secreto para transmitir informações, que supostamente renderia US$ 500 mil mensais, valendo-se de telefones celulares – e colocava o numero dos aparelhos na sua declaração de renda.
Eram essas as informações de Policarpo, e algumas outras, como o vôo de Cacciola a Brasília, o hotel onde se hospedou, informação sem nenhuma relevância e fartamente divulgada pela imprensa em janeiro de 1999.
Como tempero final, um apanhado dos boatos mais inverossímeis que circularam por ocasião da mudança cambial. Bastava isso para se para se ter um enredo que provocou gargalhadas em todos os jornalistas que cobriam a área financeira.
Na época apontei a maluquice; minha colega Mirian Leitão também.
Citado na matéria, o economista Rubens Novaes, enviou carta a Veja esclarecendo todos esses pontos. A carta jamais foi publicada. Ele limitou-se a enviar cópias para alguns jornalistas.
Anote esse exemplo porque, longe de se constituir em exceção, refletia um padrão de "jornalismo" presente em todas as coberturas bombásticas da revista.
Na era Eurípedes-Sabino, Policarpo, repórter de escândalos, freqüentador, como jornalista, do submundo dos lobbies de Brasília, tornou-se diretor da sucursal da revista. E se tornaria o autor das capas mais rocambolescas da cobertura do “mensalão”.
Coube a ele divulgar o vídeo em que o funcionário dos Correios, Mauricio Marinho, aceitou a propina de R$ 3 mil. E que deflagrou a campanha do “mensalão”.
Mas isso é tema para outro capítulo.
enviada por Luis Nassif - fonte: Blog do Nassif
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