ADRIANA FACINA,
Embora não tenha nada contra cães e considere que animais devam ser bem tratados, o esmero no trato canino associado a uma indiferença generalizada pelo semelhante me incomoda profundamente...
(...)
Troque seu cachorro
Por uma criança pobre
(Baptuba! Uap Baptuba!)
Sem parente, sem carinho
Sem rango, sem cobre
(Baptuba! Uap Baptuba!)
Deixe na história de sua vida
Uma notícia nobre...
Troque seu cachorro
(Uauuu!)
Troque seu cachorro
(Uauuu!)
Troque seu cachorro
(Uauuu!)
Troque seu cachorro
(Uauuu!)
Troque seu cachorro
Por uma criança pobre...
Tem muita gente por aí
Que tá querendo levar
Uma vida de cão
Eu conheço um garotinho
Que queria ter nascido
Pastor-alemão!
(...)
Seja mais humano
Seja menos canino
Dê guarita pro cachorro
Mas também dê pro menino
Se não um dia desse você
Vai amanhecer latindo
Uau! Uau! Uau!...
(Eduardo Dusek, trechos da música 'Rock da cachorra')
Na semana que passou assisti a dois programas na TV que falavam de cachorros e seus donos. Um deles tratava da economia das pet shops e clínicas especializadas, que se difundem no país e ampliam cada vez mais seus serviços, envolvendo cifras espantosas. Banhos de ofurô para desestressar os cãezinhos, acupuntura, acompanhamento psicológico, cabeleireiro, manicure, roupas, alimentos especiais, brinquedos e mais uma profusão de bens e serviços sofisticados, e caros, à disposição dos animais. Uma das reportagens mostrava uma festa numa discoteca de cães, como essas casas de festas infantis, com bolo e surpresinhas caninas. Os “amiguinhos” dançavam animadamente na pista de dança com seus donos. Uma outra mostrava artistas e socialites que tratam seus bichinhos como gente, dando-lhes jóias e mimos totalmente fora do alcance da maioria dos seres humanos brasileiros.
Na minha universidade, volta e meia o assunto canino também mobiliza professores, estudantes e funcionários. Hoje está em curso uma mobilização para alimentar cãezinhos nascidos no campus que eram cuidados pelos estudantes do acampamento Maria Julia Braga, despejado a força pela repressão policial, a mando da reitoria. Há um tempo atrás, professores e estudantes foram atacados pelos cachorros, mas a comunidade universitária se mobilizou através de emails e outros meios para evitar a remoção dos bichos, temendo pelo seu futuro incerto.
Até aí nada demais. Solidariedade de humanos com cães, os bichinhos ocupando o vazio que a solidão deixa nas vidas das pessoas nessa sociedade maluca, marcada pelo individualismo consumista e por relações imediatistas e utilitárias. Mas confesso que, embora não tenha nada contra cães e considere que animais devam ser bem tratados (na casa dos meus pais sempre tivemos cachorros, cuja rotina de trato era banho, ração e vacinas), esse esmero no trato canino associado a uma indiferença generalizada pelo semelhante me incomoda profundamente. Nunca vi, em meu local de trabalho, por exemplo, uma mobilização em favor de crianças que vivem em estado precário nos arredores do campus. Mal alimentadas, mal vestidas, em condições de risco. Nunca presenciei uma campanha, mesmo que nos limitados marcos de uma caridade cristã, de salvação da população de rua que vive nas imediações da praça em frente do lugar onde estudamos e trabalhamos, e também onde muitos de nós nos divertimos, bebemos cerveja e conversamos.
Do mesmo modo, quando vejo cachorrinhos com cortes originais de cabelos, calçados com sapatinhos para não sujarem as patinhas, levando seus donos para passear me sinto meio ofendida como ser humano. E se eu me sinto assim, imaginem crianças e adolescentes despossuídos de tudo, muitos incapazes até mesmo de sonhar com um destino diferente para suas vidas, tamanho o estrago que o abandono dos poderes públicos causou em seus seres. Crianças e adolescentes pretos, pobres, cujas roupas e aparência geram medo e desconfiança nos pertencentes à “boa sociedade”. Rejeitados quando entram em restaurantes para pedir comida, enxotados das calçadas de noite, as mesmas calçadas em que os mimados cãezinhos fazem xixi e cocô livremente, sem serem importunados.
Não sei se sou eu que ando mal humorada e de coração duro, mas não tenho como não relacionar esse processo de humanização pelo qual passam os cachorrinhos, se tornando parte da família, recebendo nomes de gente e sendo destinatários do consumismo de seus donos, à desumanização dos seres humanos. São os cães e não as gentes o alvo da nossa humanidade.
Com esses pensamentos na cabeça, caminhando pelas ruas da minha cidade, tive a impressão de ouvir um poodle rosa dizer ao seu dono: “late, late, late que eu tô passando...”.
Fonte: Fazendo Media
Adriana Facina é antropóloga, professora do Departamento de História da UFF, membro do Observatório da Indústria Cultural e autora dos livros Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004) e Literatura e sociedade (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004).
Nenhum comentário:
Postar um comentário