Por Eduardo Guimarães
Escrevo no momento em que acabo de ser surpreendido pela notícia indigesta, divulgada no blog de Luis Nassif, de que o ombudsman da Folha de São Paulo, Mario Magalhães, deixou o cargo porque não aceitou parar de publicar sua "crítica interna" diária na internet. Pelo que pude entender, o jornal deveria estar pretendendo que o jornalista só se manifestasse na coluna do ombudsman na edição impressa de domingo.
"Risco de cair"
MÁRIO MAGALHÃES
ombudsman@uol.com.br
Título da Folha na sexta feira passada (alto da pág. A7, edição São Paulo): "Para governo, caso é grave e exige resposta rápida da ministra".
Abertura: "A cúpula do governo avalia que a situação política da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, se agravou e que ela precisa dar uma resposta rápida. Do contrário, corre risco de cair. Segundo apurou a Folha, essa resposta seria a demissão dos servidores da Casa Civil que elaboraram um dossiê sobre gastos secretos do governo Fernando Henrique Cardoso". Mais: "Um ministro de Lula classificou a informação [sobre o 'documento vazado para a imprensa'] de gravíssima".
Ou a ministra é forte demais e dá de ombros à "cúpula do governo", ou a história, integralmente baseada em fontes não nomeadas, parece não estar bem amarrada. Mais que isso, sugere que adversários de Dilma no governo aproveitaram o anonimato para alvejá-la.
Manchete do "Estado" no domingo: "Planalto vai tirar Dilma da vitrine eleitoral".
É outra informação que, pelo menos até agora, não se confirmou, pelo contrário. Os dois episódios exemplificam os riscos da cobertura das crises e intrigas brasilienses.
Hoje a Folha cometeu, creio, um erro ao omitir na primeira página o confronto de ontem no Congresso. O senador Álvaro Dias admitiu ter visto o dossiê antes de sua divulgação. Dar destaque ao fato não implica tomar partido no noticiário, mas reconhecer a importância da declaração.
O "Estado" titulou na parte superior da capa: "Governistas acusam tucano de vazar dossiê dos cartões".O senador afirmou ontem: "Na segunda, logo após a circulação da revista 'Veja' no domingo, desta tribuna afirmei ter visto o dossiê".
Hoje o título (de sentido dúbio) da Folha é "Aliados pressionam tucano que admitiu ter visto dossiê" (alto da pág. A6). Se Dias conta a verdade, por que a Folha --e o conjunto ou parcela significativa do jornalismo-- não publicou a declaração do senador assim que ele a fez? Por que só agora?
O senador tem razão: ele está protegido por garantia constitucional de não revelar a fonte que lhe permitiu acesso ao dossiê. Essa prerrogativa deve ser defendida pela democracia. Ela assegurou revelações importantes, oriundas de parlamentares, que os cidadãos conheceram por meio do jornalismo.
Dúvida: Dias avisou FHC sobre o dossiê? Se não avisou, como houve chantagem? Quem foi chantageado?
Seis dias atrás, a Folha manchetou: "Braço direito de Dilma montou dossiê".
O relato continua a carecer de comprovação, e o jornal o flexibiliza. Hoje diz que a assessora "deu ordem para a compilação de dados". Ou que ela "assumiu a ordem para a confecção de um 'banco de dados'". O "furo" da sexta virou, também, a "ordem para elaborar o banco de dados".
O banco de dados não é o dossiê. O dossiê de 13 páginas foi elaborado a partir de informações do banco de dados. Pelo menos é o que eu entendi da cobertura.
O quadro "Perguntas e respostas" (pág. A6) confunde, em uma passagem: "A Folha chama o arquivo de dossiê". Até aqui, a rigor, o jornal chamou o relatório de 13 páginas de "dossiê", e não o "arquivo paralelo ao sistema oficial de controle de gastos".
O jornal já afirmou que a Casa Civil assumira a autoria do dossiê (considero como dossiê o relatório de 13 páginas). Na edição de sábado, entretanto, Dilma disse o contrário: sua pasta reconhecia a produção da "base de dados", da qual foram retiradas as informações que constam do dossiê.
Quem contradiz a ministra, hoje, é o seu chefe. Lula afirmou que alguém "roubou peças de um documento de um banco de dados". Ou: "Nunca saberemos quem foi que pegou o documento de um banco de dados e vendeu como se fosse dossiê".
Segundo Lula, as 13 páginas são um documento do "banco de dados". A ministra dissera que as 13 páginas não foram elaboradas por sua equipe, mas confeccionadas por alguém de identidade ignorada a partir de informações classificadas na Casa Civil.
Na sexta, a Folha informou que teve acesso ao dossiê e publicou trecho dele em fac-símile. Por que não permitiu que os leitores conhecessem, pelo menos na internet, a íntegra do documento, para tirarem suas próprias conclusões? O blog do Noblat faz isso agora. Ainda é tempo de o jornal fazer.
O noticiário de hoje reforça a impressão de que governo e oposição se empenham no desgaste mútuo, mas nenhum está, realmente, disposto a investigar os gastos palacianos das gestões atual e passada. Se Álvaro Dias conheceu e repassou? um documento que considerava manipulação de informações sigilosas por funcionário público para fim de divulgação e chantagem, por que não denunciou o fato à Polícia Federal e pediu abertura de inquérito?
O mesmo vale para o governo, que qualificou como criminoso o vazamento de informações da Casa Civil protegidas por sigilo. Por que o Planalto não pediu inquérito à PF? Em vez disso, o Ministério da Justiça se moveu em sentido contrário, para abafar o caso.
Mantêm-se muitas dúvidas. Sobre quem, a partir da dita "base de dados", montou o relatório de 13 páginas. Quem vazou o dossiê para fora do Planalto. E quem fez uso dele --embora essa resposta tenha começado a ser delineada ontem.
Outra incerteza permanece: o dossiê é incapaz de causar dano a FHC; como instrumento de chantagem, é inexpressivo (a não ser, repito, que sinalize o conhecimento sobre outras despesas, cabeludas); ele faz mal, mais que ao governo, a Dilma Rousseff; por que a ministra o patrocinaria?
É bom que o jornal, mesmo com o silêncio da primeira página, tenha recuado na cobertura de tom unilateral.
Como se vê nas páginas da Folha, há mais perguntas que respostas no caso do dossiê.
Folha de São Paulo, domingo, 06 de abril de 2008
MÁRIO MAGALHÃES - OMBUDSMAN
Despedida
A Folha condicionou minha permanência ao fim da circulação das críticas diárias na internet; não concordei; diante do impasse, deixo o posto
NO ANO QUE passou, quando as noites de domingo se insinuavam, e tantas famílias saíam para o último passeio do fim de semana, a minha sabia que ficaríamos em casa -ou pelo menos não iríamos todos. Era hora de eu começar a longa e solitária jornada madrugada adentro para terminar de esquadrinhar jornais e revistas. De manhã, com as olheiras a denunciar o sono roubado, leria as edições do dia e escreveria a mais encorpada crítica semanal, a da segunda-feira. Hoje à noite, se alguém me chamar, terá companhia. Esta é a 51ª e derradeira coluna dominical que escrevo como ombudsman da Folha. Assumi em 5 de abril de 2007, e o meu mandato se encerrou anteontem. Embora o estatuto autorize a renovação por mais dois períodos, não houve acordo com a direção do jornal para a continuidade.
A despeito desse cenário, a restrição imposta configura regressão na transparência. O projeto editorial da Folha diagnostica "um jornalismo cada vez mais crítico e mais criticado". Reconhece que "o leitor fiscaliza a pauta de compromissos" do jornal.
Fonte: Blog Cidadania.com
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