quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Sociedade do créu, velocidade 5 - por Adriana Facina - fonte: http://www.fazendomedia.com

Sociedade do créu, velocidade 5

ESSE GRANDE SIMULACRO
Cada vez que nos dão lições de amnésia
como se nunca houvesse existido
os ardentes olhos da alma
ou os lábios da pena órfã
cada vez que nos dão aulas de amnésia
e nos obrigam a apagar
a embriaguez do sofrimento
convenço-me de que meu território
não é a ribalta de outros

Em meu território há martírios de ausência
resíduos de sucessos / subúrbios enlutados
mas também singelezas de rosa
pianos que arrancam lágrimas
cadáveres que ainda olham de seus hortos
lembranças imóveis em um poço de colheitas
sentimentos insuportavelmente atuais
que se negam a morrer no escuro

O esquecimento está tão cheio de memória
que às vezes não cabem as lembranças
e rancores precisam ser jogados pela borda
no fundo o esquecimento é um grande simulacro
ninguém sabe nem pode / ainda que queira / esquecer
um grande simulacro abarrotado de fantasmas
esses romeiros que peregrinam pelo esquecimento
como se fosse o caminho de santiago

o dia ou a noite em que o esquecimento estale
exploda em pedaços ou crepite /
as lembranças atrozes e as de maravilhamento
quebrarão as trancas de fogo
arrastarão afinal a verdade pelo mundo
e essa verdade será a de que não há esquecimento

Mario Benedetti


Numa conversa com amigos, estávamos debatendo o sucesso musical da temporada: a Dança Créu, composição do MC Créu. Nas rádios mais populares, nas emissoras de TV, em bares, festas, comemorações de família, brincadeiras de criança, em todo lugar o que se houve é a música que ensina uma dança, a ser executada em 5 velocidades, mexendo os quadris de um jeito supostamente sensual, ao som do refrão que diz repetitivamente créu créu créu.

A letra simples, fácil de ser memorizada, acompanhada de uma dança que é também um desafio, pois o grau de dificuldade vai aumentando progressivamemte e o próprio MC confessa na música que não consegue acompanhar a velocidade 5, dão um tom lúdico, de brincadeira. Certamente, isso ajuda muito na sua popularização, especialmente entre crianças. E também entre jovens adultos que tiveram sua educação musical baseada em sucessos da axé music como Segura o tchan e Na boquinha da garrafa, todos acompanhados de danças erotizantes.

Mas há também algo além disso. Ficamos pensando na relação dessa música com a sociedade em que vivemos. Bancos apresentando seus lucros bilionários, como o Bradesco, com o faturamento recorde de R$ 5,817 bilhões líquidos obtidos entre janeiro e setembro de 2007. Lucros sustentados por juros escorchantes e políticas públicas que, sob o manto generoso da suposta dívida que nunca sofreu uma auditoria séria, transferem massas de recursos públicos, provenientes dos impostos pagos pela população brasileira, para as garras das instituições financeiras privadas.

As corporações midiáticas fabricando mentiras, disseminando medo e desinformação, numa cruzada obscurantista para manter as coisas no seu devido lugar. Saúde e educação a míngua, com pessoas morrendo perante olhares indiferentes da boa sociedade e com crianças sem escola, seja por falta de professores, seja para se proteger da violência gerada por políticas de insegurança pública. Consumismo desenfreado, estabelecendo as fronteiras que separam as vidas que valem alguma coisa e as que não têm nenhum valor em nossa sociedade. Da boca do meu amigo, que tem o profético nome de Bruno Deusdará, veio a pérola: “o que é tudo isso senão a sociedade do créu? E mais: é velocidade 5!”

Logo depois dessa conversa, estava vendo a novela da Globo, Duas Caras, cujo título mais apropriado seria Descarada. Infelizmente, tenho conseguido acompanhar pouco essa novela. Mas é impressionante a desfaçatez de sua pregação ideológica. Talvez por isso os baixos índices de audiência. Definitivamente, a gente não se vê por ali. Favelados não se vêm ali. Gente que vive oprimida pelas milícias não se reconhece na Portelinha, cujo dono é o caricato e benevolente Juvenal Antena.

Universitários, professores ou estudantes, também não se vêm ali. Isolado em seu mundinho de classe média alta da zona sul carioca, apavorada e acuada pela violência alimentada e recriada pela mídia gorda, Aguinaldo Silva tenta um realismo que se torna farsa ao caricaturar uma realidade que não lhe é compreensível. Tudo é tosco, os personagens são falsos, os atores não acreditam no que falam ou não conhecem a realidade que deveriam ajudar a representar.

Bom, e o que se passava no episódio em questão? A filha da Marília Pêra e do Stênio Garcia, que é rica e casou-se com um rapaz negro e favelado, está grávida, contra a vontade do pai, muito preconceituoso em relação ao genro. A moça passa mal e está na fila de um hospital público. A mãe, quando sabe disso, vai correndo para lá e faz de tudo para convencer o casal de que a menina ia morrer ali e que eles deveriam superar o orgulho e aceitar sua remoção para um hospital particular que o plano de saúde que o pai pagava dava direito.

Eles resistem, já que esse mesmo pai queria que a filha abortasse, por não desejar ter um neto negro. Porém, a mãe argumenta que a filha ia morrer, apresentando uma imagem do hospital público como uma sucursal do inferno. Numa das cenas, o rapaz tenta falar com uma funcionária e é destratado, como se o caos na saúde pública fosse responsabilidade dos profissionais que ali trabalham.

Do modo descontextualizado como a suposta “crítica” é apresentada, parece que o problema não é político, de prioridades no que diz respeito às políticas públicas, mas sim que tudo que é público é ruim. A salvação está no mercado. Só faltou o merchandising do plano de saúde.

Imaginem um trabalhador ou uma trabalhadora, chegando em casa depois de uma rotina cansativa de trabalho, impossibilitados de adquirir com seus salários as doces promessas de um atendimento médico particular, assistindo a todo esse discurso orquestrado sobre a baixa qualidade do serviço público justamente por ser público. E toca a trabalhar cada vez mais para realizar o sonho de comprar um plano de saúde para a família e colocar o filho numa escola particular, símbolos de status e de pertencimento ao mundo global.

Ironia do destino, dois dias depois, precisei ir com meu companheiro a um hospital privado, para um atendimento de pronto-socorro, usando plano de saúde da UNIMED. Ficamos duas horas numa fila e tivemos uma consulta relâmpago que culminou com a prescrição de um medicamento que custava cerca de R$ 45 reais a caixa, sendo que a receita recomendava 4 caixas! A vida como ela é de fato é outra coisa.

O ataque ao setor público e a defesa incondicional do mercado marcam o tom geral da novela. A universidade, por exemplo, cuja dona é a principal heroína da trama, é privada. Seu modelo de excelência em tudo contradiz o mundo real, no qual as privadas são de fato o que seu nome diz, salvo raríssimas exceções. Afinal, quais as grandes descobertas científicas ou mesmo quadros intelectuais relevantes para a cultura brasileira forjados em suas dependências? Seus estudantes rebeldes, inclusive o que está processando o ex-reitor por racismo por tê-lo chamado de zumbi, são simplesmente idiotas. Os professores, em especial aquele que é mais crítico, são losers, perdedores que reclamam da vida ao invés de fazer algo de produtivo. E por aí vai...

Em meio a essa profusão de bens culturais conformistas que a sociedade do créu é capaz de produzir, um me chamou a atenção em especial. Estava ouvindo uma rádio que anunciava o show Pagode do Arlindo Cruz, que ia se realizar no teatro Rival, e o locutor dizia que seria apresentado o Samba da globalização, supostamente uma música de destaque que atrairia mais público para o evento. Eu, na minha ingenuidade esperançosa, pensei: “Legal! Deve ser um samba crítico, com tema político.” E fui procurar na internet. A letra desfez todas as minhas expectativas. Depois de louvar toda a programação da emissora, o samba diz assim: Mais uma vez/É o time da Globo/que é campeão/Não é mole não meu irmão/Não é mole não/A vida imitando a arte/Isso é globalização plim plim”.

Não tenho como aqui, neste espaço, aprofundar uma discussão sobre a expropriação simbólica que esse samba representa, ao colocar um grande artista popular, negro, a legitimar as estratégias da classe dominante para conformar corações e mentes a uma realidade que lhes interessa construir e perpetuar. Quanta vida tem de se tornar invisível, quanta diversidade humana, quantas preciosidades culturais são apagadas para produzir esse simulacro perverso?

Como diz sabiamente o MC Créu: pra dançar essa dança tem que ter disposição.

> Adriana Facina é antropóloga, professora do Departamento de História da UFF, membro do Observatório da Indústria Cultural e autora dos livros Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004) e Literatura e sociedade (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004).

http://www.fazendomedia.com


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