Filmes Engajados
Documentários de combate
Com baixos orçamentos e cronogramas apertados, a Brave News produz filmes que denunciam a indústria da guerra, a corrupção política e o poder das corporações. E já diversificou sua linha de ação, quebrando o monopólio das grandes distribuidoras
por Christian Christensen
Boa parte do crédito para a revitalização da tradição dos documentários em geral – e de documentários políticos e ativistas em especial – foi atribuída ao fenomenal sucesso de bilheteria de Fahrenheit 11 de Setembro (2004), de Michael Moore, que arrecadou mais de US$ 120 milhões só nos EUA, e US$ 200 milhões no mundo. Embora tal sucesso tenha sido favorecido pelo êxito dos primeiros filmes de Moore, Roger e eu (1989) e Tiros em Columbine (2002), é preciso observar, também, que Fahrenheit 11 de Setembro foi – cronologicamente – acompanhado por uma série de outros documentários bem-recebidos, como Sob a névoa da guerra (“The fog of war” – de Errol Morris, 2003), The Corporation (de Mark Achbar & Jennifer Abbot, 2003), Central Al-Jazeera (“Control room” – de Jehane Noujaim, 2004), Super size me – a dieta do palhaço (de Morgan Spurlock, 2004), e Uma verdade inconveniente (“An inconvenient truth” – de Davis Guggenheim, 2006). O sucesso desses documentários em especial, já que a maioria deles foi considerada bem-sucedida, pode ser aferido às bilheterias. O ataque ao fast food em Super size me é um bom exemplo, pois a bilheteria, de US$ 11,5 milhões nos EUA, ultrapassou de longe o orçamento de US$ 65 mil.
Apesar do enfoque em filmes com certo grau de sucesso financeiro (principalmente quando se comparam os ganhos de bilheteria aos orçamentos de produção) ser um modo de abordar o recente crescimento dos documentários ativistas/políticos, tal análise tão segmentada excluiria um dos mais interessantes desenvolvimentos na produção, distribuição e exibição de documentários: o trabalho da Brave New Films e da Brave New Theaters, criadas em 2004 pelo cineasta de docume ntários e ativista político Robert Greenwald. Greenwald foi produtor e/ou diretor de vários documentários políticos: Iraq for sale: the war profiteers (2006), The big buy: Tom Delay’s stolen congress (2006), Wal-Mart: o alto custo do preço baixo (2005), Outfoxed: Rupert Murdoch’s war on journalism (2004), Unconstitutional: the war on our civil liberties (2004), Uncovered: the war on Iraq (2004) e Unprecedented: the 2000 presidential election (2002).
Pelos padrões convencionais da indústria de cinema, o filme de Robert Greenwald melhor recebido pela crítica, Outfoxed: Rupert Murdoch’s war on journalism (2004), com apenas 18 sessões e meros US$460 mil nas bilheterias, seria considerado, na melhor das hipóteses, um sucesso moderado. Além disso, os três filmes de Greenwald feitos após Outfoxed — Wal-Mart: o alto custo do preço baixo, The big buy: Tom Delay’s stolen congress, Iraq for sale: the war profiteers – quase não aparecem nas estatísticas da indústria de filmes nos EUA. O motivo por trás da falta de sucesso de bilheteria para os filmes de Greenwald, no entanto, não foi a falta de interesse do espectador, mas o fato de que ele estruturou a Brave New Films (produtora) e a Brave New Theaters (um site para coordenar sessões cinematográficas fora dos grandes centros) com o objetivo de criar uma produtora politicamente engajada, com distribuição/organização autônomas e capaz de suplantar um sistema altamente centralizado de distribuição e exibição de filmes.
A dedicação de Greenwald a documentários políticos talvez seja surpreendente, considerando-se seu passado como produtor/diretor de um razoável número de produções para televisão e filmes de massa em Hollywood. Há, porém, dois eventos que parecem ter influenciado a decisão do diretor de mergulhar no mundo da mídia ativista de baixo orçamento: as conseqüências dos ataques de 11 de setembro de 2001 e a reeleição de George W. Bush em 2004. Sobre o primeiro, Greenwald disse que a velocidade com que “luto e dor” se transformaram em “raiva e vingança” o deixou perturbado. “Tenho quatro filhos e eles influenciam em muito minhas decisões; achei que não poderia me olhar no espelho se não tentasse fazer alguma coisa”, acrescentou. E isso acabou resultando na criação, em 2004 (ano da eleição Bush contra Gore), da Brave New Films, empresa dedicada à produção do que Greenwald chama de “documentários instantâneos”, que tratam de questões políticas fundamentais nos Estados Unidos.
Em vez de se concentrar em produções de grande orçamento e cronograma de vários anos, Greenwald decidiu que o necessário eram documentários sobre “temas políticos atuais, filmados com baixo orçamento, mas com qualidade, lançados com rapidez e ligados ao ativismo político local de forma mais ampla”. Desde 2002, os filmes de Greenwald tratam de assuntos como a lucratividade da guerra, práticas trabalhistas ilegais e antiéticas, financiamento político corrupto nos EUA e do ultra conservador canal Fox News, de Rupert Murdoch.
São muitas as idéias centrais nas quais se baseiam os empreendimentos Brave New Films / Brave New Theaters. Entre elas encontramos: financiamento parcial de documentários de pequena escala, que pode ser obtido com contribuições de cidadãos comuns via internet; Documentários políticos de qualidade, que têm condições de serem produzidos rapidamente e com um orçamento limitado, para tratar de questões políticas e sociais cruciais; Internet como ferramenta de venda e distribuição direta de DVDs (evitando os oligopólios de comércio e aluguel); Internet como instrumento para coordenar sessões locais de filmes (sem os monopólios da distribuição e exibição de filmes); Sessões cinematográficas fora dos grandes centros, combinadas com outras fontes alternativas de informação (palestras em organizações sindicais e pacifistas, debates e também esforços para manter o ativismo).
Simplificando, a Brave New Films é uma produtora-guarda-chuva, sob a qual a Brave New Theaters opera. O que a difere de outras elaboradoras de filmes alternativos é a existência de um braço de distribuição. O conceito é simples: qualquer produtora, grupo ou pessoa que deseje registrar um filme ou DVD acessa o site (em agosto de 2007 havia 147 filmes listados) [1] e um link será colocado na página [2]. Se um indivíduo ou grupo estiver disposto, candidata-se a realizar uma sessão do filme, com a data e o local da exibição colocados no site. As apresentações podem ocorrer tanto em espaços grandes como pequenos, que variam de salas de palestras em faculdades a salas-de-estar residenciais, dentro ou fora dos Estados Unidos. Os possíveis espectadores comunicam sua intenção de comparecer. E, dessa forma, o produtor do filme, a Brave New Theaters e os coletivos envolvidos nas sessões podem medir o nível de interesse na película.
A filosofia por trás da combinação Brave New Films / Brave New Theaters era quebrar o poder das empresas de distribuição e exibição de filmes, oferecendo um sistema para a coordenação de sessões das obras disponíveis no site. Como disse Jim Miller, Diretor de Desenvolvimento da Brave New Foundation e organizador de Educação e Difusão do projeto Iraq for Sale, mais que um site para a simples venda de DVDs, a principal função é atrair exibidores potenciais para os filmes em questão, funcionando como uma ponte entre produtores, exibidores e ativistas.
Os longas e curta-metragens produzidos são também tratados como parte de uma estratégia política e educacional mais ampla. Quando perguntado se a Brave New Films teria interesse que seus filmes fossem exibidos em salas de cinema de alcance global, Jim Miller respondeu: “Não. Para nós, não faria sentido fazermos sessões de maior alcance. Não estamos buscando isso. Quero dizer, muitas pessoas e muitos cineastas fazem escolhas diferentes. Gostam de participar de festivais e tentar ganhar prêmios. Querem apresentar suas obras de em grandes cinemas. Não é isso o que nos motiva. Produzimos para que as pessoas tenham um ponto de partida para discutir um assunto, para aprender mais, para provocar mudanças”.
Em outras palavras, os filmes não devem ser considerados o produto final do projeto Brave New, mas o início de ações e debates políticos. Além de promover sessões locais de filmes por meio do site, eles coordenam e incentivam planos de atividades enfocados na pós-exibição. Isso inclui o envio de informações a exibidores sobre como a platéia pode participar depois do término do filme; o auxílio no contato com palestrantes que debatam o tema em questão (tais como veteranos da Guerra do Iraque, depois de exibições de Iraq for Sale); e o lançamento de “semanas especiais”, quando pessoas por todo o país poderiam (simultaneamente) ouvir o produtor Greenwald e outros discutirem o conteúdo do filme mediante links de vídeo e telefone [3].
Quem são as pessoas que “comandam” as exibições? O site Brave New Theaters contava com mais de 3.200 comitês e mais de 4.500 pessoas envolvidas no comando de ao menos uma sessão [4]. Segundo números da Brave New Films, Wal-Mart: o alto custo dos preços baixos (2005) teve, aproximadamente, 8.000 sessões nos Estados Unidos e, com base no sistema do site Brave New Theaters, mais ou menos 700 mil pessoas assistiram ao filme, sem nenhum lançamento em cinemas. Ainda assim, poucos coletivos encaram a exibição de filmes com comprometimento. Prova disso é que, dos 3.200 grupos cadastrados, apenas 18 realizaram mais de 10 sessões. A maior parte executou apenas uma.
Os dados dos grupos de exibição tornam difícil a identificação e classificação dos extratos da população que participam ativamente do projeto. No entanto, a Brave New tem grande participação de organizações políticas locais, coletivos antiguerra e de direitos humanos, sindicatos, associações trabalhistas, coligações religiosas e centros universitários. É interessante que, apesar da idéia de que a religião nos Estados Unidos está sempre voltada para a direita, a Brave New Films e a Brave New Theaters conseguiram mobilizar sessões e atividades políticas por meio da colaboração de igrejas e uniões religiosas. Isso ocorreu principalmente com o filme Wal-Mart: o alto custo do preço baixo, já que muitos dos funcionários mal-pagos da cadeia Wal-Mart são atuantes nas igrejas da comunidade latina nos EUA. Para eles, o tratamento injusto (e às vezes criminoso) dispensado aos funcionários da rede é uma questão de moralidade e ética, tanto quanto uma questão política.
Apesar do sucesso, Greenwald e seus colegas não estão satisfeitos em se limitarem à produção e distribuição de documentários. Um novo braço da família — a Brave New Foundation —, foi criada para permitir que cidadãos comuns tenham a oportunidade de participar dos diferentes aspectos do processo de realização de um filme — outro exemplo da determinação de Greenwald em democratizar a produção de mídia. Um importante projeto da Brave New Foundation foi o Iraq Veterans Memorial [Memorial dos Veteranos do Iraque] [5], um site aberto na internet em 19 de março: o quarto aniversário do início do conflito. Ele traz vídeos-homenagens de familiares, amigos, colegas de trabalho e colegas militares para os soldados que perderam a vida durante a invasão.
Enquanto a mídia de massa nos Estados Unidos (e no mundo) continua a promover reality-shows como Big Brother, Pop Idol e Survivor, Greenwald e seus colegas provam que produções de mídia baseadas na realidade e com baixo orçamento podem fazer mais do que meramente entreter o público entre os comerciais. Como o próprio Greenwald disse: “Contar histórias em geral, independente da forma e do mecanismo de distribuição, é uma ferramenta muito importante para o progresso. Jamais conseguiremos apresentar nossa ideologia do modo como a direita o faz, nas declarações simplistas dos políticos, mas acho que temos maravilhosas histórias humanas que tocam e conectam. É assim que vejo meu papel e meu trabalho na Brave New Films. E vou continuar fazendo isso”.
[1] Apesar do nome Brave New Theaters, a maioria dos filmes listados no site não foi produzida pela Brave New Films.
[2] Acesse
[3] Tais atividades extras não são preparadas para todos os filmes disponíveis no site Brave New Theaters, mas para os filmes produzidos por Greenwald e pela Brave New Films.
[4] Números atualizados em outubro de 2006.
[5] Acesse o site
Fonte: LeMondeDiplomatique
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