segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Sobre ética, política e “educação caça-níqueis” - por Leopoldo Gabriel Thiesen - fonte: http://carosamigos.terra.com.br/

Sobre ética, política e “educação caça-níqueis”

por Leopoldo Gabriel Thiesen

... fato é que, como cidadãos brasileiros, perdemos o direito à inocência presumida. Aqui somos todos “picaretas”, corruptos, subornáveis, desonestos, corruptores, estelionatários, sonegadores, ou no mínimo interesseiros e safados, antes mesmo de qualquer oportunidade para provar o contrário. E, além do que, jamais provamos o bastante. Nos vemos como 190 milhões de “espertos” aplicando trambiques e golpes uns nos outros o tempo todo. E por aceitarmos isto como normal, talvez, façamos por merecer tal condição.

Boa vontade, gentileza, inocência presumida e confiança mútua são conquistas morais. Talvez as únicas possíveis e que façam sentido ainda. Visto que parece já não fazer sentido acreditar que quem não teme a Deus e seus tribunais metafísicos estaria liberado para qualquer tipo de sacanagem. E, com efeito, tal temor foi a base da moral popular por milênios. Pois bem, se já superamos tal fundamento de temor, resta-nos a racionalidade e a arte de construir a cooperação social como base para uma convivência civilizada e respeitosa. Restaria! Pois tal construção pressupõe um longo e por vezes árduo aprendizado coletivo. E quem disse que sequer já iniciamos tal tarefa?

A civilização humana desenvolveu alguns caminhos alternativos à violência do conflito social aberto, onde acaba prevalecendo a lei do mais violento, do mais forte ou do mais esperto. Para a construção da civilização dois caminhos são essenciais: a educação e a política. O aperfeiçoamento humano por vias morais esbarra em limites óbvios, apontados por Espinosa e Nietzsche. Pois, acaba configurando, conforme este último, uma moral de rebanho que nivela por baixo toda construção ética. Valores como honestidade, transparência, responsabilidade compartilhada, cooperação, confiança mútua, etc. não são invenções de moralistas ociosos. Mas resultam de árduos e por vezes trágicos aprendizados coletivos, exaustivamente repetidos.

Referíamos, no entanto, a dois caminhos: a política e a educação. Estas duas funções sociais estão geralmente entrelaçadas de forma intensa e complexa. Sobretudo no sentido de política como “cuidado da polis” e educação como formação do sujeito responsável pela co-gestão da polis. De forma tal que não se faz educação sem um projeto político e não se faz política sem repercussões educativas. E isto se torna evidente, por exemplo, quando vemos expostas diariamente na mídia, todas as mazelas da luta pelo poder. Tal exposição é necessária pelo fato de que na política já não se sobrevive sem ela, pois que a representatividade política, cada vez mais, se constrói em termos de imagem midiática. E a coisa é truculenta e ardilosa. Um campo de batalha para os mais fortes nas astúcias e baixarias. O que, em termos pedagógicos, não é nada construtivo, apesar dos esforços cosméticos da mídia.

Neste contexto se destacam, sobretudo, as famigeradas “Comissões de Ética” das instituições parlamentares, cuja função acabou se restringindo a zelar por uma fachada de moralidade, cada vez mais esgarçada e ruinosa. Esta fachada já não consegue esconder a ruína de um moralismo meramente decorativo, visto que parece se preocupar apenas (e por sinal dá conta muito mal dessa tarefa) com questões de “decoro”. Verificamos, no caso, um grave equívoco teórico com uma total deturpação da verdadeira função ética. Por um lado, ao confundirmos a função ética com a mera manutenção de uma fachada de moralidade. Moralidade esta, completamente insustentável porque absolutamente ruinosa e decadente. E aqui, nunca é demais ressaltar, não se trata de um fenômeno que afeta apenas a dita “classe política”, mas a sociedade como um todo, visto que a crise dos valores tradicionais se tornou inevitável. Tais valores se tornam questionáveis na medida em que constituem os fundamentos de uma sociedade patriarcal, desigualitária, injusta e cínica, insustentável como projeto histórico. Por outro lado, porque nos falta uma verdadeira função ética, capaz de dar conta de uma perene criação e re-significação dos valores. Os moralismos de fachada, aos quais preguiçosamente nos acomodamos, apenas reproduzem as mesmas mazelas e, assim, adiam e emperram a verdadeira criação ética.

Desponta aí também a grave deficiência educacional que negligencia cada vez mais a formação cultural e espiritual, com sua ênfase unilateral na formação técnica, visando apenas tornear peças humanas para a máquina universal do mercado. É importante, sem dúvida, promover a formação técnica e pensar na inclusão no mercado de trabalho e no desenvolvimento tecnológico. Mas negligenciar, com isso, a formação humana e cidadã pode ser eticamente e, por conseqüência, socialmente desastroso, na medida em que nos condena à mera reprodução de valores alheios. A criação de novos valores éticos e a permanente re-significação dos valores tradicionais exige um vivo enraizamento cultural. Mas exige, também, coragem e ousadia para criar, experimentar e transformar. Daí decorre uma saudável crise de crescimento e transformação. Muito diferente da crise de estagnação e reprodução automática da mesmice, com a qual nos debatemos hoje.

A cultura brasileira poderá se afirmar como uma nova perspectiva ética para a humanidade. Mas para isso é imprescindível pensar a sério a educação. E, sobretudo a sua dimensão cultural e espiritual (dimensão esta ainda confundida e reduzida, mesmo em muitos meios pretensamente cultos, à função religiosa). Os esforços locais mais autênticos nesta direção continuam sendo substituídos por fórmulas milagrosas de espertas consultorias internacionais, das quais nós os espertospelapróprianatureza somos ainda incapazes de abrir mão. Seria apenas mais um jeito de desviar “algum”? Ou, pior que isso, seria nosso incurável complexo de inferioridade ou o mesquinho auto-boicote de nossas simiescas elites? Seja como for, não podemos esquecer que o ônus da falta de criação é a repetição do mesmo e a submissão aos valores alheios.

Somos ainda um misto de culturas em estágios primários de caracterização própria. Mas, talvez também, prematuramente emperrada em vários aspectos. Nada nos assegura um futuro de autonomia, a não ser uma vigorosa vitalidade criadora de valores e sentidos próprios, mediante intensa criação cultural capaz de mobilizar toda nossa rica diversidade. Tal tarefa requer uma construção ética arrojada. Para isso, a ética deve ser lançada numa perspectiva artística de composição e expressão original daquilo que temos de mais vivo, rico e generoso. É importante ressaltar que nossa rica diversidade cultural está acima de qualquer valor, na medida em que ela, em si, constitui a própria fonte geradora de valor e sentido.

Peço licença e me desculpo por introduzir aqui meu caso pessoal que, na medida em que não constitui um fato isolado, se revela sintomático do que vínhamos analisando. Sou um professor de filosofia com doutorado e especialização em ética. Sou também um desempregado. Não posso deixar de observar que fosse, acaso, defensor de corruptos e estelionatários ou armador de negociatas, provavelmente não me faltaria trabalho, bem como, quem me pagasse regiamente por tais serviços. Encontro-me, no entanto, na constrangedora e desmoralizante situação de não ter a quem oferecer meus melhores préstimos, depois de ter usufruído privilegiados recursos públicos (bolsas CAPES e CNPq) para minha formação, quando sabemos que muitos concidadãos não têm acesso sequer a um curso de alfabetização. Não se trata, obviamente, de lamentar o quanto a vida é injusta o que, no caso particular, nem seria verdade, mas de analisar o que, como sociedade, estamos valorizando e reforçando.

Considero que esta situação pessoal tem muito a ver com o que está ocorrendo na educação. Também neste âmbito, nossa potência criadora está sendo mobilizada e canalizada, sobretudo, por interesses comerciais. E assim inventamos a “educação caça-níqueis”, através da qual, simplesmente, “formamos” “professores” que já nem sequer freqüentam salas de aula no seu processo de formação. Trata-se de cursos de licenciatura inteiramente ministrados à distância, com a mera assistência remota de “técnicos em educação”. Talvez seja adequado, visto que estes “professores” também já não terão alunos e provavelmente nem mesmo trabalho. Pois que alguns poucos técnicos darão conta de milhares de alunos, repassando automaticamente o conhecimento contido em cartilhas eletrônicas e respondendo às suas dúvidas com respostas prontas e decoradas, como atendentes de “telemarketing”.

Talvez assim, por um milagre comercial e técnico, alcancemos, enfim, a escolarização universal. Em vez de “caros” e “problemáticos” professores, computadores e técnicos bem treinados. Em vez de salas de aula, um computador em cada barraco e em cada grota do sertão mais remoto. Um só rebanho pacífico de ovelhas isoladas e devidamente nutridas de conhecimento eletrônico, remoto e inútil. Aliás, quanto mais remoto e inútil melhor. Toda informação acessível, com exceção, apenas, dos manuais de códigos e senhas secretas que permitirão manipular este rebanho. Estas informações estarão disponíveis apenas para os poucos privilegiados que freqüentarão “presencialmente” as escolas de elite. Para os demais, uma “educação de caça-níqueis caseiros” com doses mínimas de conhecimento para cidadãos também mínimos.

Ponderando: não sou contra o uso e a popularização de recursos tecnológicos em educação. Acho mesmo que tais recursos já deveriam ser empregados de forma ampla e maciça, promovendo, por exemplo, a necessária inclusão digital. Mas pretender formar cidadãos e professores sem o imprescindível espaço de interação, comunicação e diálogo que constitui a sala de aula é, sem dúvida, uma simplificação abusiva que vem no pacote da crescente mercantilização da educação brasileira. O uso de recursos tecnológicos, com a função de disponibilizar informação por meios informáticos, poderá contribuir significativamente para a melhoria da educação. Com isso, o professor poderia ser liberado para desempenhar outras funções de formação hoje negligenciadas e cada vez mais vitais, tais como: acompanhamento, orientação e motivação individualizada dos alunos. Além de fazer da sala de aula um momento e um espaço coletivo privilegiado de interação e exercício de diálogo cidadão, de cooperação e de responsabilidade compartilhada. No entanto, da forma como vem sendo implantado hoje em diversas instâncias educacionais, o ensino à distância não é apenas um atentado contra a educação, mas também contra o direito do consumidor, talvez um dos poucos que ainda nos restam, na medida, é claro, em que tivermos com o que pagar.

Constatamos, com isso, que a educação (ou seria um mero comércio de diplomas?) virou mercadoria e está sujeita às leis de mercado com barateamento de custos para incremento dos lucros.

Resta, no entanto, ainda a crescente legião de excluídos que freqüentam as escolas públicas de periferia, onde em espaços que mais parecem cadeiões com grades por todos os lados, se pratica uma socialização pela violência, com as gangues ditando as ordens. Mas, para o controle destes, já temos também as elites de exterminadores. É evidente que também a polícia tem sua função educadora com suas ações de caça humana sumária, cobertas pela mídia e transmitidas ao vivo em redes de televisão. Ou protagonizando obras ficcionais de cinema e televisão que se esmeram em cenas de crueldade e exemplaridade para nada ficar devendo à realidade. Provocamos, assim, um gozo de catarse vingativa de cidadãos cada vez mais acuados pela violência e encurralados em seu isolamento particular, afastados de qualquer participação política. Participação esta, que, para o cidadão acomodado em seu isolamento e moralmente justificado na omissão, deixou de ser uma atividade decente para gente honesta.

A educação tem vários meios. A política também! Mas o que estamos construindo através delas? Como estamos construindo os meios de participação efetiva, que constituem a base imprescindível de toda democracia? Os espaços nos quais cada cidadão possa exercitar diretamente sua sensibilidade e consciência ética e social, expressando sua opinião e visão das coisas? Não estamos, antes, aprofundando o abismo social, ao promover a apatia e o isolamento dos cidadãos, com uma educação meramente técnica e utilitária em seus fundamentos e em seus horizontes, e ao eliminar um dos mais importantes espaços de interação social e aprendizado democrático que é a sala de aula? Eliminamos, assim, um dos poucos espaços que nos restam e no qual era possível interagir em torno de idéias e práticas sociais. Fora isso, só monólogos e cartilhas prontas. É claro que a sala de aula é um lugar problemático e deve ser mesmo o espaço em que os problemas possam aflorar para serem trabalhados. Evidentemente, é um espaço obsoleto para o simples repasse de informações, mas deve ser privilegiado, mais do que nunca, como espaço de construção interativa e valoração de saberes e de exercício de diálogo cidadão, responsabilidade compartilhada e confiança mútua.

Os valores que afirmamos através da prática cotidiana é que conferem sentido e constituem as potências que mobilizam a construção da sociedade que teremos. É nesta perspectiva que é imprescindível perguntar: quais valores estamos efetivamente construindo através da política e da educação que praticamos? Não a forma como teorizamos ou idealizamos tais práticas, mas a maneira como efetivamente elas se dão entre nós? E aqui refiro explicitamente às escolas-cadeias com grades por todos os lados, com alunos e professores acuados; à repressão policial vingativa aos excluídos do mercado e da sociedade; à picaretagem comercial e ao isolamento social provocado pela “educação-caça-níqueis” via internet; e à falsa representação política construída por políticos-atores-midiáticos, completamente descartáveis. Aliás, menos descartáveis, apenas, do que a confiança e os votos que neles depositamos a cada nova eleição. Direito este, tão arduamente reconquistado e também tão rapidamente transformado em meio de legitimação dos “valores” da sociedade de consumo. Que, através do mercado capitalista globalizado, se estabelece, assim, como fonte única de valor e sentido para a existência humana. É imprescindível pensar a respeito. Pois são os valores que construímos no cotidiano das relações que definem o que realmente somos e seremos. O resto é apenas uma questão “decorativa”. Não nego a importância social, ética e política dessa função “decorativa”, mas isso é “pano para muitas outras mangas”.

Leopoldo Gabriel Thiesen é filósofo, educador e artesão. Autor da tese de doutorado: Por uma ética da transitoriedade na imanência: criação ético-estética para além da moral, defendida no Departamento de Filosofia da Unicamp. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Opará (Unimontes/UFU/Fapemig/Nepam-Unicamp) com o projeto: O pensamento artesanal dos sábios do Sertão: uma etnografia filosófica da relação homem-natureza no Sertão de Guimarães Rosa.

fonte: http://carosamigos.terra.com.br/


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