17/02/2008 17:52:40
Eles bebem demais, poluem e congestionam as ruas além da média, custam caro, são pesadões e por isso tendem a fazer vítimas fatais quando trombam com um veículo de menor porte. Há quem os considere o resultado do cruzamento de um tanque de guerra com um caminhão. Para os ambientalistas, melhor seria chamá-los de sujismundos do clima, tradução livre para a expressão climate pigs, usada com veemência cada vez maior em protestos mundo (desenvolvido) afora. Ganharam popularidade nos EUA há décadas, onde receberam o respeitoso apelido de SUVs, sigla em inglês para a expressão veículos utilitários esportivos, como passaram a ser conhecidos também por aqui. Nos EUA, são mais de 90 milhões de unidades rodando – ou tentando rodar –, com ligeira tendência de queda devido à alta do preço da gasolina e, em menor medida, alguma dose de consciência ambiental resultante da blitz midiática conduzida, em 2007, por Al Gore e o painel climático da ONU.
Em países como França, Inglaterra, Japão e Alemanha, a temperatura do debate público em torno do uso desses veículos também tem aumentado. Na linha de frente desse movimento, o prefeito de Londres e adversário de Tony Blair, Ken Livingstone, já os colocou na mira da sua retórica sempre afiada e prefere chamá-los de os “tanques de Chelsea”, numa referência ao bairro londrino onde viraram moda. Em pesquisa encomendada por Livingstone, sete em cada dez londrinos defendem medidas que desestimulem o uso dos SUVs, em linha com as intenções de Livingstone. Enquanto isso, por aqui... bem, por aqui Al Gore ficaria de cabelo em pé com o cenário que se avizinha.
Em 2007, o volume de vendas desse tipo de veículo cresceu bastante acima da média, já inflada, como se sabe, pela maior oferta de crédito e o barateamento dos importados decorrente da valorização do real. Enquanto a indústria automobilística instalada no País comemora seu recorde histórico de produção, com quase 3 milhões de unidades fabricadas, os emplacamentos dos SUVs nas cidades brasileiras aumentaram nada menos que 41%, chegaram a 108 mil unidades e demonstram uma inequívoca tendência de aceleração. Apenas em janeiro, de acordo com a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave), 10,7 mil novos veículos de grande porte foram emplacados, o que representa um crescimento de 60% em relação a janeiro de 2007. Na cidade de São Paulo, o principal mercado consumidor do País, mais de 3 mil novos carrões ganharam as ruas em janeiro. A situação no caso paulistano é especialmente preocupante; a cidade possui a terceira maior frota de veículos do mundo, com um total hoje superior a 6 milhões de unidades.
Ainda que muitos considerem essa situação inevitável, há quem queira tornar público esse debate e mudar o rumo das coisas. “Esse é um fenômeno que vai na contramão da história. Não é razoável que a indústria automobilística invista nesse segmento, mesmo porque, uma vez no mercado, esses veículos circularão por 20 ou 30 anos”, afirma o físico Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobrás e atual diretor do Coppe, centro de pesquisas ligado a temas ambientais e energéticos da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de artigos a favor da proibição do uso dos utilitários, como parte de um esforço para reduzir o consumo de combustíveis fósseis, Pinguelli chama a atenção para o fato de que os utilitários tiveram seu uso deturpado nas últimas décadas. “Usar um veículo desses nas fazendas faz sentido, mas nas cidades não tem lógica nenhuma.”
Na perspectiva das montadoras, as coisas não são bem assim. Espremidas pela concorrência crescente e a alta do custo de matérias-primas como o minério de ferro e o aço, os fabricantes de veículos encontraram nesse segmento um meio de aumentar suas margens de lucro. De acordo com especialistas, a lucratividade chega a 25% na venda de um utilitário, muito acima dos 5% estimados para os veículos ditos populares, o que serve para explicar o fato de os carrões ocuparem posição de destaque nas campanhas publicitárias da indústria automobilística.
Embalados pela sensação de segurança, conforto e distinção social que esse tipo de carro tende a proporcionar, os consumidores sabem que a presença deles nas ruas congestionadas da cidade nem sempre é vista com bons olhos. Por conta disso, têm lá seus argumentos para enfrentar as críticas crescentes. “O trânsito é caótico, a cidade não é bonita, tudo é hostil e perigoso. Estar num Land Rover dá um conforto. Me sinto numa bolha, é isso”, resume Sérgio Brandão, diretor-geral da agência de publicidade G2 Brasil, há dois anos rodando por São Paulo com um modelo da marca inglesa. O campo de visão acima dos demais veículos também ajudaria a passar a idéia de distanciamento dos riscos do asfalto paulistano. A satisfação só não é completa por causa do consumo de combustível, mas ele aguarda inovações tecnológicas para, eventualmente, rever sua posição. “Infelizmente, não há opção no mercado. Eu até trocaria um pouco do design e do conforto para ter um carro mais responsável, mas oferecer isso é uma questão da indústria”, afirma. Nas cidades brasileiras, a situação fica mais grave por conta da precariedade do transporte coletivo, especialmente em relação às linhas de trens e metrôs.
A indústria automobilística também apresenta sua defesa. As principais marcas informam que, nos últimos anos, investem pesadamente em motores mais eficientes e menos poluentes. Chegam a adotar alguns dos mecanismos prescritos pelo Protocolo de Kyoto, como o mercado de créditos de carbono, para reduzir o impacto ambiental. É o caso da Land Rover, que há 60 anos lançou o modelo Defender, tido como pioneiro nesse segmento. De acordo com a fabricante, as emissões de carbono de suas duas fábricas no Reino Unido são neutralizadas por meio de reflorestamento ou pela compra de créditos no mercado internacional de carbono. Os primeiros 60 mil quilômetros rodados com um Land Rover também seriam neutralizados por conta desses expedientes, considerando apenas as vendas da marca na Inglaterra. Instalada há 17 anos no Brasil, a fabricante comemora o recorde de vendas em 2007, com 3.150 unidades, 57% acima do resultado do ano anterior. E projeta crescimento de 30% para este ano no mercado brasileiro, o maior da marca na América Latina, seguido de Chile, Costa Rica e República Dominicana. A combinação de robustez, luxo e tecnologia seria, conforme o diretor de marketing e vendas no Brasil, Luiz Tambor, o ponto forte do “conceito SUV”. Para rebater as críticas, menciona, como outro exemplo de preocupação ambiental, o aperfeiçoamento dos motores.
O motor utilizado atualmente seria mais potente e, ainda assim, emitiria menos gás carbônico. A diferença, entretanto, não chega a empolgar – de 303,4 gramas por quilômetro, a emissão do novo motor usado caiu para 303 gramas por quilômetro, com um ganho de 45% no torque. Já um veículo médio emite cerca de 220 gramas por quilômetro. Além disso, a Land Rover estuda utilizar um dispositivo que desliga o motor quando o carro está parado. “Ainda nesta década devem chegar ao mercado modelos Land Rover com motores híbridos e multicombustível. Também passaremos a usar materiais mais leves e recicláveis nas carrocerias”, afirma Tambor.
Do ponto de vista econômico, o consumo elevado de combustível não é a única desvantagem dos utilitários. Além de gastar mais combustível – alguns modelos rodam menos de 6 quilômetros com 1 litro de gasolina –, sua manutenção também custa mais caro. Nos EUA, o proprietário gasta anualmente algo próximo de 11,3 mil dólares em combustível, manutenção e impostos, enquanto um modelo pequeno custaria 8,4 mil dólares, uma diferença de 35%. Mas números como esses dificilmente sensibilizariam um consumidor disposto a gastar, digamos, 80 mil reais por um automóvel, quando alguns modelos “top de linha” chegam a custar mais de 300 mil reais. Vistos como uma vantagem pelos compradores, esses números superlativos servem de munição para os críticos. “Considero esses veículos sobredimensionados, e não só pelo consumo de combustível, mas também de aço, vidro, borracha. É um mau exemplo”, diz Pinguelli Rosa.
Mais alarmantes são os estudos que demonstram que, a despeito do marketing, esses veículos tendem a ser menos seguros que os de menor porte. De acordo com o departamento nacional de transportes dos EUA, o número de capotagens envolvendo utilitários é três vezes maior que o de acidentes semelhantes com veículos de passeio. Além disso, as capotagens ocorreram em 32% dos SUVs acidentados, ante apenas 3% dos veículos de passeio acidentados. Mais grave é quando um acidente envolve um carrão e um veículo de porte médio ou pequeno. Pesando em alguns casos até 1 tonelada a mais, o resultado é que a chance de os passageiros do veículo menor se ferirem gravemente aumenta exponencialmente. Na ponta do lápis, para cada vítima fatal transportada por um SUV, existem 16 vítimas fatais que viajavam no veículo menor.
Apesar desses números, reverter o quadro é algo ainda longe de acontecer. “Poderíamos ver essa tendência como algo positivo, se pensarmos que as vendas de automóveis resultam da maior disponibilidade de renda das pessoas. Também geraria mais empregos e impostos, o que também seria positivo. Ocorre que hoje temos limites a essa forma de desenvolvimento. E esses limites estão sendo ultrapassados”, afirma o empresário Oded Grajew, um dos idealizadores do Movimento Nossa São Paulo, criado para tentar reverter a deterioração da qualidade de vida na cidade. Grajew cita o exemplo de outros países que estão incentivando o uso do transporte coletivo, na mesma medida em que desestimulam o uso de veículos de passeio, especialmente aqueles menos econômicos.
Ex-secretário de Meio Ambiente do estado de São Paulo, o físico José Goldemberg considera que nesta queda-de-braço a indústria automobilística tem levado a melhor. “Essa é uma indústria muito forte. E essa força explica inclusive por que os Estados Unidos não assinam o Protocolo de Kyoto. O crescimento da venda desses veículos no Brasil é uma péssima notícia, vai na direção contrária ao que se deseja”, avalia. A análise do deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ) também vai na mesma direção. Gabeira pretende apresentar um projeto de lei que propõe a redução dos limites de emissão de poluentes, na mesma linha do que o governo norte-americano fez no fim do ano passado. Mas considera que dificilmente conseguirá aprová-lo. “Considero reduzidas as chances de êxito desse projeto, levando em conta o poder da indústria automobilística e as características do Congresso brasileiro”, afirma o deputado. Ainda que não vire lei, o projeto poderá servir como um elemento a mais, avalia Gabeira, na “luta de idéias” que precisa ser travada por aqueles que, como ele, defendem um novo modelo de desenvolvimento. Além de discutir seu projeto de lei, o deputado pretende estudar a legislação para saber se é possível elevar o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) que incide sobre esses modelos. “Na esfera local, também me parece razoável que os veículos de maior porte paguem mais nos estacionamentos públicos, como os existentes no Rio de Janeiro”, avalia o deputado.
A médio prazo, a solução seria enfrentar a histórica precariedade do transporte coletivo no País, concordam os especialistas. E, a curto prazo, incentivar formas alternativas de transporte, como a construção de ciclovias e a ampliação do uso de biocombustíveis e ônibus movidos a hidrogênio. “Se não mudarmos o transporte público, não adianta nada mudarmos a matriz energética”, afirma a química Adalgiza Fornaro, professora do Departamento de Ciências Atmosféricas da USP. Para a professora, é fato que a emissão de poluentes tem caído no caso dos motores mais modernos, especialmente dos poluentes. O problema é que a queda é minimizada por conta da quantidade crescente de veículos e da manutenção, que, se não for bem-feita, aumenta o volume de poluentes emitidos. “A saída passa por melhorar o transporte público. Temos no País o exemplo de Curitiba. A questão é saber por que o modelo de lá não vingou”, avalia.
*Colaborou Phydia de Athayde - fonte: http://www.cartacapital.com.br
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