segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Entrevista com diretor do documentário "Pro Dia Nascer Feliz", João Jardim - fonte: http://carosamigos.terra.com.br/

Entrevista

Entrevista - JOÃO JARDIM


O cineasta João Jardim fala de seu segundo longa-metragem, o documentário “Pro Dia Nascer Feliz”, filmado em seis escolas brasileiras. O filme, que fala da adolescência e sua relação com a escola, foi premiado com quatro Kikitos e eleito melhor documentário na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Entrevistadores: Marina Amaral, Marcos Zibordi, Thiago Domenici, Juliana Sassi, Sofia Amaral, Juliana Pacheco.
Fotos: Cazu

Marina Amaral – Já que seu filme trata de adolescentes, poderíamos começar pela sua adolescência e sua relação com a escola. Como você viveu essa fase?
Tive uma vida de adolescente bem classe média mesmo, escola particular no Rio de Janeiro. Para mim, a questão da escola é como a descrevo para os adolescentes: ela é importante, mas não aparenta ser porque o que a gente leva mais da adolescência são as nossas dificuldades, as coisas boas, o que a gente viveu ou não viveu. Não tenho nenhuma história mais específica para contar da escola, não era muito bom aluno nem muito ruim... Poderia falar mais do meu problema de visão na escola, mas esse tem a ver com o outro filme...

Marina Amaral – O Janela da Alma...
É. A questão desse filme (Pro Dia Nascer Feliz) é mais relacionada a um incômodo meu em relação a uma situação social, enquanto o Janela se relacionava muito com a minha adolescência, essa coisa de usar óculos e ter dificuldade de fazer esporte, perceber o quanto os óculos estigmatizavam naquele momento. Mas não tenho muito para contar sobre as escolas em que estudei, eram sempre medianas, mas aprendia, sabe? O problema é que sempre quis fazer cinema, então sempre achei que a escola não falava nada a respeito daquilo que mais me interessava.

Marina Amaral – E você se interessou por cinema apenas assistindo aos filmes?
Assistindo aos filmes. Acho que aprendi mais no cinema do que... Não. Não dá para dizer isso de uma maneira verdadeira, porque acho que na escola também aprendi muita coisa, aliás, o trabalho da escola é ensinar a pensar. Mas, sobre a vida, como são as pessoas, valores éticos, acho que aprendi mais vendo filmes. E até desenvolvi esse jeito de observar, sou muito observador.

Marina Amaral – E como você chegou ao tema “escola”?
Esse tema partiu de duas coisas. Primeiro, de uma razão prática, porque há tempos eu estava fazendo uma pesquisa sobre gravidez na adolescência para um possível filme e percebi que o discurso dos adolescentes de todas as classes sociais era muito antagônico à escola. Lógico, o adolescente naturalmente é do contra, mas achei um pouco exagerado, como se realmente houvesse um conflito. E a escola também reclamava muito do adolescente, falando que ele não quer estudar, não quer saber, não está interessado em aprender. Então encontrei um conflito, o que é necessário para fazer um filme. A isso se junta uma coisa pessoal minha, de querer fazer um filme para falar da desigualdade, para tentar melhorar o Brasil, ao que remete o título do filme: meu desejo de discutir um tema que eu acho da maior relevância, de uma maneira subjetiva. O filme fala daquilo que a gente já sabe, mas de uma outra forma. Não traz informação nova, mas traz outro olhar, um conhecimento emocional que permite outras reflexões.

Marcos Zibordi – É engraçado você ter falado do título, porque lembra a música do Cazuza que não tem muito a ver com o tema, é uma história de amor... Foi uma tentativa de se aproximar do adolescente?
Com certeza. Eu tinha a preocupação de fazer um título que não tivesse proximidade com o universo educacional porque isso seria ruim para o filme, mas que tivesse proximidade com o universo adolescente. Mas o título é uma escolha pessoal, é uma coisa muito difícil, quase como um filho. Desde o início, quando o filme ainda era projeto, sempre teve esse nome.

“Os professores têm de ser preparados para ensinar alguém que nunca viu um livro em casa, nunca foi a um cinema. E aí vêm as pesquisas: 60 por cento dos alunos não aprenderam – e por que não aprenderam?”

Marcos Zibordi – Essa questão da proximidade é interessante porque no filme fica evidente que, salvo raras exceções, os professores só estão próximos fisicamente dos alunos. Na sua opinião, a responsabilidade maior pelo processo está na mão do professor?
Na verdade, não dá para responsabilizar ninguém pelo problema e, ao mesmo tempo, dá para responsabilizar todas as pessoas. Sou contra aquele discurso de que o Brasil foi colonizado, a escravidão só foi abolida há cem anos etc. e tal. Acho que a gente já está bem crescidinho, já podia ter se conscientizado e mudado essa realidade. Mas é um sistema muito arcaico, difícil de mudar. As pessoas não querem mudar a escola, a maneira de ensinar...

Marcos Zibordi – Quando você fala as pessoas, está abrangendo aí o professor, o diretor...
Todo mundo. A instituição escola não está funcionando desde que ela se tornou mais democrática, ou seja, antes existia uma escola para a classe média, não é? Aquela escola que todo mundo lembra que era boa. Só que era boa porque os alunos traziam de casa uma bagagem muito maior, então o professor só tinha que transmitir o conteúdo. Quando a escola ampliou e passou a atender a maior parte da população, começou a receber crianças que tinham que aprender tudo dentro da escola. Essa é a realidade, o povo brasileiro nunca teve escola antes, agora tem, mas a escola não se adaptou para lidar com alunos cujos pais não tiveram formação alguma, que não podem olhar o caderno do filho quando chegam em casa porque não aprenderam o que os filhos aprendem. E os professores também foram formados num tipo de universidade que nunca considerou esses alunos, e que continua não considerando. Agora até talvez esteja mudando, mas ainda não tem essa percepção de que os professores têm de ser preparados para ensinar alguém que nunca viu um livro em casa, nunca foi a um cinema. E aí você lê nos jornais as pesquisas: 60% não aprenderam – e por que não aprenderam? E essa coisa de falar “ah, porque estão mais interessados na Internet” não é verdade.

Marcos Zibordi – Nãoproblema nenhum com a Internet...
Não, exatamente... Só ajuda. Então, é porque eles estão mais interessados no que está fora da escola? Sempre foi assim! O que falta é esse conhecimento de como ensinar pessoas que chegam muito cruas à escola. Desconstruiu-se a forma anterior de ensinar, que talvez não fosse boa, mas não se criou outra. O professor fica lá, ensina, e não aprendem. Lógico, se estiver numa condição ideal, uma turma de 25 alunos numa escola toda bonitinha, aprende. É verdade. Só que essa não é a realidade brasileira e nem vai ser, então é preciso desenvolver uma tecnologia de como ensinar essas pessoas numa turma de quarenta e poucos alunos, numa escola mais ou menos destruída. E é essa mudança que se precisaria fazer no currículo, na forma de ensinar, porque a dinâmica dentro da sala de aula é praticamente igual àquela que existia há vinte anos, quando quem chegava lá éramos nós, a classe média.

Thiago Domenici – Eu acho que um dos grandes problemas do ensino é o método de avaliação, muito punitivo. Você acha que isso influencia também?
Cara, eu acho que esse problema vem depois. Uma das coisas mais danosas é a falta de avaliação que existe na escola em geral. É preciso avaliar mais do que se avalia, porque uma das coisas mais tenebrosas é que um professor que não consegue ensinar é tratado igual ao que consegue ensinar, e este não tem reconhecimento algum, nenhum benefício. Imagina se você, no seu trabalho, não tivesse possibilidade de reconhecimento. Para mim, essa questão, a da não-avaliação do professor, vem antes da questão de como avaliar o aluno.

“Uma das coisas que mais me revoltaram enquanto fazia o filme foi ver o sofrimento do professor. A desmotivação que o professor sofre é enorme.”

Marina Amaral – E o desrespeito dos alunos em relação aos professores? Também não desestimula o professor?
Mas isso é uma outra questão também. A gente vive numa sociedade muito violenta, uma sociedade que oferece uma escola ruim. E na fase da adolescência há vários motivos para o desequilíbrio emocional. É normal esse desequilíbrio, na adolescência você está descobrindo um monte de coisas, muitas delas ruins. O que o aluno faz é expressar sua revolta com a sociedade perante aquela pessoa que simboliza o sistema. E o professor teria de saber que quando o aluno o agride, dizendo “vá tomar no cu”, isso se relaciona a outras questões, ou ao ambiente em que vive. Na medida em que o professor tiver conhecimento de que aquilo não é pessoal, de que aquilo é um comportamento do jovem na sociedade do século 21, dentro do caos urbano que a gente vive no Brasil... Então acho que o professor teria que ser instrumentalizado para lidar com essa violência sem se ofender tanto, porque uma das coisas que mais me revoltaram enquanto fazia o filme foi ver o sofrimento do professor. A desmotivação que o rofessor sofre em função do comportamento do aluno é enorme, realmente o aluno é muito violento, mas isso não vai mudar. O que pode mudar é preparar o professor, dar subsídios para ele encontrar forças para lidar com isso sem se abalar tanto.

Marina Amaral – E a escola fica com muitos problemas para lidar, como aparece na cena do conselho de classe, não é? Os professores estão numa sinuca, porque, se reprovam o menino que não sabe nada, mas parece estar se regenerando, podem estar tirando sua chance de escapar à marginalidade.
Por isso que os professores teriam que chegar à escola melhor instrumentalizados. O currículo que forma o professor não lida com essas questões, não o prepara para a realidade que vai encontrar. Não é que ele não saiba ensinar, mas ele não sabe lidar com os adolescentes violentos e desinteressados.

Juliana Sassi – A que você atribui essa desvalorização do professor?
É uma questão ampla, professor tem muito emprego.

Juliana Sassi – E ganha mal...
Ganha mal, mas isso é relativo. Ganha mal para quem? Para que classe social? Hoje em dia tem muitas professoras que são filhas de empregadas domésticas, de porteiro. Nesse caso é uma ascensão social.

Juliana Sassi – Mas é uma profissão desvalorizada.
É uma profissão desvalorizada, com certeza. Mas o que eu estou dizendo é que, como não tem desemprego para professor, é uma profissão que atrai muita gente que precisa de trabalho, mas que não se compromete muito. Além disso, o fato de serem muitas pessoas torna difícil aumentar o salário, sem falar na questão da falta de avaliação do trabalho deles que já falei.

Marina Amaral – Como os professores te receberam? Porque os alunos, imagino, gostavam de falar...
Variava, variava. Eles desconfiavam muito, né?

Marcos Zibordi – Alunos também?
Todos.

“As pessoas que dominam o pensamento sobre educação continuam sem ver que a escola não funciona para mais da metade dos alunos.”

Thiago Domenici – O que perguntavam pra você?
Perguntavam como seria o filme, se era para falar mal da escola, falar mal do professor... Mas, repito, não acho que a culpa é do professor. O professor é mais um na engrenagem de um sistema muito grande, muito difícil de modificar, até porque não se vê uma decisão nesse sentido, de mudar a escola porque não está funcionando. Imaginem uma fábrica em que só 40 por cento dos carros andam; é óbvio que a linha de montagem seria mudada radicalmente. Mas as pessoas que dominam o pensamento sobre educação continuam sem ver que a escola não funciona para mais da metade dos alunos. Elas não assimilam essa falência, falta percepção sobre a realidade dentro da escola. E aí não tem jeito. Vejam, por exemplo, a questão da progressão continuada. Na teoria, está certíssima, surgiu porque se descobriu que cada aluno aprende uma coisa com determinada idade, então não adianta avaliar no primeiro ano porque alguns alunos só vão aprender aquilo depois. O melhor seria avaliar só na quarta série. Mas não deu certo porque, na prática, o que acontecia? Os professores do terceiro ano pegavam alunos que não tinham aprendido nada desde o primeiro ano. E, além disso, os professores não gostavam do sistema de progressão continuada e sem o convencimento do professor nada funciona. Muito do que se vê hoje é fruto desse fracasso, porque os alunos vão passando de ano sem aprender, então cada vez vão tendo notas piores.

Thiago Domenici – Como foi feita a escolha das seis escolas abordadas no documentário?
Levamos em conta duas coisas. Primeiro, a variedade de locais e realidades, por isso São Paulo, Rio e Pernambuco. Depois, os temas que queria abordar: violência na escola, falta do professor, enfim, eu ia procurando escolas que revelassem esses conflitos. Também tinha o fato de a escola me receber bem, porque eu tinha que perceber que não seria interrompido no meio do trabalho – foram muitas idas a cada escola –, senão haveria um problema de produção enorme.

Sofia Amaral – E foi difícil achar escolas receptivas?
Com certeza. E também acontecia de a escola permitir em um primeiro momento e depois, quando eu voltava lá, diziam: “Ah, agora não pode”. E aí como continuar o filme? Por isso fiquei com aquelas em que senti uma cumplicidade da direção em relação ao filme, não bastava uma autorização para filmar lá uma semana.

Juliana Pacheco – E o roteiro você fazia sempre em função da pesquisa?
Totalmente em função da pesquisa. Também fui editando no decorrer. Filmei a primeira parte, editei uma parte, filmei a segunda parte, editei mais um pouco e ainda fiz uma pequena filmagem depois.

Juliana Pacheco – Aquela parte em que você fala da violência você fez depois? Que fala da menina que matou a outra...
Foi depois, mas eu já estava com a idéia de fazer, é que demorou muito a autorização para entrevistar a menina.

Marina Amaral – Você escolhia a escola e surgiam os personagens?
Tudo ao mesmo tempo. Isso também foi outra coisa determinante. Porque como o filme não é uma pesquisa e sim uma amostragem, a escolha tem muito a ver com processo intuitivo, de eu achar que ali tinha personagens e escola boa. As duas coisas contavam.

Marcos Zibordi – Porque, inclusive, a menina de Pernambuco é uma personagem tão forte, que a gente imagina que...
Ela surgiu quando a gente já estava nas filmagens. Íamos fazer a entrevista com uma outra menina, a Viviane, que a gente tinha pesquisado, mas, quando a gente viu a Valéria... Documentário tem muito disso, você tem que estar aberto para o acaso.

Marina Amaral – Você entrevistou vários adolescentes antes de filmar...
Vários. Houve muita pesquisa, muita conversa com muitos adolescentes, em que eu testava as perguntas, os assuntos, os temas...

“É inesperado você ver mulheres se pegando, se batendo, ameaçando, matando uma a outra... Na minha época, a violência era entre homens.”

Marina Amaral – E o resultado te surpreendeu ou você foi a campo sabendo o que ia encontrar?
Surpreendeu totalmente. Nem saberia dizer o quê, foram muitas coisas inesperadas. A Valéria, aquela pessoa preciosa que é, a intensidade da violência entre as mulheres, as alunas. É inesperado você ver mulheres se pegando, se batendo, ameaçando, matando uma a outra... Na minha época a violência era entre homens. Mulher hoje, em dia, está tão violenta quanto homem, ou mais.

Marcos Zibordi – Tem uma parte do filme que mostra o que a scola consegue e o que não consegue, que é a entrevista daquele garoto do Rio: ele não quer saber de nada, mas à banda ele se dedica. Muita gente critica essas iniciativas extracurriculares como pura diversão, sem valor educativo. O que você acha desse tipo de iniciativa?

Eu acho que criticar essas iniciativas é de uma burrice absurda. Quando você fala “ah, eu vou ter aula de teatro na escola”, claro que não é para se tornar ator. Na verdade, essas atividades são importantes para o aluno desenvolver um laço afetivo com a escola, para que ele possa expressar os sentimentos dele e aceitar se submeter a um determinado tipo de disciplina porque aquilo o interessa. Submeter um aluno rebelde a uma disciplina é uma vitória, mesmo que a disciplina só apareça quando ele vai para a banda. É isso que as pessoas não enxergam: aquele menino não vai ser músico, e nenhuma das pessoas que fazem aquele projeto na escola acha que está formando um músico. Aquela banda tem três objetivos: desenvolver um laço afetivo dos alunos com a escola, submetê-los a uma disciplina e dar-lhes a oportunidade de ser protagonistas. O resto vem em segundo plano. O processo de criação do fanzine é a mesma coisa. A adolescência é uma fase deprimida mesmo, muita gente pensa em se matar, o que não quer dizer que vão se matar de fato. Então, você tem que dar a eles a possibilidade de expressar os sentimentos naturais da idade, até para não xingar o professor. O depoimento da Natalie é impecável em relação a isso: antes, ela não queria saber de fazer nada, só queria saber de comer e dormir, aí ela começou a escrever poesia no fanzine da escola... Ela não vai ser poeta, nem queria isso...

Marcos Zibordi – Ainda sobre essa pequena passagem, fiquei impressionado porque a professora que toca o projeto do fanzine me pareceu a mais serena do documentário. Parecia uma pessoa realizada, enquanto as outras têm um semblante de tristeza, de decepção...
Mas a Celsa teve síndrome do pânico na sala de aula no ano seguinte! É por isso que insisto na questão do preparo emocional do professor. Você vê pessoas como ela, de coração muito aberto, sincera, envolvida no trabalho, se empenhando e aí surpreendida por aquela realidade de uma maneira muito intensa.

Thiago Domenici – Como é que se pode dar esse preparo para o professor?
Na universidade, nos cursos de capacitação é preciso haver essa preocupação com a forma como o professor se insere na escola. Ele precisa estar mais amparado em todos os sentidos, não é só “Ah, vamos ensiná-lo a dar aula, porque se ele der aula bem tudo se resolve”.

Sofia Amaral – Você deve ter assistido a muitas aulas em muitas escolas. O que você achou do conteúdo ensinado na maioria delas?
Essa questão do conteúdo é complicada, porque é preciso ensinar o que está no currículo e, para isso, o que existe realmente é um quadro-negro, uma professora e o aluno. Não tem como mudar isso.

Sofia Amaral – Mas você viu professores cometendo erros, por exemplo, ao ensinar história?
Não, isso não.

Sofia Amaral – Erros de português?
Não, não vi nada disso, o que vejo mais é assim: você ensina inglês durante um ano, chega ao final e os alunos não aprenderam. Seria o caso de ensinar diferente? Talvez mesmo no sentido do conteúdo, mudar um pouco o currículo. Eles até tentam, há livros didáticos melhores, existe uma evolução na forma de transmitir o conteúdo. Com certeza há professores despreparados, mas também tem muitos que são preparados do ponto de vista do conteúdo. Muitos. O problema maior é a questão de como lidar com quem não aprende. O cara que chegou ao segundo ano e não se alfabetizou vai para a aula de reforço escolar, que é sempre precária. Quando o aluno não aprende, qual é a deficiência? Como tratar essa deficiência? Precisa-se desenvolver uma tecnologia para lidar com aquele que não aprende.

“Também há os pais negligentes, mas acho que a violência é mais problemática. A violência de pai que bate na mãe, pai que rouba, não tem princípios éticos...”

Marina Amaral – A última cena do filme – as criancinhas carregando o prato de mingau e ainda procurando um lugar para sentar – dá uma sensação de abandono da meninada. Os adultos – pais e professores – não estão cuidando direito das crianças?
Não, eu não vejo assim. Acho que hoje em dia os pais têm uma grande preocupação com os filhos, mas também não os vejo muito instrumentalizados para educá-los. Alguns têm dificuldades por trabalhar muito, o sistema de transporte é precário em todas as grandes cidades, chegam tarde em casa e dão muito pouca atenção aos filhos. Outras vezes eles querem dar atenção, mas os filhos aprendem coisas que eles não sabem, não estudaram – a maior parte da população brasileira só fez até a quarta série. Também há os negligentes, mas acho que a violência é mais problemática. A violência de pai que bate na mãe, pai que rouba, não tem princípios éticos...

Marina Amaral – Ou pai que nem existe também...
Também é muito comum, e a mãe cuida de três ou quatro filhos. É muito complicada essa situação familiar. E não dá para cobrar da escola cuidar disso também, mas com certeza seria muito importante trabalhar essa questão com a família. O que tem muito é isto: pai ou mãe saem para trabalhar, fica um filho cuidando do outro, quem educa o filho menor é o mais velho, ou alguém da família ou da vizinhança E até nas famílias de classe média alta isso acontece, no filme tem uma menina do colégio Santa Cruz que fala que o pai não liga pra ela, só está preocupado com o trabalho. São duas problemáticas diferentes, mas os pais da classe média também têm muita angústia por causa de dinheiro ou trabalham demais...

Marcos Zibordi – Para continuar tendo dinheiro.
Exatamente. E as famílias muito desagregadas, um fruto da sociedade moderna, os pais casam várias vezes e aí o filho é criado pela mãe, a mãe trabalha, não tem dinheiro nem tempo...

“Ela mata a colega na escola, na frente de todo mundo, porque a escola é o local onde se desenvolvem as relações e eles têm que se afirmar naquele espaço.”

Thiago Domenici – E qual foi a sua sensação quando ouviu a menina que matou a colega falar que esfaqueou e tudo bem porque teria três anos de pena?
Ah, absurdo, e eu não podia expressar nada ali, né? Tem que ouvir...

Thiago Domenici – Ela está na FEBEM?
Não está aqui em São Paulo, está em outra cidade, até coloquei essa informação no DVD, porque acharam que era na mesma escola em que eu mostrei a briga das meninas.

Marina Amaral – Dá a impressão de que o filme vai discutindo os problemas normais da escola e da adolescência e, de repente, vem o caso da menina, que é muito forte, ultrapassa a reflexão. Como você vê esse caso no contexto do filme?
Acho que, na verdade, ele é a continuação do filme. Você tem aquela história da violência daquelas duas meninas contra a colega e percebe que o medo dessa garota era real, que se ela não tivesse saído da escola poderia ter acontecido uma coisa daquele tipo. O cotidiano deles já é muito violento, e aquilo... É que eu não posso dizer onde foi gravado, no documento que assinei ao entrevistá-la me comprometi a nunca revelar isso publicamente. Mas ela é de uma cidade muito violenta, então ela já tem toda uma...

Marina Amaral – Vivência de violência...
É. Das periferias. É difícil, mas achei que aquilo ali tinha a ver com o subtexto do filme, o protagonismo, a necessidade de afirmação dos adolescentes. Por que ela matou a outra na escola? Na verdade, aquilo está ali porque ela mata a colega na escola, na frente de todo mundo, porque a escola é o local onde se desenvolvem as relações e eles têm que se afirmar naquele espaço. Se o filme fosse didático, o que não pretende ser, ia querer dizer o que com isso? Que a escola precisa dar ao adolescente a oportunidade de ser protagonista, isso é que o realiza: ser reconhecido de alguma forma. Todos nós queremos ser reconhecidos dentro do nosso grupo e a escola precisa se conscientizar disso pra lidar melhor com essas relações.

Marcos Zibordi – Acho quedez anos ninguém imaginaria que os documentários seriam tão importantes e entrariam para a história do cinema dentro e fora do Brasil. Como você esse movimento de expansão do documentário?
Ah, eu não sei, cara, mas acho que no caso do Brasil é porque tem muitas pessoas que estão querendo pensar o Brasil de forma audiovisual, porque a gente precisa disso e não vê na televisão esse tipo de coisa. A televisão é muito focada na questão jornalística, as pautas são muito determinadas. O documentário é mais reflexivo mesmo e, tendo mais gente fazendo, tem mais chance de ter uma coisa boa.

Marina Amaral – E, mesmo nos filmes de ficção, em muitos a realidade política e social é o foco, mais do que o enredo.
Aí acho que é uma tendência, o exemplo mais forte disso agora é o Borat. É uma ficção feita documentalmente, impressionante, porque o cara vai fazer um documentário nos Estados Unidos e, na verdade, essa é a ficção.

Marina Amaral – Pra começar, ele não é um repórter do Cazaquistão.
É, exatamente. Então é uma brincadeira, mas é a estética do documentário invadindo a ficção.

Marina Amaral – O Antônia.
É, o Antônia.

Marina Amaral – Mesmo o Céu de Suely.
Mas aí você podia falar que tem o neo-realismo italiano, que já foi cinema trazendo realidade dentro do cinema.

“Cada patrocinador é uma batalha e cada um dá um pouquinho porque acha que a idéia só vale um pouquinho, entendeu? Mas é assim mesmo, não tem jeito.”

Thiago Domenici – Qual é a dificuldade prática de fazer um documentário hoje no Brasil?
Acho que é sempre difícil fazer qualquer coisa no Brasil. Mas ao mesmo tempo é inerente, esse é o processo, então você tem que se preparar pra enfrentar as dificuldades. Mas não acho que seja mais fácil ou mais difícil que fazer ficção, depende da qualidade da tua idéia, do quanto você se dedica a desenvolver a idéia, a procurar um patrocinador para aquela idéia.

Marina Amaral – Tem muitos patrocinadores no seu filme.
Muitos patrocinadores. Cada um é uma batalha e cada um dá um pouquinho, porque acham que a idéia só vale um pouquinho, entendeu? Mas é assim mesmo, não tem jeito.

Marina Amaral – Quanto custou o filme?
Custou quase 1 milhão.

Marina Amaral – E a Petrobrás Cultural não daria o total?
A Petrobrás não patrocinou o filme. A Petrobrás patrocinou o lançamento do filme. Quem patrocina o filme é a Eletrobrás, a Comgás, a Oi e o BNDES, que são os mais importantes. A Petrobrás entrou num momento superimportante, que foi o momento do lançamento do filme, outro gargalo que sem apoio é difícil.

Marina Amaral – Havia aquela discussão sobre quanto se subsidiava ou não o cinema nacional, essa discussão ficou ultrapassada? Como é que você essa questão?
Eu vejo de várias maneiras. Acho que, poxa, tem que ter subsídio pro cinema no Brasil, mas também tem que ter o cinema não subsidiado, como A Grande Família, Casseta e Planeta. O cara faz um filme comercial sem dinheiro público, acho perfeito, o chato seria A Grande Família ter dinheiro público, chegar eu lá na Petrobrás com um documentário sobre educação e ter A Grande Família na concorrência, aí gera confusão de valores: um filme vai atingir 2 milhões de pessoas, o outro 50.000. Um produto com um enfoque extremamente comercial, mesmo que com qualidades artísticas, não deve concorrer comigo em nenhum momento. Nem me incomodaria concorrer com o Cidade de Deus, ou outros filmes que deram certo, mas poderiam ter dado errado – a busca deles é artística. O que acho legal do cinema brasileiro hoje é essa pluralidade, não deve ter nenhum tipo de policiamento, o ideal é que tenha todo tipo de filme.

Marcos Zibordi – E como está indo o seu filme?
Já está com 20.000 espectadores e está no começo, porque ele só foi para Rio e São Paulo por enquanto. A gente vai para Porto Alegre esta semana e depois Salvador, Recife, e aí acho que vai chegar a 40.000.

Sofia Amaral – Depois que a gente assistiu ao seu filme tivemos a sensação de que essa é uma história sem saída. Você parece concordar com aquela professora que diz que a escola é uma instituição falida...
Mas é isso.

Marcos Zibordi – E você fala isso com essa doçura?
Mas, então, vamos arrumar uma solução.

Marina Amaral – E o interessante é que no Brasil sempre se diz que a resposta para todos os problemas é a educação...
Marcos Zibordi – E a educação não tem saída.
Não, mas tem.

“Acho que tinha que chamar o adolescente para pensar a escola. Talvez pensar junto um pouco. Mas isso também é utópico, então...”

Marina Amaral – O que você imagina?
Aí eu já não sei dizer. Não sei mesmo, a gente já falou várias coisas aqui que poderiam ser saídas, mas eu não saberia enumerar. Acho que tinha que chamar o adolescente para pensar a escola, talvez. Pensar junto um pouco. Mas isso também é utópico, então...

Marina Amaral – Se a escola boa para o adolescente for aquela em que o professor falta bastante...
Não é verdade, sabia? É verdade ali no dia-a-dia, mas, se você chamá-los pra discutir – não vai chamar qualquer um, tem que ser aqueles que podem contribuir –, para estabelecer melhor a problemática, para poder pensar uma solução, pode ajudar. Não que eles tenham que dizer o que tem que ser feito. Mas eles são os consumidores, como você vai fazer um produto sem ouvir quem vai consumir? Não que você tenha que obedecê-lo, é mais pra entender como ele funciona, como reage.

Marina Amaral – E tem muitos professores recomendando ver o filme, você tem notícias disso?
Tem bastante.

Sofia Amaral – A gente estava assistindo com dois grupos grandes.
Marina Amaral – Começou a sessão e eles fazendo o maior barulho, o esperado, aquela confusão.
Mas eram escolas públicas ou particulares?

Marina Amaral – Pública e de segundo grau, rapazes e moças com a professora. Estavam fazendo piadas e foram silenciando conforme o filme engatava, silêncio absoluto e total.
Ai, que legal. Que ótimo, cara, isso é muito bom. Eu já tinha visto, já vi uma vez assim também. Eles reagem muito também, né? Uau...

Marina Amaral – Por que os professores levam os alunos pra assistir a um retrato tão corrosivo da escola? Se você fizesse um filme sobre a Igreja, destruindo a Igreja, os bispos mandariam os padres assistirem?
Mas toda a arte tem essa função, na verdade. Do espanto, de produzir espanto, e de ser espelho.

Marina Amaral – Os professores ficam cúmplices do filme?
Completamente. Eles querem que o adolescente se veja ali dentro daquele contexto, veja a posição do professor naquela história, entendeu? Que bom, que legal que estava cheio de adolescente. Nas autoridades é que eu percebo mais indiferença. Não teve nenhuma manifestação, nenhum tipo de comentário...

Marina Amaral – Nem governador, secretário?
Ninguém se manifestou pra nada, nem pra chamar um prefeito pra ver o filme, um governador, nem pra convidar o filme pra nada... Nem mesmo nas cidades em que foi filmado.

fonte: http://carosamigos.terra.com.br/


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