domingo, 24 de fevereiro de 2008

Em nome da mercadocracia - por Adriana Facina - fonte: http://www.fazendomedia.com

Em nome da mercadocracia


Liberdade - essa palavra,
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!

Cecília Meirelles


De noite, já cansada de trabalhar, liguei a televisão para ver o Jornal da Globo e me deparei com algumas das cenas mais bizarras de toda a minha vida. Tudo bem que o tal jornal é um veículo de desinformação, mas a cobertura sobre a renúncia de Fidel Castro parecia uma farsa gritante. O tom era de uma comemoração de um fim definitivo do socialismo e uma vitória da democracia e da liberdade. “Exilados” cubanos festejando nos EUA, ideólogos do mercado vomitando previsões que apontavam para a adoção do modelo chinês de abertura ao capital, políticos brasileiros saudando o fim da ditadura castrista. Entre estes, o coronel Tasso Jereissati, dono do Ceará, declarando que agora a democracia poderia reinar em Cuba.

A palavra democracia soou estranha na boca de Tasso, cuja família há décadas dá a linha política que comanda seu estado. O Ceará é um dos estados brasileiros que mais sofrem com a falta de saneamento básico, sem falar em coisas mais sofisticadas como educação e saúde. Imaginem um político que não garante água potável e nem o direito a fazer cocô decentemente para a população de seu estado vir falar em democracia e em liberdade.

Do mesmo modo, a imprensa que define Cuba como uma ditadura cruenta faz campanha anti-direitos humanos por aqui e se locupleta com um sistema de concessões públicas intransparente, favorecendo a concentração da comunicação nas mãos de poucos.

A mesma TV Globo que exibe no horário nobre uma novela cujo herói é um miliciano que impõe na base do terror seu poder sobre a “sua” favela, que constrói mentiras irresponsáveis com objetivos claramente políticos (como ocorreu no caso da recente epidemídia de febre amarela) e fabrica uma suposta ameaça de invasão venezuelana em nossas fronteiras afirma que em Cuba não há liberdade.

Vejo nas ruas os rostos das pessoas e como o sofrimento marca suas feições. Nosso povo é um povo sofrido. As histórias de vida são marcadas pela escassez, pela violência, principalmente de origem estatal, pela insegurança, pela descrença num futuro diferente. Meus amigos que trabalham em escolas públicas nas periferias e favelas da cidade sempre comentam comigo sobre a apatia que se abate sobre crianças e jovens, resultado de uma mentalidade comum de que as coisas não vão mudar nunca, que a vida é assim.

Essa mesma elite criminosa, erigida sobre um sistema que rouba a esperança das pessoas, que ameaça a capacidade de sonhar, vem falar de liberdade e democracia. Uma elite que navega tranqüilamente em suas embarcações de luxo (e o Brasil é campeão de vendas dessas embarcações, segundo a revista CartaCapital) enquanto crianças estão sem aulas nas escolas e pessoas morrem nas filas dos hospitais.

Independentemente de nossa maior ou menor adesão ao regime cubano (e já digo que não sou uma castrista), fato é que educação e saúde sempre foram prioridades desde a Revolução de 1959. Apesar das inúmeras dificuldades cotidianas, boa parte delas gerada pelo embargo estadunidense que há décadas busca sufocar a ilha, o povo cubano é um povo com auto-estima, pois teve sua potência histórica tornada revolução. Mesmo os que desejam mudanças, em sua maioria não defendem o retorno ao capitalismo e muito menos a subjugação de Cuba ao imperialismo dos EUA.

Enquanto isso, Tasso e seus pares seguem com sua comédia farsesca, pretensos amantes da democracia. Pena ACM ter morrido, pois com certeza seria memorável ver o representante mor desses coronéis que se fizeram no colo da ditadura militar se regozijando com o afastamento de Fidel e prometendo a volta da liberdade a Cuba. Todos, na verdade, mercadocratas, pois entenderam na prática que o capitalismo não tem preferências quanto a regimes políticos, desde que mantida a primeira e mais fundamental das liberdades: a de enriquecer através da exploração do trabalho alheio.

Um sistema que cria um privilégio para uma minoria, a propriedade privada, e coloca a defesa desse privilégio acima até mesmo da defesa da vida humana nunca poderá conhecer um governo do povo de fato. Por isso que, como diz a historiadora Ellen Wood, democracia e capitalismo não são termos compatíveis. A barbárie neoliberal nos mostra que “um capitalismo humano, ‘social’ e verdadeiramente democrático e igualitário é mais irreal e utópico que o capitalismo” [1].

NOTA
[1] Ellen Wood, Democracia contra capitalismo, São Paulo, Boitempo, 2003, p.250.

> Adriana Facina é antropóloga, professora do Departamento de História da UFF, membro do Observatório da Indústria Cultural e autora dos livros Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004) e Literatura e sociedade (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004).

fonte: http://www.fazendomedia.com


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