quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Sobre a crise Boliviana - fonte: http://www.agenciacartamaior.com.br

ENTREVISTA – EVO MORALES

“O embaixador dos EUA lidera a conspiração contra meu governo”

Presidente da Bolívia acusa embaixador dos Estados Unidos no país de conspirar contra o governo e de tentar repetir no país "o que fizeram no Kosovo". Evo Morales revela que camponeses e indígenas já pediram armas para defender o governo, mas defende revolução pelas urnas e não pelas armas.

Às sete da manhã, o Palácio Quemado já está um formigueiro e os ministros devem ter paciência para conversar com o chefe de Estado. “É assim mesmo”, diz um embaixador com experiência na dinâmica “evista” a um ministro novato no gabinete que se impacienta com a demora de Evo Morales em chegar a uma reunião com exportadores.

Em um intervalo de alguns minutos, o líder cocalero conversou com Il Manifesto sobre temas da atualidade nacional e internacional. Enquanto tomava um suco de mamão, acusou o embaixador dos Estados Unidos, Philip Goldberg, de conspirar contra seu governo e de tentar repetir na Bolívia “o que fizeram no Kosovo”. Admite que camponeses e indígenas pediram armas para defender o governo diante das demandas autonomistas de Santa Cruz. E assinala que, se o diálogo não avançar, a saída será convocar um referendo revogatório para o presidente e os governadores, “para que o povo diga a quem apóia”.

Il Manifesto: Como é possível retomar o diálogo com os governadores opositores?
Evo Morales: Nós apostamos na autonomia. No referendo de 2006, a maioria dos bolivianos disse “Não”, mas em quatro regiões ganhou o “Sim”. Por isso garantimos autonomias na nova Constituição e sinto que é necessário criar um espaço no Poder Executivo, um ministério de Autonomias que comece a construir com os movimentos sociais uma autonomia baseada na legalidade e na solidariedade entre regiões. Mas alguns grupos confundem autonomia com separação ou independência.

Il Manifesto: Santa Cruz segue avançando direção de seu referendo autonomista de 4 de maio...
Evo Morales: Gostaríamos que parassem para que pudéssemos avançar juntos.

Il Manifesto: Se o diálogo fracassar segue valendo a proposta do referendo revogatório?
Evo Morales: Exato. Por isso dissemos que apostamos nas urnas e não nas armas.

Il Manifesto: Mas admitiu também que alguns setores campesinos pediram armas para defender o governo. Como é isso?
Evo Morales: Recebi algumas ligações telefônicas e sou transparente. Comentei com a imprensa que tergiversou sobre minhas declarações. Preocupou-me bastante receber chamadas de companheiros do campo e da cidade que me disseram textualmente: “Irmão presidente, quando era dirigente sindical você se fez respeitar, agora nós faremos respeitar, nos dê armas”. Eram fortes as chamadas. Em um certo momento tive que desativar meu celular, que atendo só de madrugada.

Il Manifesto: E qual foi sua resposta a esses pedidos?
Evo Morales: Por certo não estamos de acordo com isso. Disse que é preciso fazer uma revolução nas urnas e não com armas, e estamos cumprindo isso. Mas as agressões e humilhações causam estas reações em nossos companheiros. Inclusive houve uma marcha a La Paz pedindo-me armas. Tudo isso é provocado por uma direita racista que já me chamou de macaco. E se tratam o presidente como um animal, o que podem esperar os camponeses e indígenas?

Il Manifesto: O sr. se referiu ao Kosovo. Crê que pode ocorrer o mesmo na Bolívia?
Evo Morales: Quero que o mundo inteiro saiba é que há uma conspiração contra minha pessoa encabeçada pelo embaixador dos Estados Unidos (Philip Goldberg). Perguntemo-nos de onde veio o embaixador estadunidense (que atuou no Kosovo). Não vamos permitir que os Estados Unidos sigam conspirando para dividir a Bolívia com grupos oligárquicos e mafiosos. Se os EUA lutam contra a corrupção e a injustiça por que não extraditam o ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada? (acusado por quase uma centena de mortes, produto da repressão na “guerra do gás” de 2003). Quando os povos se levantam, estas autoridades pró-império e pró-capitalistas correm para onde isso ocorre. Quando já não podem dominar, porque há democracias libertadoras e não comprometidas, os EUA fomentam a divisão.

Il Manifesto: Considera encerrado, com as desculpas do embaixador, o caso da utilização de bolsistas como informantes?
Evo Morales: O senhor Vincent Cooper (funcionário da segurança da embaixada dos EUA) é persona non grata para a Bolívia e o assunto está sendo investigado. Hoje sabemos que utilizam seus estudantes, que vêm com vontade de aprender, para fazer espionagem. Descobrimos até que a polícia boliviana fazia espionagem e perseguições para a embaixada-norte-americana.

Il Manifesto: Acredita que uma vitória democrata nos EUA poderia melhorar as relações?
Evo Morales: Entendo que há políticas de Estado nos EUA, mas gostaríamos que começassem a respeitar os direitos humanos e os processos de libertação e as transformações profundas que estão ocorrendo na América Latina. Para isso, devem pôr fim à prática da espionagem, da tentativa de submissão e da soberba. O ex-embaixador Manuel Rocha chamava-me de Bin Laden.

Il Manifesto: Como viu a saída de Fidel Castro do poder?
Evo Morales: Como o Che, Fidel é um símbolo imbatível para toda a humanidade. É um homem histórico. Em minhas conversas de horas e horas com Fidel ele sempre me falava da vida, da saúde e da educação Hoje isso se materializou na Bolívia com a Operação Milagre, com mais de 100 mil pessoas operadas dos olhos gratuitamente. Ficará um grande vazio.

* Entrevista publicada originalmente em Il Manifesto, Itália

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

http://www.agenciacartamaior.com.br


A solução democrática da crise boliviana - por Emir Sader (http://www.agenciacartamaior.com.br)

Ninguém poderia esperar que uma oligarquia que se havia apropriado do Estado e dos bens fundamentais do país, que se considerava dona da Bolívia, fazendo rodízio no poder entre seus três partidos durante décadas, iria aceitar passivamente que a maioria indígena do país – 64% se consideram indígenas na Bolívia – lhes arrebatasse tudo isso.

Os partidos da direita entraram em crise, perderam as eleições, conseguiram, no entanto, pelas estruturas oligárquicas que haviam construído , manter a maioria dos governos de estado – mesmo onde Evo ganhou – e no Senado, assim como maioria nos quatro estados da chamada “meia lua” – Santa Cruza de la Sierra, Tarija, Beni e Pando -, onde concentram seus grandes investimentos as empresas exportadoras, base econômica do poder da direita.

A direita foi recuando, conforme perdeu o governo e a maioria no Parlamento, reagrupando forças nesses território, para tentar bloquear os avanços do novo governo, principalmente a nacionalização dos recursos naturais – que a direita tinha privatizado -, a reforma agrária e a convocação da Assembléia Constituinte para propor as bases de um novo Estado – plurinacional, intercultural, soberano, comunitário, com autonomias. Trata de manter os dois pilares materiais do seu poder econômico – os impostos sobre as exportações dos hidro-carburetos e o monopólio da terra. Para isso funciona seu projeto de autonomia.

Acenam com a separação, mas sabem que, sem apoio – nacional e internacional – para isso, usam essa chantagem para tentar manter os estados que governam imunes ao imenso processo de democratização econômica, social e política e cultural que representa o programa do MAS.

Sua mais recente iniciativa foi a convocação de uma consulta sobre a autonomia em Santa Cruza de la Sierra, o principal bastião econômico e política da direita, para o dia 4 de maio, como uma espécie de anúncio de ruptura política e institucional com o governo. E de desafio para um enfrentamento, buscando saber com que força conta o governo.

O governo cumpriu com suas promessas e começou a mudar a cara da Bolívia, na direção da sua democratização, nacionalizando os hidrocarburos – o que lhe permitiu, de imediato, subir os impostos que recebe de 18 a 84% -, começando políticas sociais redistributivas - para as crianças e para os idosos, em primeiro lugar – iniciando o processo de reforma agrária, convocando a Assembléia Constituinte.

Para esta convocação, o governo poderia propor a representação das comunidades dos povos originários, conforme reivindicação desses povos. Provavelmente obteria uma maioria de 2/3, necessária para aprovar seu projeto de Constituição, sem votos da oposição. No entanto, facilitar o boicote que certamente a oposição decretaria, em condições muito diferentes das da Venezuela. Neste país, uma vez recuperado o controle sobre a Pdvsa, o Estado tornou-se muito forte e o empresariado privada, débil. Tanto assim que ao boicotar as eleições parlamentaria, se enfraqueceu mais ainda, deixando ao governo uma folgada maioria parlamentar, sem que isso o enfraquecesse.

Na Bolívia, pelo selvagem processo de privatização levado a cabo nos anos anteriores – chamado eufemisticamente de “capitalização” – o Estado se tornou muito fraco e a grande burguesia privada, muito forte. Caso boicotasse, política e economicamente, o governo, lhe assentaria um golpe muito forte e promoveria um processo de separação de fato, que levaria a uma crise institucional muito grave. A posição do governo foi convocar eleições pelos métodos tradicionais de representação, porque a alternativa seria levar a um enfrentamento, inclusive violento, sem que possa contar com segurança com as FFAA, além da crise nacional a que isso conduziria o país, um dos objetivos da direita, para tornar o país ingovernável quando um dia assume, pela primeira vez, a presidência da Bolívia.

A compopsição da Assembléia Constituinte confirmou a maioria de votos que havia tido Evo Morales, sem no entanto a maioria absoluta, o que levou a situações de impasse com a oposição, que buscou travar e inviabilizar a nova Constituição. A posição do governo foi a de levar as diferenças a uma consulta popular final, que daria o formato final à Constituição. Sentindo que seria derrotada, a oposição passou a usar a violência, para cercar o edifício em que se reunia a Constituinte, em Sucre, agregando a reivindicação da transferência da capital política do país para essa cidade.

Para romper o impasse e devolver à Assembléia Constituinte capacidade de funcionamento, o governo deslocou o lugar de seu funcionamento e foi aprovada, por maioria de votos o projeto da nova Constituição, que será submetido a uma consulta popular nacional. Além disso, Evo Morales propôs a todos os governantes – a começar por ele, mas também os governadores dos estados – que se submetam a um referendo revogatório.

O governo coloca, assim, nas mãos do povo as duas decisões fundamentais – a sobre a nova Constituição e a sobre a legitimidade dos governantes atuais. A oposição se nega e quer fazer um referendo pela autonomia de Santa Cruz, um referendo que concebe a descentralização apenas para a direção dos estados e não para as comunidades – como o faz o projeto de Nova Constituição.

Neste momento se reabriu um novo processo de negociações entre o governo e a direita, mas que costuma esbarrar nos três temas centrais para os quais o MAS foi eleito: o projeto de Constituição, a reforma agrária e a centralização dos recursos dos hidrocarburetos, para recompor o Estado boliviano e para políticas sociais.

Por Emir Sader
Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: