Em janeiro de 2001, 29 oficiais da Marinha do Brasil receberam em casa um comunicado sigiloso do Comando Naval. Foram convocados a se apresentar para exames de saúde no Hospital Marcílio Dias e no Instituto de Radioproteção e Dosimetria (IRD) da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), no Rio de Janeiro. Em comum entre eles, o fato de terem servido na Guerra da Bósnia, na ex-Iugoslávia, entre 1993 e 1995, como observadores estrangeiros da Organização das Nações Unidas (ONU).
A CNEN queria verificar se eles tinham sido contaminados por radiação emitida pelo Urânio-235, utilizado na munição das tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) durante o conflito. O resultado do exame, e o possível acompanhamento de casos positivos, é mantido sob sigilo, até hoje.
A comissão de energia nuclear tomou essa iniciativa depois de, no início de 2000, militares de Portugal, Espanha, Itália, Bélgica, Holanda e Alemanha, também observadores na Bósnia, terem morrido ou ficado doentes, principalmente de patologias renais e cancerígenas. Os sintomas obedeciam ao mesmo padrão observado em soldados americanos da Guerra do Golfo, em 1991, onde as Forças Armadas dos Estados Unidos utilizaram, pela primeira vez, o Urânio-235 – o chamado urânio empobrecido – em munição.
As doenças relacionadas a essa exposição ficaram conhecidas por “Síndrome do Golfo”. A partir da morte de militares portugueses, passou, porém, a ser denominada “Síndrome dos Bálcãs”. O Comando da Aeronáutica também realizou exames em 29 militares da FAB que lá estiveram, assim como o Ministério da Defesa, em três funcionários. O Exército, dono do maior efetivo na missão, de 170 militares, além de responsável por 46 policiais militares estaduais, não tomou, ao menos oficialmente, essa providência. O Ministério da Defesa também jamais se pronunciou sobre o assunto.
No fim de 2001, quando os oficiais da Marinha foram convocados secretamente para os exames, um fato iria chamar a atenção dos militares envolvidos na operação. O general-de-brigada Newton Bonumá dos Santos, comandante-geral dos observadores estrangeiros na Bósnia, seria acometido de um tumor letal no cérebro e morreria em julho de 2002, no Hospital Central do Exército (HCE). Bonumá, por conta de comandar toda a tropa de estrangeiros, esteve em muitas das áreas reconhecidas, posteriormente, pelas Nações Unidas, como de alto índice de radiação. Como nunca foi examinado pela CNEN e, certamente, ter sido o militar brasileiro mais exposto às zonas de risco espalhadas pelos Bálcãs durante o conflito na ex-Iugoslávia, há grande possibilidade de o general ter sido vítima dos efeitos da munição radioativa utilizada pela Otan.
Na Bósnia, em 1994, no comando de 800 observadores internacionais de mais de 20 nacionalidades diferentes, o general tinha pouca noção dos perigos da munição empregada pela Otan. Cuidava de tocar um trabalho complicado e arriscado, além de inédito. Nunca antes um oficial brasileiro tinha comandado tropas estrangeiras na Europa.
Além dos conflitos entre sérvios, croatas, bósnios e montenegrinos, Bonumá ainda teria de se preparar para uma guerra pessoal em conseqüência de uma súbita paixão por uma funcionária da ONU, filha de um general croata, herói da Segunda Guerra Mundial. O oficial brasileiro era casado e, ao descobrir um novo amor em meio ao flagelo da Guerra dos Bálcãs, iria comprometer, para sempre, a carreira no Exército.
Até voltar da ex-Iugoslávia, em 1995, Bonumá era considerado um dos oficiais mais brilhantes do Exército Brasileiro. Havia sido um dos raros professores estrangeiros da Academia Militar de West Point, nos Estados Unidos, a mais conceituada do mundo. Também estava entre os primeiros colocados nos cursos de formação do Exército. Ostentava uma ficha impecável e tinha estado à frente de comandos de grande relevância. Ainda assim, em 1998, foi preterido da promoção para general-de-divisão (três estrelas), ao que tudo indica por ter largado a primeira mulher, após 30 anos de casamento, e se unido à economista Jagoda Bulat (pronuncia-se “Iágoda Búlat”), a croata por quem se apaixonou durante a guerra.
O oficial havia sido assessor pessoal do então ministro do Exército Zenildo de Lucena, mais tarde nomeado comandante da força, com a criação do Ministério da Defesa, em 1999. Nem isso serviu para neutralizar a fúria das mulheres dos generais, responsáveis pelo eficiente lobby que resultou no fim da carreira do ex-comandante dos observadores estrangeiros na Bósnia.
“Imaginaram que, com a separação conjugal, eu deixara de ter uma conduta inatacável”, lamentou Bonumá à época.
Lançado ao ostracismo, trabalhou numa editora de publicações militares e passou a viver com Jagoda num apartamento na Gávea, no Rio, embora ela viajasse constantemente à Croácia por não possuir visto definitivo no Brasil. Acompanhado ou não, o general vivia só e isolado. Os amigos, muitos com mais de 30 anos de relacionamento, passaram a evitá-lo e a tratá-lo como um leproso funcional. Temiam se tornaralvos do lobby das mulheres dos generais na hora da promoção.
No início de 2001, um amigo da Marinha, o comandante-de-mar-e-guerra Márcio Bonifácio Moraes, alertou-o sobre os casos suspeitos de mortes de militares supostamente provocadas pela munição da Otan. Ex-observador nos Bálcãs, o comandante encabeçou a lista de convocados a comparecer ao Hospital Naval Marcílio Dias.
Nada foi encontrado de anormal no oficial, mas o comandante Moraes passou a investigar a existência de outros casos mundo afora e, com alguma regularidade, informava Bonumá sobre o tema. Estranhava, sobretudo, a omissão do Exército em relação aos exames de contaminação de radioatividade, ao contrário da disposição da Marinha e da Aeronáutica. Desligado da rotina da caserna e desgostoso com a atitude do Exército em relação a ele, Bonumá deu pouca atenção às preocupações do amigo e, no final daquele ano, partiu para um período em Zagreb, capital da Croácia, ao lado da nova mulher.
Ao voltar dos Bálcãs, o militar começou a sentir uma dor de cabeça persistente e uma sonolência incomum. Nunca tivera, antes, problemas graves de saúde. Ao contrário. Era atlético, afeito a caminhadas nas zonas conflagradas (e contaminadas) da Bósnia, quando lá serviu, e gostava de, com freqüência, subir o Pico da Tijuca (1.021 metros de altitude), no Rio, para se exercitar. Em março de 2002, foi diagnosticado um câncer no cérebro do general. Jagoda, então, foi morar com ele definitivamente, para apoiar o tratamento. Como o crescimento do tumor foi muito rápido, ela o internou no HCE e passou a, praticamente, morar no quarto do hospital. A ela, Bonumá comentou da possibilidade de ter ficado doente por causa da Síndrome dos Bálcãs, como desconfiava o amigo Moraes. Mas não teve mais tempo para insistir no assunto, pois logo perdeu a capacidade de falar.
O general morreu em 17 de julho de 2002, aos 60 anos, durante uma troca de lençóis da cama onde permaneceu entrevado. O general Zenildo de Lucena, mesmo na reserva, foi quem mais o visitou. A maioria dos amigos o evitou até no leito do HCE, assim como os dois filhos do primeiro casamento.
O capitão Harley dos Santos, um dos observadores seqüestrados na Bósnia para ser usado como escudo humano por separatistas, nunca apareceu por lá. À época, Harley, hoje tenente-coronel, foi salvo graças à intervenção e ao prestígio de Bonumá entre as partes envolvidas no conflito. Na Croácia, o oficial chegou a ser condecorado ao lado do general.
O filho não foi sequer ao enterro, no Cemitério São João Batista, no Rio. “Naquele instante, o Brasil se tornou um país muito triste para mim”, conta Jagoda.
Incrivelmente, o Comando do Exército alega não ter solicitado exames médicos aos militares enviados aos Bálcãs porque, segundo a assessoria da força, “a ONU não considerou essa questão, por não ter sido comprovado que a Otan teria utilizado esse tipo de munição”.
Estranho, pois foi justamente a Otan que preparou um guia sobre o uso desse tipo de munição – posteriormente, a organização elaborou um relatório para negar supostas conseqüências maléficas do urânio empobrecido nos ataques. Para o Exército Brasileiro, “a alegação do seu uso, segundo relatos da época, partiu de elementos da população local”.
A coisa vai mais além, segundo a resposta passada a
CartaCapital pelo Centro de Comunicação do Exército (Ccomsex): “Em face de a ONU não reconhecer o uso dessa munição por parte da Otan, os militares que retornaram da missão somente realizaram os exames médicos de rotina por término de missão no exterior”. Lembrete: o segundo relatório sobre o tema é da ONU, no qual se recomendam medidas de descontaminação dos locais atingidos pela munição. Também contatadas pela revista, Marinha e Aeronáutica não responderam sobre uma possível contaminação radioativa de militares das duas forças.
Na verdade, a morte de Bonumá eliminou qualquer possibilidade de o Exército convocar militares para exames de contaminação de radioatividade.
Na avaliação de um oficial ligado ao Alto-Comando da força, qualquer movimento nesse sentido poderia levantar suspeitas sobre negligência ou parecer ter sido motivado pelo tumor do qual Bonumá foi vítima. Em outras palavras, poderia macular a imagem do Exército e, de quebra, lançar dúvidas sobre a omissão em relação aos militares enviados à ex-Iugoslávia, motivo de orgulho da tropa verde-oliva.
Há, ainda, uma outra razão, muito mais comezinha.
Jagoda, hoje com 60 anos, casou-se formalmente com o general em 26 de junho de 2002, 21 dias antes de ele morrer. Incapaz de se levantar da cama e de assinar o ato de casamento, Bonumá nomeou o comandante Moraes para representá-lo na cerimônia, na verdade, um ato burocrático firmado em um cartório do Rio de Janeiro. “Ele me pediu em casamento em inglês, idioma no qual conversávamos”, lembra Jagoda.
Mesmo terminal, o general previu deliberadamente as conseqüências daquela ação, levada a cabo para garantir algum sustento à mulher, por meio de pensão militar. Foi o último ato de amor do general. A partir dali, iniciou-se um litígio de família que se arrasta até hoje.
A Jagoda, o Comando do Exército designou 25% da pensão do general (2,3 mil reais), o nome de casada (que ela não usa) e um apartamento de quatro quartos no Humaitá, bairro de classe média baixa do Rio. O restante da pensão ficou dividido em 50% para a ex-mulher e 25% para a filha, enquanto ela for solteira – um anacronismo legal mantido no Exército desde o fim da Guerra do Paraguai, em 1870.
O general também deixou uma conta de 120 mil dólares em um banco da Flórida, nos Estados Unidos. O dinheiro, fruto de economias do serviço no exterior, foi imediatamente retirado da conta pela ex-mulher, Maria Luiza Bonumá dos Santos, e depositado na conta de um dos filhos do general. A Justiça do Rio ordenou, porém, que metade do dinheiro fosse redepositado na conta de origem e ficasse à disposição de Jagoda.
No processo que abriu contra o Exército, a croata pede para ficar com 50% da pensão do general. O processo chegou até o Superior Tribunal de Justiça, no início do ano passado. Em 8 de maio de 2007, o plenário do Tribunal reconheceu os direitos de Jagoda, mas deu ganho de causa à União, a terceira parte interessada no processo, por tratar-se de fundos oriundos do Tesouro Nacional.
A viúva croata, então, foi obrigada a se resignar com os 25% da pensão, embora a sentença ainda não tenha sido publicada. Somente depois disso a advogada dela, Dómina Zerbouli, poderá saber se há chance de um novo recurso, desta vez no Supremo Tribunal Federal.
Os efeitos do urânio empobrecido
O urânio empobrecido (DU, sigla do termo em inglês
Depleted Uranium) é um produto do processamento do mineral. É a parte menos radioativa do urânio, inútil para uso em armas e reatores nucleares. No início dos anos 70, os Estados Unidos começaram a usá-lo em mísseis não-nucleares e em balas comuns e de tanques. A grande densidade do material dá um poder de penetração maior à munição, capaz de fazê-la varar couraças de tanques e outros veículos blindados. Além dos EUA, a Rússia e alguns países da Europa possuem a tecnologia militar do urânio empobrecido. Documentos do Pentágono, obtidos pela imprensa americana, registraram o lançamento de mais de 900 mil projéteis de urânio empobrecido sobre o Iraque e o Kuwait, em 1991. Na Bósnia, foram 10 mil e, no Kosovo (durante o conflito de 1999), 31 mil.
Pressionada pelos países europeus envolvidos na Guerra dos Bálcãs, mas, sobretudo, pelas mortes suspeitas de soldados de várias nacionalidades, a Otan iniciou, em 2000, uma investigação nas áreas contaminadas. Em outubro do ano seguinte, a Comissão de Ciência e Tecnologia da organização divulgou um relatório sobre o uso do urânio empobrecido no Leste Europeu. O texto, absolutamente alinhado às declarações das autoridades americanas sobre o tema, nega qualquer risco à saúde dos militares e civis atingidos pela radiação, e manda o mundo tratar o DU como uma “munição comum”. Baseado nesse salvo-conduto sanitário, o urânio empobrecido ainda é usado, e em larga escala, pelas tropas dos EUA mobilizadas na invasão do Iraque, desde 2003.
Apesar das declarações sobre o caráter inofensivo do urânio empobrecido, referendado pelo relatório da Otan, não era essa a orientação passada aos soldados americanos. Aliás, nunca transmitida aos militares brasileiros e de outras nacionalidades envolvidos na missão de paz patrocinada pela ONU na ex-Iugoslávia.
Um guia distribuído pela Otan aos militares e funcionários americanos enviados aos Bálcãs, com o aval das Nações Unidas, alertava sobre a proibição de contato em áreas atingidas pela munição radioativa e a necessidade de roupas especiais para o acesso a esses locais. E explicava mais: os efeitos da radiação poderão ser sentidos muitos anos depois da exposição. O guia, conhecido por
Depleted Uranium Awarness, trata a munição DU como perigosa e fatal para o organismo humano, por causa dos riscos de ingestão, inalação e contato com a pele do pó radioativo lançado pelo urânio após os ataques. Sem falar na contaminação de alimentos, solo e água.
Em 2003, e sobre pressão dos Estados Unidos e da Guerra do Iraque, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), divulgou um novo estudo sobre os riscos de contaminação por urânio empobrecido na Bósnia. Segundo o texto, após sete anos do fim do conflito, ainda foi possível detectar DU nos locais onde fora usado, inclusive na água potável e no ar. Todo o urânio encontrado em 2002, quando o estudo foi terminado, estava, de acordo com o Pnuma, abaixo do nível considerado inseguro. Ou seja, apesar de não ter sido constatado risco na data de encerramento da pesquisa, todos os locais examinados foram áreas de contaminação em potencial durante a guerra. No fim do texto, os técnicos do Pnuma recomendaram às autoridades locais “tomar medidas de prevenção e descontaminação”.
fonte:
http://www.cartacapital.com.br
Desejo e reparação - por Leandro Fortes - fonte: http://www.cartacapital.com.br
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